07 setembro 2012
yusuf al-saigh / poema
quando regresso a casa, cada tarde,
a minha tristeza sai da alcova dela,
com a sua capa,
e começa a seguir-me:
se caminho, caminha,
se me sento, senta-se,
se choro, chora com o meu pranto
até à meia-noite. e nos cansamos.
então, vejo que a minha tristeza
entra na cozinha, abre a porta da geleira
tira um pedaço escuro de carne
e prepara-me o jantar.
yusuf al-saigh
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001
06 setembro 2012
günther eich / confiança
Em Salónica conheço alguém que não lê.
E em Bad Nauheim.
Já são dois.
günther eich
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de joão barrento
assírio & alvim
2001
05 setembro 2012
miguel serras pereira / remo de água
(Valada do Ribatejo)
Voltará o verão à terra
larga
e a carne à noite branca
do começo
mas tu não voltarás e não
passaste
e aconteces para sempre
sempre que aconteces
Atravessas um remo de água
submerso
na água que inunda ao alto
o meu olhar
E é então que o tempo passa
e ao passar se esquece
de me levar consigo ou te
deixar ficar
miguel serras pereira
trinta embarcações para
regressar devagar
relógio d´água
1993
04 setembro 2012
anónimo japão / nem uma palavra
Nem uma palavra trocaram entre si
o anfitrião o hóspede
e o crisântemo branco
anónimo, japão
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de jorge sousa braga
assírio & alvim
2001
03 setembro 2012
henri michaux / leitura
Os livros são
chatos de ler. Não há neles livre circulação. Somos convidados a seguir. O
caminho está traçado, único.
Muito
diferente é o quadro: imediato, total. À esquerda, também à direita, em
profundidade, sem peias.
Nele não há
um trajecto, há mil trajectos, e as pausas não são indicadas. Mal a gente o
deseje, de novo o quadro todo, por inteiro. Num instante está ali tudo. Tudo,
mas nada ainda é conhecido. É aqui que se deve começar a LER.
1950
henri michaux
o retiro pelo risco
tradução
júlio henriques
fenda
1999
01 setembro 2012
caio resende / evoé
Nada está perdido! O azul
do sol
nasce para dizermos
"o azul do céu"
– tudo se debruça aos
olhos!
Numa orgia de vida
a morte é uma invenção
barata,
e só morre quem vive de
olhar para ela.
A aranha fia a sua teia
para a mosca debater-se
inútil,
no entanto não existe a
morte
duma mosca a debater-se.
Toma teu vinho, fecha teus
olhos
estar vivo é embebedar-se
de tudo!
caio resende
31 agosto 2012
ana hatherly / wer abend sind sie, sag mir, die fahrenden
Os errantes
os fugazes viajantes
que nós somos
buscando sempre a vibração perdida
diariamente caem
da árvore da memória
onde brilha o nome
o melancólico ansiado barco
Oh que percurso essencial
descrevem os errantes
na sua busca em queda abismados
sobre si mesmos voltados
percorrendo
a arriscada síntese do exílio!
E tu
vontade insatisfeita
onde encontrarás
os frutos da árvore do querer
as alegrias do estar e do ser
que nos rompem o peito
de tanto as ansiar?
A rosa do olhar
que na procura reverdece
a todo o instante esquece
o som da queda
e escuta só
o tilintar da sorte
no inventado bolso da esperança
que nos empurra
impele
lisonjeia
num breve sorriso captado
num furtivo afago
ilusão de ternura
Mas logo logo
algo nos arranca o curativo
nos retira o tapete mágico do repouso
nos remete
para a nossa condição de feridos atingidos
E na busca heróica
do instante transfigurado
o activo martírio de prosseguir
faz de nós
eternos estrangeiros mal-amados
desamparados
peregrinos recém-chegados
ana hatherly
rilkeana
assírio & alvim
1999
30 agosto 2012
jenny mastoráki / o rio
O poema omnipotente,
como rio mítico,
barbudo,
de cartucheira à bandoleira,
vem pela rua abaixo a buzinar
enfadando as amantes.
E o poeta
por que te apaixonaste aos dezoito
já não existe,
pois existir quer dizer
tenho casa na rua kypséli
vá visitar-me no fim-de-semana
ou apresento-lhe a minha esposa.
Há uns tipos, em altos estrados,
a fazerem truques com lenços coloridos,
como outrora os charlatães
que vinham de carroça
e te tiraram o dente são
por dois taleres.
jenny mastoráki
grécia (n. 1949),
to soi, kedros, 1978.
tradução de manuel resende
29 agosto 2012
jean genet / note-se, eu não quis dizer
Note-se, eu não quis dizer
que um acrobata a oito ou dez metros de altura
deva encomendar-se a Deus (os funâmbulos à Virgem),
orar e benzer-se antes de entrar na pista,
porque a morte está ali,
na cúpula do circo.
Falei ao artista como a um poeta.
Dançasses a um metro do tapete e seria igual a minha
prescrição.
Trata-se, já entendeste, da solidão mortal,
de uma zona desesperada e brilhante
onde o artista actua.
Ainda assim acrescento
que deves arriscar uma morte física definitiva.
Exige-o a dramaturgia do Circo.
Com a poesia, a guerra, a tourada,
é um jogo cruel que ainda subsiste.
Tem sua razão, o perigo:
vai obrigar os teus músculos a atingirem o rigor perfeito —
o menor erro leva-te à queda com doença, ou morte
— e este rigor será a
beleza da tua dança.
Pensa desta forma:
um desastrado dá o salto mortal no arame, falha, mata-se,
e o público não fica muito surpreendido.
Já esperava isso, ou quase.
Tens que saber dançar de uma forma muito bela,
fazer gestos puríssimos para surgires precioso e raro,
e ao preparares o salto mortal deixares o público assustado,
quase indignado por um ser tão gracioso se arriscar à morte.
Vences o salto, porém, e voltas ao arame;
os espectadores vão aclamar-te por a tua habilidade não ter
consentido
que um dançarino precioso morresse de morte impúdica.
Se quando está só ele sonha, e sonha consigo próprio,
provavelmente há-de ver-se em plena glória;
e talvez cem ou mil vezes se tenha empenhado
a captar a sua Imagem futura:
uma noite, no arame, numa noite de triunfo.
Faz o esforço de se imaginar como gostaria de ser.
E há-de Ir longe a fazer-se aquilo que deseja,
aquilo que sonha.
Mas isto mesmo é o que procura:
parecer mais tarde a imagem de si, que hoje inventa.
E tudo, quando aparece no arame de aço,
para a memória do público só registar a imagem
que hoje inventa para si próprio.
Curioso projecto: Imaginar,
fazer sensível este sonho que será sonho
de outras mentes!
Na verdade a morte horrível,
o monstro horrível que te espreita, é que vão ser derrotados
na Morte
que ainda há pouco referi.
(...)
jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984
28 agosto 2012
antónio gancho / ilustrazione
Faço um poema e nasce uma cidade
invento o conteúdo geográfico das coisas.
Escrevo um nome e nasce Dublin
porque Dublin escrevi.
Se onde ponho um traço nasce uma via de ferro
então é um comboio em direcção a Roma.
Faço uma cidade e vejo-me um neón
ponho um anúncio e nasce uma cigaretta.
O italiano compõe o soar da palavra
eu dou uma entoação ao segredo do fim
Se há um horizonte para divulgar o Sol
há uma expectação para divulgar o coração
Se há um moinho para os lados de Perpignan
há Daudet a repousar o Sol numa cadeira
Se há Avignon, uma festa, a França, a Península Itálica,
Burgos e todas as catedrais espanholas
há uma cidade cheia de Sol a compor a direcção
Se o mar fica no fim
Lisboa fica ao pé de Lisboa fica súbito
como se o Tejo fosse um braço decepado
e um cacilheiro total o pano de uma bandeira
Pensa-se no rumor tribal que inunda todas as ruas
faz-se um boulevard duma avenida nossa
põe-se Lautéamont a inventar um prédio.
Há a loucura a inundar a parede
o relógio que
se primeiro bateu na cabeça de Poe
bate depois no sangue feito do conto
divulgado no livro
Lê-se o fígado do poeta no álcool derramado
sobre o desmaio de Ligeia
se esta tem as mãos ebúrneas nasce âmbar
nas mãos brancas duma conceição tripartida.
Ah, se onde ponho a imaginação nasce um lírio
derramem-me a história duma amante sobre a cabeça
pois sou o amante duma perversão absoluta.
Não rasgues o sentido do ombro aí onde tens o tatu do
destino
e aí onde só a virgindade do teu androceu malino
pode faltar a dimensão do totem a inundar de carácter
todo o céu africano.
Ah, nasça-me um árabe de luz com seu corpo moreno
contradizendo a logica
nasça-lhe uma idade de rosto sua idade gidiana
para compor a tenda com precaução indefinida.
Reveja-se o jeep inglês de Lawrence
que inundava o deserto duma celtidade absoluta,
o zénite solar sobre o bico da tenda.
Só a imagem dum rio pode dar ao poema
toda esta noção geográfica que o poema não tem.
Bramaputtra
se nasceres no papel vou dizer à ondina do gnomo
que a floresta não constrói.
Ponho uma fonte a cantar na cabeça do gnomo
e o gnomo surge e nasce
como o ícone divulgado.
É rica a mitologia germana
para dar um sentido ao godo que de chifres na cabeça
usa um segredo quotidiano pendular
que é o pulso esquerdo da fêmea.
Põe-se-lhe a data
e o poema nasce
rubicundo
como a ponta de um lápis
que escrevesse no registo
o nome macho dum bebé.
I achieve
I finalize
eu acabo
eu finalizo.
É o poema terminado.
antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995
27 agosto 2012
antónio franco alexandre / um dia
Um dia abres os olhos e descobres
os inexactos corpos misturados
e ficas sem saber de que maneira
este estranho centauro nomear.
Já te espantou o lume, quando
viste
uma língua no sonho da saliva,
e te riste, de ser tão branco o
sangue
que nas beiras da noite
adormecia.
Agora é o teu corpo que procura
na orla da floresta, uma fogueira
onde acordar as mãos de forma
humana,
e resolver enfim, mas para
sempre,
se ser o sacro emblema do horror
ou o primeiro verso de um poema.
antónio franco alexandre
poemas
assírio & Alvim
1996
26 agosto 2012
antonio gamoneda / poema 2
Lancei ao abismo o osso da
misericórdia; não é neces-
sário quando a dor faz parte da
serenidade, mas a luci-
dez trabalha em mim como um
álcool enlouquecido.
Sei que as unhas crescem na
morte. Não
chega ninguém ao coração.
Despojamo-nos de nós mesmos
ao expulsar a falsidade,
esfolamo-nos e
não vem ninguém. Não
há sombras nem agonia. Bem:
não haja mais do que luz. Assim é
a última embriaguez: partes
iguais
de vertigem e esquecimento.
antonio gamoneda
trad. de hugo branco
4º encontro de poesia de aveiro
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