07 março 2012

julio martínez mesanza / las trincheras





Caíram as torres, e o deserto
é agora do tamanho da alma:
as torres que levantei, o deserto
que eu quis manter afastado da alma.
Os inimigos que inventei morreram,
se há outros não quero imaginá-los:
portanto, não virão os inimigos.
E os amigos não virão também,
como não irei eu a parte alguma:
ficaram apanhados nos seus reinos,
perplexos como eu, sem esperança,
e olham as torres desmoronadas
que foram sua paixão e defesa,
dono de suas almas o deserto.




julio martínez mesanza
las trincheras
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998




06 março 2012

pier paolo pasolini / uma educação sentimental…





Não é Amor. Mas em que medida é minha
a culpa se não converto em Amor
os meus afectos? Muita culpa, de acordo,
se pudesse viver dia após dia
de uma louca pureza, de uma piedade cega.
Escanda1izar com a minha mansidão.
Mas a violência em que me atordoo,
dos sentidos, do intelecto, era desde há anos
o único caminho. À minha volta,
nas origens, só havia a Língua das fraudes
instituídas, das ilusões devidas,
que as primeiras angústias
de um menino, as paixões pré-humanas,
já impuras, não exprimia. E quando,
adolescente, conheci neste país
algo que não era a alegria
de uma vida de criança — num país
provinciano, mas para mim absoluto, heróico —
foi a anarquia. Na nova e já mesquinha
burguesia de uma província sem pureza,
a primeira aparição da Europa
foi para mim aprendizagem do uso mais
puro da expressão, que a escassez
da fé de uma classe moribunda
iria ressarcir com a loucura e os tópoi
da elegância: que seria a indecente clareza
de uma língua que revela
a vontade inconsciente de não ser,
e a consciente vontade de subsistir
no privilégio e na liberdade
que por Graça são pertença do estilo.



pier paolo pasolini
poemas
de «la ricchezza» (1955-59)
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005






05 março 2012

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral




I

Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro um relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.





antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999





03 março 2012

ruy belo / turismo

  


Eu vi morrer um homem e caminho
Vários motivos de morte e uma
agenda mas
almoço
Há mesas e cadeiras e passeios e
sabe-me
a café
Mistério de maresia ou de ninguém





ruy belo
solidão e morte
todos os poemas I
assírio & alvim
2004


02 março 2012

tiago araújo / o lugar do morto

  




ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário.
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.




tiago araújo
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




01 março 2012

gil t. sousa / lições





47

não há nada tão triste
como a primeira coisa
que escondemos numa gaveta


ou a última pessoa
que enterrámos num papel



gil t. sousa
falso lugar
2004



29 fevereiro 2012

andre breton / as atitudes espectrais







Não dou nenhuma importância à vida
Não pego com alfinetes na importância a mais ínfima borboleta de vida
Não importo à vida
Mas os veios do sal os veios brancos
Todas as bolhas de sombra
E as anémonas do mar
Descem e respiram dentro do meu pensamento
Vêm das lágrimas que não verto
Dos passos que não dou passos duas vezes passos -
Na memória da areia ao encher da maré
As grades estão no interior da gaiola
E os pássaros vêm das maiores a1turas cantar diante delas
Uma passagem subterrânea une todos os perfumes
A mulher que lá entrou um dia
Tornou-se tão brilhante que não a vi
Com estes olhos que a mim mesmo viram arder
Tinha já a idade que hoje tenho
E vigiava-me vigiava o meu pensamento como um guarda-nocturno numa fábrica sem fim
Só eu vigiava
A praça continuava a encantar os mesmos eléctricos
As figuras de gesso nada haviam perdido da sua expressão
Mordiam a figa do sorriso
Sei de um tecido numa cidade perdida
Se me apetecesse aparecer-vos vestido desse pano
Imaginariam chegado o vosso fim
E o meu
Enfim as fontes saberiam que não se deve dizer Fontaine
Atraem-se os lobos com espelhos de neve
Tenho uma barca solta de todos os climas
Sou arrastado por um banco de gelo de dentes flamejantes
Corto e racho a lenha desta árvore sempre verde
Um músico ata-se às cordas do seu instrumento
O Pavilhão Negro do tempo de nenhuma história de infância
Aborda um navio que não passa do fantasma do seu
Há talvez uma bainha para esta espada
Mas nesta bainha existe já um duelo
Em que os dois adversários se desarmam
o morto é o menos ofendido
o futuro não é nunca

As cortinas jamais corridas
Tremulam nas janelas por construir
As camas feitas de todas as flores-de-lis
Resvalam sob os candeeiros de orvalho
Uma noite virá
As pepitas de luz imobilizam-se no musgo azulado
As mãos que fazem e desfazem os nós do amor e do ar
Mantêm a transparência para quem vê
As palmas sobre as mãos
As auréolas nos olhos
Mas o braseiro das auréolas e das palmas
Acende-se começa a arder no ermo da floresta
Lá onde os cervos inclinam a cabeça para ver passar os anos
Ainda só se ouve uma fraca pulsação
A gerar mil rumores mais leves ou mais surdos
E esta pulsação perpetua-se
Há vestidos vibrantes
Vibração em uníssono com a pulsação
Mas quando quero ver as caras das que os vestem
Uma grande névoa levanta-se da terra
Por baixo do campanário atrás dos mais elegantes reservatórios de vida e de riqueza
Nas gargantas que escurecem entre duas montanhas
No mar à hora de arrefecer o sol
As estrelas separam os seres que me acenam
Mas o carro lançado a toda a desfilada
Leva-me as hesitações até à última
Que me espera lá longe na cidade onde as estátuas de bronze e de pedra trocam de lugar com as estátuas de cera
Banians banians


Le Revolver à cheveux blancs (1932)





andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



28 fevereiro 2012

al berto / eras novo ainda





procuro-te no meio dos papéis escritos
atirados para o fundo do armário de vidrinhos
comias uvas no meio da página

a seguir era como se fosse noite
havia olhares que se cruzavam corpos
deambulações pela praia
era noite e alguém se aproximava

eu estava passeando os dedos
pelas nódoas frescas do vinho sobre a mesa o caderno
onde de quando em quando rabiscava um rosto
e listas de nomes que não queria esquecer

paguei o pão o vinho o queijo
levantei-me
tu cortaste-me a fuga vagarosamente preparada
pediste-me um cigarro

na outra página estávamos rindo
estendidos no pobre embarcadouro de madeira
planeávamos atravessar a noite mágica do rio

a página seguinte está em branco
mas lembro-me que te agarrei a mão e disse:
todos os cigarros do mundo são para ti
  



al berto
salsugem
contexto
1984




27 fevereiro 2012

helga moreira / canta, embebeda-se pelos bares

  



Canta, embebeda-se pelos bares
ou não se embebeda e só o luar
guarda na mala

ou não canta e tece
pequenos vestígios de fogo.

Recorda macieiras, papoilas,
alguma poeira imperceptível,
febres de verão.





helga moreira
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



25 fevereiro 2012

anaïs nin / a casa do incesto




Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projectar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projectada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.





anaïs nin
a casa do incesto
trad. isabel hub faria
assírio & alvim
1993




24 fevereiro 2012

antonio gamoneda / sábado






Meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.


Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente nos
suicidas; está a criar a velhice:


ontem e hoje são já o mesmo dia no meu coração.





antonio gamoneda
livro do frio
(sábado)
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


23 fevereiro 2012

josé luis garcía martin / ruas





Ruas de uma cidade que não conheço
com pouca gente e vento e chuva cinza.
Espero por quem não chega enquanto altas
se acendem luzes em janelas sós
e uma mulher passeia numa esquina.
Há olhos que me fitam um instante
e não sabem ler palavras que não digo:
«Dá-me outro nome, muda o meu destino.»




josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998


22 fevereiro 2012

sophia de mello breyner andresen / o poeta trágico




No princípio era o Labirinto
O secreto palácio do terror calado
Ele trouxe para o exterior o medo
Disse-o na lisura dos pátios no quadrado
De sol de nudez e de confronto
Expôs o medo como um toiro debelado





sophia de mello breyner andresen
arquipélago
dual
caminho
2004