27 setembro 2012

t. s. eliot / east coker


  

V

E assim aqui estou, no meio caminho, tendo passado vinte anos —
Vinte anos muito mal gastos, os anos de l'entre deux guerres —
A tentar aprender a usar as palavras, e cada tentativa
É um inteiro recomeço e um diferente tipo de fracasso
Pois apenas se aprendeu a tirar o melhor das palavras
Para aquilo que já não tem de se dizer, ou para a maneira pela qual
Já não se está na disposição de o dizer. E assim cada investida
É um novo começo, uma incursão no inarticulado
Com equipamento gasto sempre pronto a deteriorar-se
Na desordem geral de sentimentos imprecisos,
De indisciplinados pelotões de emoção. E o que há para conquistar,
Por força e obediência, já antes foi descoberto
Uma vez ou duas, ou várias vezes, por homens que não podemos ter esperança
De emular — mas não se trata de competição —
Trata-se apenas da luta para recuperar o que se perdeu
E achou e perdeu outra e outra vez: e agora, sob condições
Que parecem desfavoráveis. Mas talvez nem ganho nem perda.
Para nós, há apenas a tentativa. O resto não é connosco.

A casa é de onde se começa. À medida que envelhecemos
O mundo fica mais estranho, o padrão mais complicado
De mortos e de vivos. Não o momento intenso
Isolado, sem antes nem depois,
Mas uma vida inteira a arder em cada momento
E não a vida inteira de apenas um homem
Mas de velhas pedras que não podem ser decifradas.
Há um tempo para o anoitecer sob a luz das estrelas,
Um tempo para o anoitecer sob a luz do candeeiro
(A noite com o álbum das fotografias).
O amor é mais aproximadamente ele próprio
Quando o aqui e o agora deixam de importar.
Os homens quando velhos deviam ser exploradores
Aqui ou acolá não importa
Temos de estar quietos e quietos mover-nos
Para uma outra intensidade
Para uma ulterior união, um comungar mais fundo
Através do frio escuro e da desolação vazia,
O grito da onda, o grito do vento, as vastas águas
Da procelária e do golfinho. No meu fim está o meu começo.





t. s. eliot
quatro quartetos
trad. gualter cunha
relógio d`água
2004



26 setembro 2012

antónio dacosta / poema português





Ó minha terra de nevoeiros míticos
De imerecidas serras frescas
O sol que aquece os teus dias não é nulo
Nem os epistémicos deuses que te espreitam
Do alto sobre as tuas sete colinas
Ávidas estátuas tristes de serem velhas sombras
Antigas e só oníricas de vez em quando
Deixai pois ó pretas gravatas públicas da verdade
Deixai o sonho ser tão real como são
As pedras os muros as casas as amplas cidades
A morna brisa que te aquece as noites
Há-de amanhã soprar outra e outra vez
E tudo o que no redondo mundo é vivo
Será vida como agora a vejo eternamente a mesma.





antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994




25 setembro 2012

gil t. sousa / nenhuma escada


   
7

todos os relógios
estavam do teu lado


eu só tinha a minha torre
de espelhos
só tinha a noite
e o silêncio

e nenhuma escada




gil t. sousa
água forte
2005



24 setembro 2012

eduardo garcía / a chuva no deserto





Sob a indiferença e o enfado
oculta-se uma emoção por explorar.
Aí onde há roupa estendida, pratos
sujos, despertadores queixosos,
carros que nos esperam, auto-estradas
inúteis que conduzem ao trabalho,
ao choro de um telefone, aos gestos
vazios que nos estende o hábito,
também rompe  o feitiço da luz,
a sua voz debaixo da pele flui devagar.
Ouve como soam nesta página
os seus corcéis de vento, as suas promessas.




eduardo garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





23 setembro 2012

w.b.yeats / a rosa do mundo





Quem sonhou que a beleza passa como um sonho?
Por estes lábios vermelhos, com todo o seu magoado orgulho,
Tão magoados que nem o prodígio os pode alcançar,
Tróia desvaneceu-se em alta chama fúnebre,
E morreram os filhos de Usna.

Nós passamos e passa o trabalho do mundo:
Entre humanas almas, que se agitam e quebram
Como as pálidas águas em seu fluxo invernal,
Sob as estrelas que passam, sob a espuma do céu,
Vive este solitário rosto.

Inclinai-vos, arcanjos, em vossa incerta morada:
Antes de vós, ou de qualquer palpitante coração,
Fatigado e gentil alguém esperava junto ao seu trono;
Ele fez do mundo um caminho de erva
Para os seus errantes pés.




w. b. yeats
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé agostinho baptista
assírio & alvim
2001



22 setembro 2012

josé luis piquero / o que disse judas nessa noite


  
                                 Os discípulos olhavam uns para os outros,
                                         pois não sabiam de quem falava.
                                         Mt. 13.22





Longamente adestrados na suspeita e fartos
de mentir-nos uns aos outros,
canalhas que sorriem
enquanto bebem os seus whiskies.

Tempo de contrição: fizemo-nos tanto mal.

E hoje, se tento olhar-nos como quem de fora
alcança ver o centro das coisas,
vejo monstros perfeitos: moscas contra um vidro.

E contudo
houve um tempo de rosas selvagens no mundo
que habitámos a sós como amantes plurais,
e era boa essa mão distraída num ombro,
beber do mesmo copo em lentas cerimónias de saliva,
nus de verdade
contra  o céu bêbedo de uma noite inventada.

A noite é o salão que enchemos de fumo quase às escuras.
Tenho medo da noite que nos tira o pouco que nos resta ainda:
essas rosas, as mãos sobre o ombro.

Amigos tantas vezes atraiçoados:
depois  das mentiras, perdoemo-nos
ainda, enquanto há tempo.
No fundo continuamos a ser aqueles amantes.

Depois, se a verdade só nos fizer mal,
voltemos a mentir-nos, mas desta vez a sério, como dantes.

Refugiemo-nos juntos numa grande mentira redentora:
a cascata selvagem onde nadar nus,
os copos de vidro,
cabeças que repousam sobre peitos tranquilos.

Ah, não quero, não quero
que morra o que talvez dure um dia,
a sua marca inolvidável diante do fumo disperso deste bar.

Pois a noite, o fumo, asfixiam-nos;
somos água de gelo sem sabor,
vultos na névoa. Estamos a morrer
e que pouco vos importa.

Faz-se tarde. Pensai nessa música
 assobiada ao entardecer, quando sorri a água
e os corpos estão em paz consigo.
Brinquedos de calor, ilhas agradecidas.

Preferis a verdade de um destino automático?

Adeus, meus traídos amigos Muito tempo
Amei vossas feições que já outra luz torna feias e estranhas

Vai amanhecer o dia sobre as flores secas.

Encerremos o mundo com um beijo.





josé luis piquero
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



21 setembro 2012

todos a Belém




Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!


mário cesariny




20 setembro 2012

manuel alegre / ítaca




Não vale a pena suportar tanto castigo.
Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.
Onde quer que te encontres está contigo
dentro de ti em casa na distância
onde quer que procures há outro mar
Ítaca é a tua própria errância.



manuel alegre
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



19 setembro 2012

eugénio de andrade / rumor





Quando o outono
já não pode senão melancolia
é que o secreto rumor da água
inunda os lábios de oiro





eugénio de andrade
mar de setembro
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




18 setembro 2012

harold pinter /deus




Deus olhou para dentro do seu secreto coração
Em busca de uma palavra
Para abençoar a multidão dos vivos cá em baixo.

Mas por mais que olhasse como pode
E suplicando aos fantasmas para viverem de novo
Mas sem ouvir nenhuma canção naquele quarto
Descobriu com dor ardente
Que não tinha bênçãos para dar.

1993




harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006




17 setembro 2012

mário cesariny / discurso sobre a reabilitação do real quotidiano





XIII

e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir
      é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda
      o fogo de artifício
é preciso o demónio ainda corpulento
é preciso a rosa sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o logro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado

E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rogo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas



  
mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981

16 setembro 2012

mário-henrique leiria / forte de caxias, março de 1952





nós somos…
nós somos inúmeros
desconhecidos
feitos de revoltas e de lutas
nós somos inúmeros
feitos de sangue e de combates
nós somos todos os de nome ignorado
feitos de força e de amor
somos aqueles que
de Ocidente a Oriente
olham o sol bem de frente
e acreditam nas estrelas
somos os que caem a sorrir
que morrem a cantar
folhas ignoradas duma árvore
que ao tombar     verticais     belas
vêm fecundar a raiz
de outras árvores por nascer
aquecer a terra
onde nascerão papoilas vermelhas
que serão colhidas por crianças sorridentes
nós somos os que caminham
de olhos bem abertos virados à manhã
canções nos lábios

nós somos inúmeros
desconhecidos…





mário-henrique leiria
depoimentos escritos
editorial estampa
1997





15 setembro 2012

mudam-se os tempos, mudam-se as vontades





Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.