22 fevereiro 2014

josé gomes ferreira / que me importa


II

Que me importa
que  o mundo não tenha sentido
se por aquela porta
entra o bafo comovido
desta luz macia
que em flores se gera.

Viva a anarquia
da primavera!



josé gomes ferreira
café
1945-1946-1947-1948
poesia III
1943-1944-1945
portugália
1971



21 fevereiro 2014

herberto helder / alto dia que me é dedicado,



alto dia que me é dedicado,
mais altas são as frutas se me atrevo a olhá-lo,
no tumulto da alfazema onde aos poucos enquanto morro,
do açafrão enquanto morro aos poucos,
e o oxigénio explode


herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013



20 fevereiro 2014

filipe marinheiro / sozinha confundes-te



Sozinha confundes-te
na crista do beco
realmente alucinante,
mas não mais te conhecerás,
sobretudo porque atrais o poder
de desgastar-te vagabunda
na dificuldade anormal da substância
que olha para ti
e traça-te uma vil voragem de plumas
tendo-se fragilizado no nevoeiro à
tua encoberta nascença!



filipe marinheiro
silêncios
chiado editora
2013



16 fevereiro 2014

felipe benitez reyes / o mar



Se lançassem de uma só vez ao mar
as cinzas de todos os mortos
que vagam pelas brumas da História,
digo que nem toda essa cinza
unânime alteraria
o seu contínuo fluir:
o leve marulhar rude
ou as lendas graves da sua ira.


Errabundo e cativo, mas sempre
com uma ordem
perfeita: misteriosa e calculada,


ouve-o como brama:

o mar bêbado pelas luas,
homérico, mutável, mecânico,
com frotas de peixes
de olhos aterrados que o exploram
como os pensativos peixes coloridos
exploram uma vez e outra e outra vez ainda
o aquário cheio de palmeiras
e tesouros em miniatura de piratas.


Flutuante como o pensamento,
olha-o,
angustiado de azul indefinível,
asmático, grandioso e teatral,
ele,
que recua e invade
segundo um raro método que tem
algo a ver quiçá com os nossos ciclos
de razão e loucura, as duas faces
de uma moeda que nunca cai direita.


Refúgio de seres silenciosos,
inesgotável mar de vaivém de espuma,
tão dado a todo o tipo de metáforas
que sucede às vezes lembrarem-nos
o muito que somos parecidos ao mar.


felipe benitez reyes
tradução de manuel rodrigues




15 fevereiro 2014

guillevic / lição de coisas



O sangue é um líquido complicado
Que circula. É de um vermelho
Que aliás não se vê e que muda
Como uma planura sob várias luas.

O sangue contém corpos numerosos
Dos quais algumas pessoas sabem a fórmula.

É o nosso sangue. É ele
Que anda à volta, que volta,
Que alimenta.

O sangue derrama-se facilmente,
Basta-lhe apenas uma abertura.

O sangue de um morto por acidente
Não é o mesmo, na rua,

Que o de um morto pela liberdade,
Derramado na mesma rua.

Tem cada qual um modo particular
De ser vermelho e de gritar.




guillevic
leçon de choses, gagner (1949)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003




14 fevereiro 2014

sofia leal / o dia parou



1.o dia parou
estou sentada contigo
no passeio perto da minha casa
por cima de nós o semáforo
vai alternando a sua coloração
é necessário contares-me a tua história
dias e noites
até a perderes de vista
já no final a tua voz
torna-se cada vez mais lenta
e adormeces no interior das minhas mãos
no teu sono agitado
constroern-se barcos
prontos a navegar nos rios
que cresceram na Estrada da Luz
barcos à vela sobre uma
água muito transparente
nas margens vendedores
oferecem-te terra fértil
a luz verde acende-se
o teu andar ilumina-se
Por vezes a língua azeda
distorcendo a fala
na fala com o outro
as palavras viram-se
ao contrário
nessas alturas
temo que a casa
subitamente se esvazie
e apenas restem insectos
uivando como lobos
Sou uma intrusa
devia ser detida
ficar presa nos corredores
 com as paredes
inundadas da minha
tristeza — digo por vezes
quando não sei falar


sofia leal
di versos 15
poesia e tradução
junho de 2009
edições sempre em pé
2009




13 fevereiro 2014

jacques prévert / o cábula



  Com a cabeça diz não  
    mas com o coração diz que sim
  diz que sim ao que aprecia  
    e que não ao professor
  cá o temos nós de pé  
    em pleno interrogatório
  a cairem-lhe em cima problemas  
    mas súbito um riso destravado
  toma conta dele  
    e põe-se a apagar tudo
  numerais e palavras  
    as datas e os nomes
  frases e ratoeiras  
    e apesar das ameaças do mestre
  sob a gritaria das crianças encantadas  
    ali naquele quadro negro da desgraça
  com giz de todas as cores  
    põe-se a desenhar 
  o rosto da felicidade  



  jacques prévert




12 fevereiro 2014

maria gabriela llansol / estas árvores balouçam na sua hesitação



190

__________________ Estas árvores balouçam na sua hesitação
Mas prosseguem. Os ramos mais altos precipitam-se,
Abrem no ar pousadas. Os mais baixos ocupam. Sol não
Falta. Há apenas a curva do caminho com incidências
Drásticas na sua respiração. Sim, há ainda as concorrentes,
As sementes ininterruptas, e o incompreensível desprezo
Dos humanos. Parascreve não diz. Se o cortarem, não
Reagirá ­­­­‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑ «Por que não entendeis a leveza de prosseguir?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003


11 fevereiro 2014

inês dias / your funeral, my trial



O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.




inês dias
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012



10 fevereiro 2014

vladimiro maiakówski / digam !



Digam !
Lá porque estão acesas as estrelas,
será porque elas são necessárias a alguém?
Será porque alguém há a desejar que existam?
Será porque alguém chama a esses escarros, pérolas?
E, vencendo
a poeirenta borrasca do meio-dia,
alguém corre p'ra Deus,
temendo chegar tarde,
chora,
beija-lhe a mão nodosa,
implora -
que lhe falta uma estrela! -
jura
que, sem estrelas, não pode suportar este martírio.
E depois,
lá vai com a sua angústia,
mostrando paz na cara.
Perguntando a qualquer:
"Agora, estás melhor, não é assim?
Já não tens medo?
Não?"
Digam !
Lá porque estão acesas
as estrelas -
será porque elas são necessárias a alguém?
será porque é - indispensável,
que cada noite
por cima dos telhados
uma só estrela, ao menos, se ponha a reluzir?




vladimiro maiakówski
autobiografia e poemas
trad. de carlos grifo
presença
1977




09 fevereiro 2014

álvaro de campos / contudo



Contudo, contudo, 
Também houve gládios e flâmulas de cores 
Na Primavera do que sonhei de mim. 
Também a esperança 
Orvalhou os campos da minha visão involuntária, 
Também tive quem também me sorrisse. 
Hoje estou como se esse tivesse sido outro. 
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa. 
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo. 

Caí pela escada abaixo subitamente, 
E até o som de cair era a gargalhada da queda. 
Cada degrau era a testemunha importuna e dura 
Do ridículo que fiz de mim. 

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse, 
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre, 
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo. 
Sou imparcial como a neve. 
Nunca preferi o pobre ao rico, 
Como, em mim, nunca preferi nada a nada. 

Vi sempre o mundo independentemente de mim. 
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, 
Mas isso era outro mundo. 
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja. 
Acima de tudo o mundo externo! 
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.




álvaro de campos




08 fevereiro 2014

antónio ramos rosa / o ponto de partida



Será este o ponto de partida, obscuridade incerta
e sobre o fundo sombrio da morte? A esperança
nascerá deste branco vazio e desta mão de cinza?
O viajante entrou num barco ou numa árvore
que o soergue, ainda hesitante, na imensidade
de uma sombra de astro. Ele aproxima-se
de formas vagas, de espelhos entre pedras,
e junto a um muro sob as estrelas
uma figura de orvalho descalça sobre as ervas.
Tudo flutua ainda, dentro da poeira azul
e púrpura e tudo está esparso e reunido
como na primeira consciência deste mundo
tão longínquo e tão presente como se o sol fosse um perfume
que da montanha descesse sobre as palavras ditas.


antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990


07 fevereiro 2014

dinis moura / funeral



O meu tio levou um requintado fato preto
feito por medida, tecido italiano, caríssimo.
O meu irmão, que detesta gravatas pretas,
colocou uma, porém, talvez para dissimulá-la,
vestiu uma camisa preta.
As minha primas, umas de calças, outras de vestido,
outras de saia, foram todas vestidas de preto.
A minha tia, sempre exagerada,
levou uma minissaia quase curtíssima e uma camisola
exageradamente decotada, tudo da mesma cor, tudo preto.
A minha avó levou um vestido e um xaile da cor
que vem ostentando ininterruptamente há dez anos:
a cor que a morte do meu avô sepultou em todas
as suas roupas: a cor do luto – o preto.
O médico foi de preto,
o advogado também.
Foram alguns amigos, alguns conhecidos,
todos eles vestidos de preto.
De preto foi também a única pessoa
que não conheci.

Só eu chorei.





dinis moura