11 junho 2014

joão habitualmente / nem tanto ao mar



Amo o mar
porque não tem fim

e os vagabundos que não tem pilim

Mas pelo meio das formas
e das aparências sem fundo
parecendo que amo o mundo
amo-me sobretudo a mim

Talvez venha a querer ao mar
ou vagamente a um vagabundo

talvez os ame no fundo

Mas no rodar infindo
daquilo que não tem fim
quero-me principalmente a mim

Ao resto das formas
e das aparências do mundo
amo só assim-assim



joão habitualmente
os animais antigos
vila do conde : objecto cardíaco
2006



10 junho 2014

luís vaz de camões / coitado! que em um tempo choro e rio;




Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du´a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queria desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo



luís vaz de camões
sonetos



09 junho 2014

eugénio de andrade / o lugar da casa



Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

  

eugénio de andrade
o sal da língua
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







08 junho 2014

fernando pessoa / isto



Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como  que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir! Sinta quem lê!

  

fernando pessoa



07 junho 2014

saint-john perse / elogios xv



           Infância, meu amor, também amei a noite: é a hora de sair.
          As nossas criadas entraram nos seus vestidos coloridos… e colados às persianas, sob as nossas tranças geladas,
         vimos como, delicadas e nuas, elas levantam com a força dos braços o anel macio do vestido.
      As nossas mães vão descer, perfumadas com as ervas-da-Madame-Lalie… Seus pescoços são belos. Ide e anuncia: A minha mãe é a mais bela! ─ Ouço já
          os tecidos engomados
         que arrastam pelos quartos um doce barulho de trovão… E a Casa a Casa?... saímos dela!
         Até o velho ancião me cobiçaria um par de matracas,
         e como os grãos da ervilha, do tamarinho ou da mucuna fazê-las retinir por entre as mãos.

         Aqueles que são antigos na região levam uma cadeira para o pátio, bebem ponche cor de pus.


  

saint-john perse
imagens à crusoé
elogios
trad. jorge melícias
quasi
2002



06 junho 2014

vladimir holan / ela perguntou-te



Uma rapariga perguntou-te: O que é a poesia?
Tu querias responder-lhe: Tu também és, ah sim, tu também
- e tu a medo e surpreendido -,
o que prova o milagre,
tenho ciúmes da tua beleza madura,
e porque não posso nem beijar-te nem dormir contigo,
e porque não tenho nada e quem não tem nada para dar
deve cantar...

Mas tu não respondeste, permaneceste em silêncio
e ela não ouviu a canção.


vladimir holan
mirroring: selected poems of vladimir holan
tradução de miguel gonçalves.
wesleyan university press
1985




05 junho 2014

marc granell / requiem



Que a paz esteja convosco,
irmãos no egoísmo e na estultícia.
Que vos seja favorável e acolhedora
a ratoeira que durante séculos construímos
sob a pele indestrutível de cada inocência.

Duros são os tempos e é bom esconder
as mãos nos bolsos do consolo
propício, estudado a propósito
para esconder o odor da tempestade,
do vazio sem resposta possível
que nos despe os caminhos e o olhar.
Não há razões que nos conduzam à suspeita
da existência imprescindível da culpa
que, como um bosque conhecido e confortável,
instalámos no centro das nossas veias.
E, no entanto, é a casa onde habitamos
a angústia de sabermos a morte
quando nascemos nascida nas entranhas.

Algum dia tentarão talvez esclarecimentos
aqueles em que nos queremos mentir perpétuos.
Quebrarão os ferrolhos e uma a uma pendurarão
por toda a eternidade as nossas caveiras
sob a única e branca, gloriosa, gargalhada.


marc granell
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994




04 junho 2014

marguerite yourcenar / disciplina augusta



Não tenho filhos e não o lamento. Sem dúvida, nas horas de fadiga e de fraqueza, em que nos renegamos a nós próprios, acusei-me por vezes de não ter procriado um filho que me continuasse. Mas esse desgosto tão vão baseia-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho forçosamente nos prolonga e a de que este estranho amontoado de bem e de mal, esta massa de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa mereça ser prolongado. Utilizei o melhor que pude as minhas virtudes; tirei partido dos meus vícios; mas não tenho especial empenho em legar-me a alguém.



marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974




03 junho 2014

frank o´ hara / porque não sou um pintor



Eu não sou um pintor, sou um poeta.
Porquê? Penso que preferia ser
um pintor, mas não sou. Bom,

Mike Goldberg, por exemplo,
está a iniciar um quadro. Eu apareço.
«Senta-te e toma uma bebida» diz
ele. Eu bebo; nós bebemos. Reparo
«Tu tens SARDINHAS aí.»
«Sim, precisava de qualquer coisa ali.»
«Oh.» Eu saio e os dias passam
e eu apareço de novo. O quadro
avança, e eu saio, e os dias
passam. Eu apareço. O quadro está
terminado. «Onde estão SARDINHAS?»
O que resta são apenas
letras. «Era demasiado», diz Mike.

E eu? Um dia estou a pensar numa
cor: laranja. Escrevo uma linha
acerca de laranja. Em breve é uma
página que está cheia, não de linhas, de palavras.
Depois outra página. Deveria haver
muitíssimo mais, não laranja,
palavras, como é terrível o laranja
e a vida. Os dias passam. Acontece ser
em prosa, sou um verdadeiro poeta. O meu poema
está terminado e ainda nem sequer mencionei
o laranja. São doze poemas, chamo-lhes
LARANJAS. E um dia numa galeria
vejo o quadro de Mike, chamado SARDINHAS.



frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995





02 junho 2014

sandro penna / devo estar a ficar velho



Devo estar a ficar velho, se fiz uma longa viagem
sempre sentado, se nada vi
senão a chuva, se um débil raio
de vida silenciosa… (os operários
entravam e saíam do comboio,
levando de uma aldeia para um lago tranquilo
o sono e as ferramentas de trabalho).
Quando cheguei à cama também gritei:
somos homens, mais cansados que cobardes.


sandro penna
no brando rumor da vida
tradução de maria jorge vilar de figueiredo.
assírio & alvim
2003




01 junho 2014

valerio magrelli / eu sou aquilo que falta



Eu sou aquilo que falta
ao mundo em que vivo,
aquele que entre todos
jamais encontrarei.
Rodando sobre mim mesmo agora coincido
com o que me foi tirado.
Eu sou o meu eclipse
a revelia, o desconsolo
o objecto geométrico
a que para sempre deverei renunciar.



valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993




31 maio 2014

cesare pavese / os mares do sul



                                                    (para Monti)

Caminhamos uma tarde pela encosta dum monte,
em silêncio. Na sombra do lento crepúsculo,
o meu primo é um gigante vestido de branco,
de andar pausado, rosto bronzeado,
taciturno. Calar é a nossa força.
Um antepassado nosso deve ter-se sentido muito só
— um grande homem entre imbecis ou um louco coitado —
para ensinar aos seus tanto silêncio.

Esta tarde, o meu primo falou. Perguntou-me
se queria ir com ele: do alto vê-se,
em noites serenas, o reflexo do farol
ao longe, de Turim. "Tu que vives em Turim..."
disse-me "... tu é que tens razão. A vida é para se viver
longe da terra: um homem aproveita, goza
e depois, quando volta, como eu aos quarenta,
encontra-se tudo novo. As Langas não fogem daqui".
Disse-me isto tudo e não fala italiano,
mas serve-se, pausado, do dialecto que, como as pedras
deste mesmo monte, é tão áspero
que vinte anos de línguas e oceanos diversos
lho não arranharam. E sobe a encosta
com o olhar contido que vi, menino,
em camponeses um pouco cansados.

Vinte anos correu mundo, sem parança.
Abalou era eu ainda um menino ao colo das mulheres
e deram-no como morto. Depois ouvi falarem dele
as mulheres, às vezes, como uma fábula;
mas os homens, mais sérios, esqueceram-no.
Num Inverno, para o meu pai já falecido chegou um postal
de grande selo esverdeado com navios num porto
e desejos duma boa vindima. O espanto foi grande,
mas o menino crescido explicou avidamente
que o postal vinha duma ilha chamada Tasmânia,
rodeada por um mar muito azul, feroz de tubarões,
no Pacífico, a sul da Austrália. E acrescentou que o primo
de certeza pescava pérolas. E arrancou o selo.
Deram todos a sua opinião, mas todos concluíram
que, se ainda não morrera, havia de morrer.
Depois esqueceram-no e passou muito tempo.

Oh, quanto tempo passou desde que brinquei
aos piratas malaios. E desde a última vez
em que fui nadar para um sítio perigoso
e persegui um companheiro por uma árvore acima,
quebrando-lhe os belos ramos, e rachei a cabeça
a um rival e me deram uma tareia,
quanta vida passou. Outros dias, outros jogos,
outros abalos do sangue frente a rivais
mais esquivos: os pensamentos e os sonhos.
A cidade ensinou-me infinitos medos:
uma multidão, uma rua fizeram-me tremer,
às vezes um pensamento, espreitado num rosto.
Sinto ainda nos olhos a luz escarninha
dos milhares de candeeiros sobre o tropel dos passos.

Acabada a guerra, o meu primo voltou,
gigantesco, entre uns poucos. E tinha dinheiro.
Os parentes diziam em voz baixa: "Daqui a um ano, e já é muito,
está tudo comido e abala outra vez.
Os desesperados morrem assim".
O meu primo tem um ar decidido. Comprou um rés-do-chão
na aldeia e fez prosperar aí uma garagem de cimento
com a bomba da gasolina à frente, flamejante,
e um cartaz-reclame na curva da ponte, bem à vista.
Depois meteu um mecânico para receber o dinheiro
e deu a volta às Langas, de cigarro na boca.
Entretanto, tinha-se casado na aldeia. Escolheu uma rapariga
esguia e loura como as estrangeiras
que sem dúvida encontrara um dia por esse mundo.
Mas continuou a sair sozinho. Vestido de branco,
de mãos atrás das costas e rosto bronzeado,
batia as feiras de manhã e com ar manhoso
negociava cavalos. Explicou-me depois,
quando tudo se gorou, que a sua intenção
fora limpar o vale de bestas de carga
e obrigar a gente a comprar-lhe os motores.
"Mas a besta maior de todas" dizia "fui eu,
quando tive a ideia. Devia saber
que aqui bois e pessoas é tudo a mesma raça".

Caminhamos há mais de meia hora. O cume está próximo,
à nossa volta o vento ruge e assobia cada vez mais forte.
O meu primo para de repente e volta-se: "Este ano
vou pôr no cartaz: — O Santo Estêvão
foi sempre o primeiro nas festas
do vale de Belbo — e que o digam
os de Canelli". E depois retoma a subida.
Um perfume de terra e vento envolve-nos na escuridão,
ao longe algumas luzes: quintas, automóveis
que mal se ouvem; e eu penso na força
que me devolveu este homem, arrancando-o ao mar,
às terras longínquas, a este longo silêncio.
O meu primo não fala das viagens que fez.
Diz simplesmente que esteve em tal ou tal sítio
e pensa nos seus motores.

Só um sonho
lhe ficou no sangue: cruzou os mares, uma vez,
como fogueiro dum pesqueiro holandês, o Cetáceo,
e viu os pesados arpões voarem ao sol,
viu fugirem baleias no meio duma espuma de sangue
e perseguirem-nas e as caudas erguerem-se, e a luta das baleeiras.
Às vezes fala-me disto.

Mas quando lhe digo
que ele é um dos afortunados que viram a aurora
nas mais belas ilhas da terra,
sorri ao lembrar-se e responde que quando o sol
nascia, já o dia era velho para eles.


cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite
edições sempre em pé
1996



30 maio 2014

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano


27

venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.




antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999