07 dezembro 2013

andréas empeiríkos / aves do prut



10
Vou apanhar na minha rede a barca
Que me levará hoje para junto de ti.

13
Há flores que se parecem com mãos
Os seus dedos tacteiam e soltam perfume.

16
As minhas pálpebras são cortinas transparentes
Abro-as e vejo à minha frente o que calha
Fecho-as e vejo à minha frente os meus desejos.



andréas empeiríkos
trad. manuel resende




06 dezembro 2013

antónio barahona da fonseca / a saque e a sangue



Na minha cidade a saque e a sangue
um grilo sacana canta e não canta
um grilo couraçado, desesperado
dentro da gaiola, pequena garganta

*

Conheço estas vozes que cheiram a tabaço
e dizem e dizem a saque e a sangue
a missão do poeta na miséria dos tempos:
Construir uma Rosa, suicidar-se estanque

ou viver pesaroso, fumador de navios,
ou vampiro feliz na encruzilhada dos rios


antónio barahona  da fonseca
grifo
1970





05 dezembro 2013

maria teresa horta / despedida



Amor mais do que
amor
vontade ou rasto

ainda mais que vício
espanto ou morte

tão cedo suicídio
ou o teu corpo

amor mais do que
dor
prazer ou tacto

  
maria teresa horta
amor habitado
1963



04 dezembro 2013

m. s. lourenço / alfa


I

flutuo
no ar
esguelho sobre um dos lados
oblíqua em baixo uma superfície
lateral uma paisagem aberta
interior exterior
fronteira a separá-las
no centro palavras desligadas
juntas às vezes
a escorregar no sentido a frase
deslisa num vento
um remoinho no nó sintáctico
(voltar com barras a ligá-las!)
corpos cá dentro chove
alheios olham a corrente

troncos de árvore lamacenta
desço até terra firme
sem molde orgânica ou padrão
ou motus animi continuus
as pás rodam

ou esquema nublado de uma rima
um metro regular
a frase solta aponta para fora
move-se o verbo
sem avistar as outras partes

toco o chão pulveriza-se o sentido
poeira e chuva invadem o meu casaco
saltam as cabras pobre poeta
destruo os telhados com o vento
fugiram há muito alguns traços

escondidos para lá da aldeia
levanto procuro leste
sem sentido ainda
a proposição no seu conjunto
ocasional ao fundo um arco-íris


m. s. lourenço
arte combinatória
1971



03 dezembro 2013

àlex susanna / programa dos festejos



Fechemo-nos em casa
desliguemos o telefone,
destruamos o império
da televisão
jantemos perto da lareira,
ouvindo, calando;
olhamos os quadros
que souberam acompanhar-nos,
ouvimos também alguma
música esquecida,
e então, lentamente,
podemos adormecer
nos braços um do outro
que um mesmo sonho
nos leve para longe:
que nunca nada nem ninguém
ouse interferir                           
nesta nossa frágil
mas plena felicidade:
construamos com ela                                                           
um bastião inexpugnável.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




02 dezembro 2013

gil t. sousa / luto



22

atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração


gil t. sousa
água forte
2005



01 dezembro 2013

al berto / sida



"aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"


al berto
horto de  incêndio
assírio & alvim
1997




30 novembro 2013

stella zagatto paterniani / entre magias



mágico é ter fome todos os dias e saciá-la;
mágico é um cãozinho latir em sol maior;
magia: cubro-me com a lona do circo
e ainda assim sinto frio.

porque sinto meus pelos e poros, um a um,
sei: é mágico meu corpo, ele sabe (e me diz
que não vai amanhecer sol de cegar).

é fácil prever o caminho da formiga:
ela não vai entrar no meu umbigo.
é mágico como as estrelas não caem
e somem e aparecem e somem aparecem e aparecem
quando não olho e olho
elas somem

(nem vai passar o cheiro de merda e mijo,
— meu nariz sabe e mesmo assim durmo)

as lágrimas se formam atrás dos olhos e explodem
                                                      [enquanto grito

sob a lona-cobertor e meus pelos,
um a um, se amansam.

ouço um murmurinho, alguém vem trazer pinga.
durmo bem, acordo quente e com o maior coração do
                                                                  [mundo.



stella zagatto paterniani
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013


29 novembro 2013

samuel beckett / algo ali



algo ali
onde
ali fora
ali onde
fora

o quê
a cabeça que algo senão
algo algures ali fora
a cabeça

ao mais leve mais breve som
já não está e o globo ocular
ainda não nu
o olho abre-se muito
muito
até que por fim
nada mais
o volta a cerrar

assim às vezes
ali fora
algures ali fora
tal como se
como se
algo não a vida
necessariamente

1974



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



28 novembro 2013

margarida vale de gato / christina rossetti



meigos grandes nada cépticos secos
os olhos de corça esgarçada à roda
lança

longos louros soltos em vagas
breves nunca crispadas cabelos
esparge

Christina mansa mente amante
pré-rafaelita ao leito recolhe se cobre
semelha

receio tolhe branca túnica
tersa forma de seios ao canto
paira

aflora sobre auréola a sombra
de Gabriel o irmão. também faz versos
concita

com-paixão.

   

margarida vale de gato




27 novembro 2013

martín lópez-vega / laranja




Alguém a deixou sobre a mesa do jardim, a laranja.
Agora é um símbolo da tarde, essa fruta
brilhando por entre o confuso calor deste fim de dia
luminoso como uma recordação amorosa da adolescência,
como a primeira laranja,
como as mãos que cheiram a laranja.

(Rodearam-na logo as formigas, esvoaçaram
em seu torno mil insectos, bailará a noite
em seu redor.) Mas agora essa laranja na tarde
supõe uma ordem, um sentido, o centro gravitacional do dia.



martín lópez-vega
árbol desconocido
tradução de ruy ventura.
visor
2002



26 novembro 2013

luiza neto jorge / noite-pétala



Posso estar aqui
eu posso estar aqu perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o

posso estar aqui
─  o musgo é lento como a sombra ─
e sei de cór a voz cega das canções
 (viola de silêncio acorda-me)

que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão



luiza neto jorge
a noite vertebrada
1960




25 novembro 2013

andre breton / o grande socorro mortífero


A estátua de Lautréamont
No pedestal de comprimidos de quinino
Em campo raso
O autor das Poesias está deitado de bruços
E perto dele vigia o helodermo suspeito
A orelha esquerda contra a terra é uma redoma
Ocupada por um relâmpago o artista não se esqueceu de
         lhe pintar por cima
o globo azul celeste em forma de cabeça de turco
O cisne de Montevideu de asas abertas sempre pronto a
         batê-las
Quando se trata de atrair do horizonte os outros cisnes
Desceram sobre o falso universo dois olhos de cores
         diferentes
Um de sulfato de ferro sobre o parreiral das pestanas o
         outro de barro diamantífero
Contempla o grande hexágono em funil onde depressa
         se crisparão as máquinas
Que o homem se obstina em cobrir de ligaduras
Reaviva com a vela de rádio as profundezas do crisol
         humano
O sexo de plumas o cérebro de papel vegetal
Preside às cerimónias duas vezes nocturnas celebradas
       para desviar o fogo e inverter os corações do homem
       e do pássaro
A qualidade de convulsionário dá-me acesso a ele
As mulheres deslumbrantes que me introduzem na
       carruagem estofada a rosas
Onde uma cama de rede entrançada com os seus cabelos
       me está reservada
Para sempre
Recomendam antes de partir que não apanhe frio a ler
       o jornal
Parece que a estátua junto da qual a grama das minhas
       terminações nervosas
Chega ao seu destino é afinada todas as noites como
       um piano


  
andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994