24 novembro 2011

antónio pedro / protopoema da serra d’arga




Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga

Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia

O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos

Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há

A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria

As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados

É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar

Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar

Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade

Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda

Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros

Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um

Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San Lourenço da Montaria

Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor

Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito

Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações

É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade

Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada

Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San Lourenço da Montaria
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres

Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias

Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar

Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada

Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San Lourenço da Montaria"


Moledo, Agosto de 1948




antónio pedro
antologia poética
angelus novus
1998



23 novembro 2011

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral




V

Vestido de cavalo e fina seda
e coberto de escamas luminosas
é como se tivesse uma outra idade
(a verdadeira) e o jovem corpo
capaz de atravessar muros e medo.
Inclinarias sobre a minha boca
um nome arrevezado com sabor
a terras estrangeiras visitadas
secretamente, em noite toda escura,
envolto, nu, em glória impermeável.
Vais-me dobrar em dois como se dobra
um dia que passou sem nada dentro,
o velho ardor de nuvens encardidas;
sem ver na minha voz como cantava
ao telefone a sombra da memória
do desejo que dói como um veneno.





antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999



22 novembro 2011

amália rodrigues / fado português









O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.





poema de josé régio
música de alain oulman





21 novembro 2011

antónio gamoneda / pavana impura




Envelheceu dentro de teus olhos; eras a doçura e o extermínio e amei o teu corpo em seus frutos nocturnos.

Tua inocência é como uma faca diante de meu rosto,

mas pesas no meu coração e, como um mel escuro, sinto-te em meus lábios ao encaminhar-me para a morte.



  

antonio gamoneda
livro do frio
(pavana impura)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999



19 novembro 2011

josé tolentino mendonça / os versos






Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta





josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



18 novembro 2011

luis vaz de camões / esparsa





     Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m´espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado.




luís vaz de camões
poesia lírica


17 novembro 2011

mário cesariny / ortofrenia






Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
               de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém





mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




16 novembro 2011

ibn 'ammâr /a al-mutamid





  fitei intensamente a lua:
  era o teu rosto
  na noite do desespero.
  de ti tive abundância
  em tempo de penúria.
  pude viver em graça
  no abrigo que me davas.

  ai, a saudade dessa estima antiga!
  doce era ser sob a tua sombra:
  errava no verde prado
  perto da fonte de água fresca!





  ibn 'ammâr
  1031-1084
   o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe
   tradução de adalberto alves
   assírio & alvim
   1999





15 novembro 2011

gil t. sousa / eis o lugar



41

 
eis o lugar
da secura súbita dos rios

o deserto estridente
das horas

onde a palavra
se apaga

e os lábios
talham

o novíssimo nome
da morte

eis o tempo
que se esconde
no tempo

a paisagem falsa
da noite
iluminada

o rosto assassino
a mão que esmaga
a luz

no frágil ofício
da doçura

eis o amor
o secreto sangue

no incêndio
dos espelhos

a cinza solta
sobre a ilusão

dos pássaros




gil t. sousa
falso lugar
2004



14 novembro 2011

luis buñuel / polisoir milagroso




No inverno os gritos dos semáforos caem ao mar
crivados de vento e de crucificação
Numa gota do meu sangue pode afundar-se um
        barco
do meu sangue caindo sobre o peito
de uma marquesa Luís XV de espuma

Esta paisagem gela menos ao espelho
do que sobre as unhas dos mortos
que hão-de ressuscitar com os dedos em flor
flor de agonia extinta e de salvação

Dividida como um vale de Josafat
espera-a a risca do meu cabelo
enquanto Cristo condena
a virgem Maria com um penteador branco
dará um naco de pão aos condenados
e porá um pássaro de carícias
na testa dos que se salvarem





luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977


13 novembro 2011

ezra pound / despedida de um amigo




Serras azuis a norte das muralhas,
Um rio branco a serpentear por elas;
Aqui nos devemos separar
E seguir por mil milhas de erva morta,

A mente como ampla nuvem flutuante,
O pôr do sol como o adeus de velhos conhecidos
Que à distância se curvam de mãos postas.
Os nossos cavalos relincham um para o outro
                  quando nos afastamos.


Rihaku






ezra pound
cathay
tradução gualter cunha
relógio d´água
1995



11 novembro 2011

philip larkin / janelas altas





Quando vejo um casal de miúdos
E percebo que ele a anda a foder e ela
Usa um diafragma ou toma a pílula
Sei que isto é o paraíso

Com que os velhos sonharam toda a vida —
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem debulhadora fora de moda,
E toda a gente nova a descer pelo escorrega,

Interminavelmente, para a felicidade. Será
Que alguém olhou para mim, há quarenta anos,
E pensou: Isso é que vai ser boa vida;
Nada de Deus, ou de suores nocturnos,

Ou medo do inferno, ou ter de esconder
Do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c’um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros? E de imediato,

Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.





philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004




10 novembro 2011

rené char / o barulho do fósforo




Fui educado entre as fogueiras, junto a brasas que não acabavam em cinzas. Nas minhas costas o horizonte móvel de uma janela cor de açafrão reconciliava a penugem castanha dos canaviais com o plácido pântano. O Inverno favorecia a minha sorte. As achas caíam sobre esta frágil ordem mantida em suspenso pela aliança do absurdo com o amor. Ora me sopravam na cara o abrasamento ora uma fumarada acre. O herói doente sorria-me deitado na cama quando não fechava os olhos para sofrer. Perto dele terei aprendido a ficar em silêncio? A não impedir o caminho do calor cinzento? A confiar a lenha do meu coração à chama que o conduziria até às centelhas ignoradas dos enclaves do futuro? As datas apagaram-se e não conheço as convulsões do compromisso.




rené char
sete apanhados pelo inverno
contos da balandrane
este fanático das nuvens
trad. y. k. centeno
livros cotovia
1995