20 maio 2014

ana paula inácio / senhora vermeer



À senhora Vermeer coube-lhe a sorte
de não caber nos quadros
de Vermeer, seu marido.
Não possuía o traço do anil
ou do ouro
que lhe caíam o regaço
como única declaração de posse
das jóias e do marido
que não era jóia nenhuma
como dizia a criada
que sabia como se cozinhavam as coisas
à rapariga do brinco
que ele pintou para sua desgraça.
A senhora Vermeer não ficou na História de Arte
só na das histéricas lágrimas
e inúteis posses,
desvairada e borratada
na sua pintura.


ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008



19 maio 2014

mário cesariny / no país


no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato



mário cesariny
manual de prestidigitação
discurso sobre a reabilitação do real quotidiano
assírio & alvim
1981




18 maio 2014

alberto caeiro / é talvez o último dia da minha vida



É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o Sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.




alberto caeiro


17 maio 2014

felipe benitez reyes / o género humano




Nem juntos os nossos corações se ouvem mais,
na inquietude total do universo,
do que ouvimos esse frigorífico latir de noite
numa solidão cordial e insone.


Nem sequer a união
de todos as canseiras que suportamos
conseguiria mudar a forma de uma nuvem.


A soma do amor de todos juntos
não poderia salvar
a vida de um insecto agonizante
nem impedir a soberba de um tirano.


A nossa história é um cofre
de sangue e cinza.


O mar some as pegadas dos barcos.
O tempo apagará as nossas esteiras.



felipe benitez reyes
tradução de manuel rodrigues





16 maio 2014

sophia de mello breyner andresen / eis que



Eis que o mundo de ti cai abolido
E tu ficas sozinho e muito longe
Com dois búzios do mar sobre os ouvidos
Ouvindo, só para ti, uma canção

Assim as flores de dentro para fora
Se queimam sob o halo dos perfumes
E voltam para nós os olhos cegos
Estrangeiras a tudo no sabor
Duma substância angélica e terrível.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
coral
caminho
1999




15 maio 2014

alexandre o'neill / o adjectivo



O adjectivo? Que horror
quando não é incisivo
quando atira para o vago
o pobre substantivo
ou o circunda de um halo
de um falso resplendor,
em que o ouro utilizado
não é ouro é só dourado!


O sol assim captado
é sol, mas sol de teatro,
ouro em falsete, luz barata,
e no prego não dá nada,


que o prego não acredita
(senão já estava falido)
nesse ouro sem quilate
que usam a valdevina

e o poeta que se orna
(que orneia, melhor diria)
de luzidias mentiras,
de poética poesia.

Disse pouco do que queria
na parte que antecede.
Se é discursiva, a poesia
também não serve...

Voltando ao adjectivo
(nada tenho contra ele):
é melhor ficar despido,
cosido co'a própria pele,

do que pedir emprestada
a piedosos enchumaços
aquela largura de ombros
que nos faz ginasticados,

quando, em verdade, não temos
mais ginástica do que essa
em que somos atletas
e que se resume apenas

no aguentar alegre
do peso quotidiano
(pode ser que para o ano
a terra nos seja leve).

Tal como do mal o menos
- e nesta regra redijo-
antes quero sóbrios termos
do que fingir que sou rico...



alexandre o'neill
abandono vigiado
1960




14 maio 2014

gil t. sousa / paisagem sem ti



fervem nos ombros
dos montes
as pedras do silêncio

e isto podia ser o mundo
ou a casa onde a morte
se cansa de mentir

no céu, só os restos
dum incêndio trabalham
esta febre do olhar

toda a tarde
te respiro por entre
as árvores submersas!

estou tão quente
como um fruto
que o sol ferrou

só, só eu
te sei cantar
até seres chuva



gil t. sousa
euOnça
volume_dois
editora medita
2014




13 maio 2014

eugénio de andrade / verão sobre o corpo



Esta noite preciso de outro verão sobre a boca
crescendo nem que seja de rastos.





eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976




12 maio 2014

carlos poças falcão / «ich habe genug»



1.
o balouçar
da roupa sereníssima
no bairro das traseiras
recorda-me o engano
que ilumina em volta do mundo.
Não saltes tão de força, coração, mas também tu
oscila sereníssimo no tempo que ainda tens
para não desesperar.

2.
E estava-se tão bem

Mas depois abriu
depois fugiu
desapareceu

Depois da tua morte
continua a claridade
a luz faz doer os olhos

E não podendo já
falar ao teu ouvido
nenhum segredo escuto
para dizer ao mundo inteiro

3.
Agora outra vez a caminhar
atraso de propósito o bater dos vários ritmos

Não estou contra
não vou contra
apenas subo um pouco
e desacelero

Assim vou desdobrando
um fio de oração sobre a cidade
Depois dos triunfos
e das pequenas mortes
é só pela humildade (a terra da alegria)
que posso regressar


carlos poças falcão
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013



11 maio 2014

àlex susanna / amis



Depois de alguns anos de pastagem             
sabes finalmente quais são
os teus companheiros de encerro,
quero dizer, de geração:
são poucos, cada vez menos
mas são mais próximos
aqueles que restam.
 
Tranquilizem-se, no entanto,                                    
não vos citarei, meus amigos:
receio que nomeados se volatilizem
- como acontece com certas bruxarias -
e tal coisa far-me-ia muita pena.
Sei quem vocês são, vocês também
- isso me basta.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




10 maio 2014

antónio franco alexandre / terceiras moradas



22

Julgavas, então, que a poesia era um discurso
de palavras em sentido? Sei quanto a musa aprecia
glória, poder e uniforme, quanto aguarda
o cavaleiro que produz.
A vida, afinal, anda lá fora, antes da folha
ter passado a prensa;
a mais pequena árvore é verde eterna, comparada ao arbusto
que, mal tocada a haste, se desvai em fumo.

Por isso eu fico lendo as crónicas, as lendas,
o jornal que, bem ou mal, cruza as palavras com o tempo,
e contudo! quando o lábio se engana, solta
a mais aguda fífia do trombone,
e de repente o corpo sabe a gente, e então se diz:eis
a verdadeira e pura poesia! pois seria, talvez,
somente a tua mão, cobrindo a folha.



antónio franco alexandre
terceiras moradas
poemas
assírio & alvim
1996



09 maio 2014

edmundo de bettencourt / abrigo



Presa da chuva corre a prostituta,
corre presa,
e em frente é a porta aberta do palácio que lhe acena.

Mas à entrada,
o resto duma sereia emerge do escuro,
e um lobo acorda do sono dum tapete,
com uma risonha flor nos dentes,

que a uma claridade subterrânea
o palácio está sem tecto,
suas paredes transparecem,
todo ele é uma poça de água cintilando!

Fora,
uma lira de chuva num deserto
acena à prostituta…



edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981





08 maio 2014

fiama hasse pais brandão / da terra


Amar o mar completa a minha vida
com o tacto de um amor imenso.
Amar ateia a margem
arrebata-me de júbilo e paixão.
Mas veio o vento e, por momentos,
amargurou o meu corpo, o oscilar.
E está o sol aqui, depois de uns dias
de jardim obscurecido, a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como os insectos
ébrios em redor do pólen.

  

fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002