10 novembro 2012

valter hugo mãe / ainda pensamos no amor




ainda pensamos no amor
quase só atiçando no
corpo uma loucura pelo
seu próprio
coração

  

valter hugo mãe
a cobrição das filhas
quasi
2001




09 novembro 2012

sylvia plath / medusa





Longe nesta língua de terra de crateras pedregosas,
Olhos revolvidos por paus brancos,
Ouvidos que absorvem as incoerências do mar,
Albergas a tua cabeça sem vida ─ bola de Deus,
Lente de misericórdias,

Os teus parasitas
Fortalecem as suas células descontroladas à sombra da minha
     quilha,
Forçando-me como fazem os corações,
Estigma vermelho mesmo no centro,
Cavalgam na maré agitada até ao ponto mais próximo da partida,

Arrastando os seus cabelos de Jesus,
Será que escapei, pergunto-me.
O meu pensamento vai no vento ter contigo
Meu velho cordão umbilical cheio de lapas, cabo do Atlântico,
Que parece manter-se em miraculoso estado remendado.

Em qualquer caso está sempre lá,
A trémula respiração no fim da linha,
Curva de água crescendo
Diante da minha vara de água, deslumbrante e grata,
Tocando e sorvendo.

Não te chamei.
Não te chamei mesmo.
Todavia, todavia
Tu navegaste até mim por sobre o mar
Gorda e vermelha, placenta

Inibindo a excitação dos amantes.
Brilho de cobra de capelo
Retirando a respiração às campainhas do sangue
Da fúchsia. Eu não podia tomar alento,
Morta e sem dinheiro,

Demasiadamente exposta, como numa radiografia.
Quem pensas que és?
A hóstia da comunhão? A Maria chorona?
Não vou aceitar nenhum bocado do teu corpo,
Garrafa onde vivo,

Sinistro Vaticano.
Estou farta de sal quente.
Vedes como eunucos, os teus desejos
Silvam nos meus pecados.
Fora, fora, tentáculos de enguia!

Não há nada entre nós.
  


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996


08 novembro 2012

mário-henrique leiria / ida sem volta




Acordar na cidade logo da manhã
e esperar a noite com exactidão
no encontrar do último comboio
que parte conciso para outro dia
sair na estação que é central
de outra cidade já a anoitecer
onde talvez seja o lugar habitual
do vendedor ambulante das sortes
quase grandes
no caminho designadamente antecipado
pelo voo dos pássaros migradores
que agora mesmo se vão de partida
para outra cidade de amanhecer definitivo
e depois da viagem sempre conhecida
da porta em porta na cidade
adormecer ao aviso da madrugada
e esperar o sinal propício indicado
pelo caminho persistente dos peixes
a subir o rio exaustivamente nele
acordar na noite da noite na cidade
até chegar o momento muito matinal
de partir no primeiro comboio efectivo
da manhã de outra cidade a entardecer



mário-henrique leiria
contos do gin tonic
editorial estampa
1973



07 novembro 2012

ana luísa amaral / comunicações


  

Entra por essa porta e vem sentar-te
aqui, como daquela vez em que te disse:
os vulcões são pirâmides de luz,
ou campos cheios de sol iluminado.

Terás morrido, sim, e tanto faz
se a sério, se a fingir, os outros o dirão.
Quanto a mim, és fenómeno de gelo
resistente a calor e primavera.

Entra então neste dia, que o sol
resiste ao brilho mais do que neste mês
lhe resistiu, e eu preciso de luz,
não se vê bem agora, é muito tarde,
as luzes nesta sala são baixas e cruéis.

Toma, uma cadeira boa (como a chama
que chega sinuosa): as formas são castanhas,
em perfeita esquadria, e as costas mais direitas
que um icebergue azul na vertical.

Talvez te diga: pirâmides de luz,
estes vulcões. Ou não.
Se eu não estiver, ou não estiveres em casa,
deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua ─




ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




06 novembro 2012

tamara kamenzain / freud




“Sigo para a luz”
dizia-me em sonho meu pai morto.
Seu sorriso se esfumava em dupla lonjura,
trazia no entanto uma tranquilidade luminosa:
havia uma mensagem literal
enunciado claríssimo onde a luz é a luz é a luz é a luz
e aonde ir é desdobrar-se em eco
como só um pai sabe fazer
envolve a alma em branco estende uma fronha
e apoia  dos filhos em branco a cabeça
aí escreve premonições futuras
um destino de grandeza uma via régia
que ele firma e confirma como um médico
deixando-nos numa cura formidável
sua desaparição.



tamara kamenzain
o gueto
trad. carlito azevedo e paloma vidal
livros cotovia
2003



05 novembro 2012

al berto / filhos de rimbaud




I

Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,
recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular
por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

A noite está próxima.

Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.

Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon,
com suas traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade,
com um sussurro cortante nos lábios.
E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes
que ligam uma treva a outra treva.

Caminho como sempre caminhei, dentro de mim
─ rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.

O absinto... esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.
E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar
ao porto - mas os portos são olhos enormes
que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

A noite está próxima.

Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.

Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas
cidades queimadas, desertas... e o vento... o vento cintila
onde cresce o lobo que me ronda o sono.

Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.
De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras,
de nada me serviria saber a geometria exacta dos
cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.

Fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.
O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não regressa,
não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.
Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando
o tormentoso destino dos homens.

Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas...
espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado,
e renego a alegria.

Não semearei o meu desgosto, por onde passar.
Nem as minhas traições.



al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997 




04 novembro 2012

egito gonçalves / o vagabundo decepado (3)





Vagabundeio!
Passo sob o cartaz de um fantoche a cavalo,
passo entre desafios sem fraternidade,
entre mulheres áridas, entre bosques de chamas.
Passo nutrindo-me de palavras como água,
humildemente, sem discursos, desprezando
os pedestais que olho como uma estátua ferida.

A grande roda move-se de manhã à noite,
os números vão saindo, um zero, um sete...

Esta é a terra onde nasci e onde te escrevo.
Aqui jogo às escondidas com a angústia,
aqui fui alistado nos exércitos, naufraguei,
achei na  cinza os meus melhores diamantes,
encontrei a boca e os olhos do amor...
Aqui conservo as rosas que me deste.





egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971



03 novembro 2012

maria gabriela llansol / estou de pé sobre a fronte apelativa...


  

4

Estou de pé sobre a fronte apelativa de uma imagem de mulher.
E por onde ela me atrai, principia a circular meu desejo; afinal,
Converso com ela; mais exactamente, ela fala comigo, pois eu
Raramente abro os lábios. Apenas por olhar me identifico.
Que inventar para lhe pôr na testa? Nada de parecido com um beijo.
Com um desafio. Sinto
A força dos cavalos à deriva. Vejo que meu corpo se senta, se deita,
Pousa a cabeça no chão, pelo lado da cara. Choro em torrentes nesse
Corpo total. Muitas são
As lágrimas que merece a alegria de conhecer.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




02 novembro 2012

alberto augusto miranda / morrer à tua porta





O que eu desejava, realmente, era ir, esta noite, morrer à tua porta.
Mas mora lá tanta gente que tu podias pensar que eu não tinha morrido à tua porta.
Se ao menos o teu quarto tivesse uma varanda.
Ou se praticasse a técnica da transferência e vivesse as imagens da substituição...
ou se sinceramente amasse a minha analista.
Não sublimo os desejos por incapacidade.
E recalco mais este.
Não posso, como desejava realmente, ir morrer à tua porta.
Fico a gemer.
Se, ao menos, tu morresses!




alberto augusto miranda
linha de linho
vila real
1983




01 novembro 2012

harold pinter / a mesa





Janto demoradamente
Todo este tempo

Aos meus pés ouço-os
Cair na gordura

Em queijo e ovos
Em ossos de fim de semana

O ruído da luz
Deixou o meu nariz.

Tatuado por tudo o que
Não podia ver

Murmuro na
Minha orelha mais surda

O meu nome apagado
Já esteve aqui

Ou então um bluff total
Conservou-o cuidadosamente.

A isto encadeado
Apaixonado por isto

Avanço de gatas
Sem dizer palavra

E cheio de homenagens
Açambarco os restos

Sem fôlego,
Por baixo desta enorme mesa.


1963




harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




31 outubro 2012

antónio josé forte / dente por dente





               Outros antes de nós tentaram o mesmo esforço: dente por dente:
  não, nunca olhar de soslaio e manter a cabeça escarlate, o vómito nos
  pulsos por cada noite roubada; nem um minuto para a glória da pele.
  Despertar de lado: olho por olho: conservar a família em respeito, a
  esperança à distância de todas as fomes, o corno de cada dia nos
  intestinos.
  Aos dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e do
  amor,
  os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no festival das letras,
  abrir passagens a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não
  temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares.
               Fora do meu reino toda a pobreza, toda a ascese que gane aos
  artelhos dos que rangem os dentes; no meu reino apenas palavras
  provisórias, ódio breve e escarlate. Nem um gesto de paciência: o sonho
  ao nível de todos os perigos. Pelo meu relógio são horas de matar, de
  chamar o amor para a mesa dos sanguinários.
               Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher a tempo a nossa
  morte e amá-la.




antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958



30 outubro 2012

vítor nogueira / casal


  

É preciso começar por algum lado.
No primeiro plano, à esquerda, preparado para entrar
no estádio adulto da vida, um casal de namorados.

Por enquanto, são apenas criaturas de cores vivas.
E assim é necessário dar-lhes tintas bem moídas.
Mas não é exactamente um bom presságio.
Começai por desenhar e colorir de morte-cor.
Chama-se morte-cor a primeira tinta que se dá
nas figuras, porque sempre morrem as cores.

Tal qual morrem devagar as primaveras
e as sebes do jardim e as viúvas
que passaram mesmo agora pelo casal de namorados
mas preferem pertencer a outra malha.




vítor nogueira
resumo a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



29 outubro 2012

jesus urceloy / (o poema)






    Não passe este prospecto sem o ter lido todo.
    Não passe uma porta se encontrar alguém que chora do outro lado.
    Observe bem antes que o acusem de homicídio,
    que uma sombra urgente o abrace com mágoa, o
    confunda com outro,
    lhe faça sinais e convide para a cama…


    Portanto, leia em pormenor o papel; depois vêm-nos
    reclamar e não estamos, compreenderá, para isso.


    Se lhe surgir qualquer dúvida,
    se lhe vier de repente um sorriso aos lábios ou pensar que lhe
                                                                                           mentem,
    rasgue o papel em mil pedaços, não se preocupe, há perdão
    para o furtivo,
    não constará no expediente, continue.


    Momentos há em que rasgados os papéis mais fácil é,
    mais bela é a leitura:
    reconhece-se antes a palavra seguinte,
    pronuncia-se com facilidade o verso e deixam de notar-se
    as lentas torções do decassílabo.


    Ao fundo, na expressão:
    não se esqueça de apagar o cigarro, abrir a alma,
    murmurar à sua sombra algum silêncio:
    apagar a luz, sentir entre os lençóis
    o livro a fechar-se, ouvir as boas noites.





jesus urceloy
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000