07 fevereiro 2014

dinis moura / funeral



O meu tio levou um requintado fato preto
feito por medida, tecido italiano, caríssimo.
O meu irmão, que detesta gravatas pretas,
colocou uma, porém, talvez para dissimulá-la,
vestiu uma camisa preta.
As minha primas, umas de calças, outras de vestido,
outras de saia, foram todas vestidas de preto.
A minha tia, sempre exagerada,
levou uma minissaia quase curtíssima e uma camisola
exageradamente decotada, tudo da mesma cor, tudo preto.
A minha avó levou um vestido e um xaile da cor
que vem ostentando ininterruptamente há dez anos:
a cor que a morte do meu avô sepultou em todas
as suas roupas: a cor do luto – o preto.
O médico foi de preto,
o advogado também.
Foram alguns amigos, alguns conhecidos,
todos eles vestidos de preto.
De preto foi também a única pessoa
que não conheci.

Só eu chorei.





dinis moura




06 fevereiro 2014

sebastião da gama / os que vinham da dor



Os que vinham da Dor tinham nos olhos
estampadas verdades crudelíssimas.

Tudo que era difícil era fácil
Aos que vinham da Dor directamente.

A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor directamente.

Os que vinham da Dor directamente
eram nobres de mais p´ra desprezar-vos,
Mar azul!, mãos de lírio!, lírios puros!

Mas nos seus olhos graves só cabiam
as verdades humanas crudelíssimas
que traziam da Dor directamente.



sebastião da gama
campo aberto
1951



05 fevereiro 2014

antónio franco alexandre / anda, vou-te mostrar a terra



XIII

Anda, vou-te mostrar a terra
dos teus pais, avós, antepassados
tão antigos que os podes escolher.
Este aqui é noé, de barba por fazer;
meteu na arca puro e impuro, bem e mal,
inventou o vinho, homem melhor
da sua geração ( não é grande elogio ),
teve filhos, netos, é de crer que morreu.
Estoutro, não sei bem, era pirata na malásia.
Vês as colinas? São tuas, quando
as olhas a direito. Realmente tuas,
parte de um mundo teu.
Sim, isso são filosofias,
tens razão. ( E tem graça ao ter razão ).
Anda daí, vou mostrar-te o colete de forças
onde era costume, sabes, tratar casos assim.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999




04 fevereiro 2014

antonio gamoneda / tenho frio junto aos mananciais




Tenho frio junto aos mananciais. Subi até cansar o
coração.


Há erva negra nas ladeiras e açucenas roxas entre
sombras, mas, - que faço diante do abismo?


Sob as águias silenciosas, a imensidão carece de sig-
nificado.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999




03 fevereiro 2014

sylvia plath / a gralha negra em tempo de chuva




Lá no alto, num ramo firme
arqueia-se uma gralha negra toda molhada
arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.
Não espero qualquer milagre
nem nada

que venha lançar fogo à paisagem
no interior dos meus olhos, nem procuro
mais no tempo inconstante qualquer desígnio,
mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,
sem cerimónia ou maravilha.

Embora - admito-o - deseje
ocasionalmente alguma resposta
do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:
uma certa luz pode ainda
surgir incandescente

da mesa da cozinha ou da cadeira
como se um fogo celestial tornasse
seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos,
assim consagrando um intervalo
de outro modo inconsequente

por nos dar grandeza e glória,
ou até amor. De qualquer modo, caminho agora
atenta (pois isso poderia acontecer
mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,
mas astuta, ignorante

de que um anjo se decida a resplandecer
repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha
ordenando as suas penas negras pode brilhar
de tal maneira que prenda a minha atenção, erga
as minhas pálpebras, e conceda

um breve repouso com medo
de uma neutralidade total. Com sorte,
viajando teimosamente por esta estação
de fadiga, acabarei
por juntar um conjunto

de coisas. Os milagres acontecem
se gostares de invocar aqueles espasmódicos
gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de
                                                                      [novo,
a longa espera pelo anjo,
por essa rara, fortuita visita.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990




02 fevereiro 2014

fernando pessoa / hora absurda




O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e se parte....
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fundo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram-se in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias-férreas com viços daninhos...

Ah! como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas...Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo...Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?...Ditam-se nuas ao luar
Todas as ninfas...Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram fresca sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah!, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há-de ser o Norte e o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque-
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar a sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - "Vitória!"

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...



fernando pessoa




01 fevereiro 2014

paul éluard / a morte o amor a vida



Julguei que podia quebrar a profundeza a imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue

Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula


  
paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




31 janeiro 2014

cruzeiro seixas / tu és meu



Tu és meu
pássaro do deserto
cinzento com mil portas
silenciosas e translúcidas.

Tu és meu
a todo o comprimento
do sol
e afogas-me como um oceano.




artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




30 janeiro 2014

manuel de freitas / el salsero


                                        [para o Manuel João Fradique]

I
Os homens são assim. Bebem de mais,
cantam, esconjuram a morte
chamando-a para mais perto — e ela vem.
É uma ciência nocturna, a dos
homens, enquanto copos e garrafas
martelam sobre o balcão
os compassos de uma música sem saída.

É tão triste às vezes saber
que «à sombra do milho verde
namorei uma cachopa» ─  ou
pedir ao rosto de ninguém
que nos beije muito, como se fosse
esta noite a última vez...
Tão triste, numa noite realmente
última, lembrar outra vez os amigos
que hoje aqui não estão por terem
bebido mais depressa o mesmo copo
letal que nos afasta da morte...

Amores, desamores, injúrias
palavras vizinhas dos punhais.
Coisas que os anos foram sepultando,
quase com doçura ou escárnio.
Porque os homens, quando bebem,
conhecem imensamente a loucura,
sentem nos ombros mais velhos
o peso insidioso da melancolia.
E não é fácil de ver, tanta dor.

Isso mesmo que certas canções
ou a névoa do haxixe nos fazem esquecer
por breves instantes uma vida inteira.
Isso mesmo, ainda, que na derrota
de um sorriso se confunde com o
sudário dos dias. Porque dentro destas
quatro paredes, sabíamos bem, era
proibido amanhecer. Só muito mais tarde,
já sem alma nem dinheiro, os corpos
voltariam a rastejar para a
maldição da luz. Com uma canção
mais fria a escurecer-lhes os lábios.

II
Empalidece agora o sorriso do gusano
na parede, ferem mais as palavras
sem rnesura de Chavela Vargas
e a certeza subitamente real deste último
trago entre os últimos da festa.
As garrafas de várias cores não voltarão
A derramar o seu cálido perfume
e há, talvez, um mapa de afectos que
soçobra, um poema que ninguém escreveu.

Mas a perdição continuará, noutros
sítios, em casa de gente que morre
e entristece de tanto viver. Os dolorosos
amigos. Existirá sempre um vinho forte
a alimentar o epicentro do pânico,
aí onde apenas o vazio tem mãos
capazes de nos amparar na queda.

O que não lemos, o que não amámos,
os países que desconhecemos — tudo isso
ficará dentro destas paredes condenadas
à destruição e às prepotentes razões do lucro.
Perder ─  eis a nossa vocação, a única. Com um
relâmpago de sombra nos olhos apagados.

III
O teu amigo, porém, regressa — abre
pela última vez a porta larga do inferno
e anuncia para a escuridão dos rostos
que «já é dia». Finge também ele sorrir,
perder de pé. Porque há evidências inaceitáveis,
manhãs de metal que nos surpreendem vivos.

Só no táxi abraçamos a certeza do fim, agora
mais palpável, e o dia demolido que nos espera.
Há horas assim — de que a própria morte
se apiedaria, se tivesse tempo.
Uma canção que regressa só para nos dizer
que a perdemos, que é tão tarde o corpo.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




29 janeiro 2014

nikolaï kantchev / arte




Aqui o tempo está à frente do tempo
e esse caso incomparável
só acontece entre os profetas.
 
Apesar disso torna-se necessário
que o nosso impulso para a beleza
se manifeste em todos os instantes.
 
Porque já, ó surpresa,
nas pedreiras de mármore
se trabalha o monumento de amanhã.



nikolaï kantchev
poemas                                      
tradução de egito gonçalves





28 janeiro 2014

gil t. sousa / san giorggio maggiore



23

é neste muito silêncio que se me repete o tempo

no horizonte impossível
ou no ângulo forte desta sombra sagrada
rebentam sonhos
crepitam anseios de viagem
pela ideia antiga de universo
e de humanidade

estes pássaros
dançam só para mim
estou só
neste céu com que me cobres

e são tão
frescas as melodias da água

que por ti me hei-de um dia
pôr a morrer


(veneza, agosto de 2001)



gil t. sousa
água forte
2005



27 janeiro 2014

charles bukowski / uma nova guerra




e pensar que, depois de desaparecer,
haverá mais dias para os outros, outros dias,
outras noites.
cães a passear, árvores oscilando
ao vento.

não deixarei muita coisa.
algo que ler, talvez.

um rebelde na estrada
devastada.

Paris às escuras.


charles bukowski 
a new war
trad. rui manuel amaral 
black sparrow press
1997 




26 janeiro 2014

josé maría cumbreño / herculano



Coloquei sobre a mesa
algumas nozes e escudelas com vinho quente.
Renovei as flores
nas ânforas de barro.
Mandei acender todas as lucernas,
perfumar a câmara com aroma de incenso.
Sem demora,
pedi em voz baixa que não me incomodassem,
que ninguém me interrompesse até à alvorada.
Até que amanhecesse.

Quando os meus escravos vierem
despertar-me
e me encontrarem sentado
frente à janela.
Sentado e em silêncio.
Quando, por acaso, os meus olhos longe distinguirem
a luz de sal do novo dia,
de um dia que não irá alumiá-los,
enquanto perguntam
- meu senhor, a refeição -
quanto tardará o efeito do veneno.



josé maría cumbreño
las ciudades de la llanura
tradução de ruy ventura.
editora regional de extremadura
2000