09 julho 2007

reflexões / teoria das artes literárias de Home





Teoria das artes literárias de Home



Foi talvez na análise das artes literárias, a que uma boa metade dos seus volumosos Elements of criticism se consagra, que Home melhor mereceu o nome de Aristóteles inglês. A preocupação concreta, o exemplo, as citações; o método comparativo que se exerce entre estas diversas citações; o sentido e o gosto da classificação; a enumeração e a análise dos sons, das partes dum discurso, da sintaxe, das regras de métrica e de prosa harmónica, dos tropos e das figuras, constituem um conjunto cuja riqueza concreta é digna dos trabalhos mais minuciosos duma ciência moderna das artes, e não tem comparação em toda a estética anterior, a não ser com certos tratados especiais da arte de escrever ou melhor ainda, o modelo de todos desde a Antiguidade, a Retórica de Aristóteles. Mas esta nova teoria da arte literária é precedida duma estética geral da expressão e dos seus meios, que a enriquece e a enquadra, dando-lhe o carácter de sistema.


1. A expressão artística

Ë onde Shaftesbury deixou o problema das artes que, com um outro espírito, Home o retoma. Home verifica que, de todas as belas-artes, só a pintura e a escultura são, por natureza, imitativas. Pelo contrário, é das artes não imitativas que Home trata. Um campo ornamentado não é cópia ou imitação da natureza, mas a própria natureza embelezada. A arquitectura é produtora de originais e não de cópias da natureza. O som e o movimento podem, numa certa medida, ser imitados pela música, mas a música é sobretudo, como a arquitectura, produtora de originais. A linguagem também não é uma cópia da natureza: e é significativo que um capítulo sobre a arquitectura e a arte dos jardins se siga ao seu sistema da arte literária. Sem dúvida os sons podem, à maneira das onomatopeias, assemelhar-se pela suavidade ou rudeza às ideias que excitam; do mesmo modo, a rapidez e a lentidão de pronunciação têm alguma semelhança com o movimento que a palavra significa. Não é menos verdade que o poder imitativo das palavras não vai longe. Ë muito verdade também que a plenitude, a suavidade, a rudeza do som das palavras são por si sós música e compõem na palavra uma beleza sensual para o ouvido: é o seu segundo efeito, independente da significação do poder imitativo.

Mas seria erro não descobrir na palavra uma beleza própria da linguagem: essa beleza, nascendo do seu poder de exprimir os pensamentos, está apta a ser confundida com a própria beleza do pensamento: a beleza do pensamento, transferida para a expressão, fá-la aparecer mais bela. Contudo, essa beleza deve ser distinguida da beleza do pensamento. É, na realidade, distinta. As causas da beleza original da linguagem, considerada como significativa, serão expostas aqui. Essa beleza é a beleza de meios apropriados a um fim, o de comunicar o pensamento, e é evidente que de várias expressões, todas acompanhando o mesmo pensamento, a mais bela, no sentido em que a palavra aqui é tornada, é aquela que, de modo mais perfeito, responde ao seu fim.

2. O jogo das representações e das paixões: suas leis

Observemos as emoções e as paixões. Podem ser aprazíveis e penosas, agradáveis e desagradáveis. Mas não se distinguiram cuidadosamente uma da outra: agradável e aprazível são considerados sinónimos. Ora, isso é um grave erro no domínio da ética. Há paixões penosas que são agradáveis e paixões agradáveis que são penosas. Daí a existência de sentimentos mistos, como o heroísmo e o sublime, o trágico e o risível. A piedade é sempre penosa e todavia é sempre agradável. A vaidade, pelo contrário, é sempre agradável e desagradável. A ciência da crítica deve, pois, aprofundar mais essas distinções que o simples conhecimento vulgar. É preciso ter ainda em conta o jogo dos cambiantes, do crescimento e do declínio das paixões, da sua interrupted existence, Um autor prevenido sabe este jogo da intermitência das paixões, da propensão de certos temperamentos; a perfeição do primeiro choque nas emoções de subitanidade, como o medo, a cólera; o ritmo lento ou vivo de crescimento ou decrescimento das paixões; o que nelas há de excessivo; a queda das paixões quando tocam o seu termo; o efeito também do costume e do hábito; o efeito inverso da novidade.

Tem em conta ainda não só as leis da evolução das paixões, mas o facto de emoções e paixões poderem ser coexistentes. Certas emoções podem suscitar vários sons simultâneos. Há emoções combinadas que dão apenas um e não dois ou vários sons no seu conjunto. As emoções perfeitamente semelhantes combinam-se e unem-se, reforçam-se; as emoções opostas sucedem-se e alternam. Se as emoções são desiguais em força, a mais forte, após um conflito, extinguirá a mais fraca. Ora, todas as observações precedentes têm a maior utilidade nas belas artes. Muitas regras práticas derivam daí: a associação das emoções do som e das palavras na música vocal, a sua congruência, as suas dissociações; a tragédia, a ópera, etc.

A coloração e a influência da paixão afectam as nossas percepções, as nossas opiniões, as nossas crenças. A paixão faz-nos acreditar nas coisas diferentemente do que são; todos os erros ou as faltas trágicas vêm daí.

As emoções, enfim, assemelham-se às suas causas. Uma queda de água sobre os rochedos cria no espírito uma agitação confusa e tumultuosa, extremamente parecida com a sua causa; um movimento uniforme e lento cria um sentimento calmo e gracioso, etc. Daí a empatia ou a «simpatia» que, segundo Home, muitas vezes se lhe assemelha: A contrained posture, useasy to the man himself, is desagreable to the spectator.


3. A linguagem das paixões

Significa isto que as paixões têm a sua linguagem. A arte é a linguagem das emoções. Daí as suas espécies, consoante o que traduz - beleza, grandeza e sublimidade, movimento e força, cómico, dignidade e graça, ridículo, espírito — e acima de tudo isto a ordem e a harmonia que as equilibram - as semelhanças e as disparidades, a uniformidade e variedade, a congruidade e a propriedade.

Significa sobretudo que as emoções e as paixões se exprimem. Têm os seus sinais exteriores. A alma e o corpo estão tão intimamente ligados que «cada agitação na primeira produz um visível efeito no segundo», Home prossegue: «A esperança, o temor, a alegria, o desgosto mostram-se exteriormente; o carácter dum homem pode ler-se no seu rosto; e a beleza, que tão profunda impressão faz, é bem conhecida como resultado não tanto de feições regulares e duma bela carnação como duma natureza amável, do bom senso, da doçura ou duma outra qualidade de espírito, expressa pela atitude.»

Ora os sinais exteriores da paixão são de duas espécies: voluntários e involuntários; entre os sinais voluntários, alguns são arbitrários, outros naturais. As palavras são sinais voluntários arbitrários. A outra espécie de movimentos voluntários compreende certas atitudes, gestos, etc. Os sinais involuntários ou são temporários (e desvanecem-se com a emoção que os provoca) ou tornam-se sinais permanentes duma paixão formada violenta e gradualmente. Os sinais naturais das emoções, quase os mesmos em todos os homens, formam uma linguagem universal.

Ora nenhum dos sinais das emoções deixa o espectador indiferente: produzem diversas emoções. Cada paixão ou classe de paixão tem os seus sinais particulares. Por isso compreendemos de maneira inata os sinais exteriores que se referem a uma determinada paixão: «A paixão, estritamente falando, não é objecto do sentido externo, mas os seus sinais exteriores são-no.» Por isso ajuizamos rápida e seguramente o carácter, conforme a aparência exterior.

Os sentimentos não são menos reveladores. Cada pensamento gerado pela paixão é chamado sentimento. Quer isto dizer que a paixão ou a emoção não deve separar-se dele. É infringir a lei de conveniência da linguagem com a paixão fazer com que a paixão se retire dela. Home dá como exemplo os Franceses em que cada personagem discorre como se fosse um frio e desligado espectador dos seus próprios sentimentos.

Finalmente, a paixão é eloquente. Entre os pormenores em que se exprime a parte sociável da nossa natureza, observa-se uma propensão para comunicar as nossas opiniões, as nossas emoções e todas as coisas que nos afectam. Ora é preciso que a linguagem, isto é, o tom e a paixão concordem: é preciso que haja congruência de tom. Um deve assemelhar-se a outro e convir-lhe como seu trajo. Os sentimentos são ajustados aos caracteres e a expressão aos sentimentos. Daí os cortes bruscos da paixão, o desenrolar assintáctico dos solilóquios; daí o acordo das próprias imagens com a paixão ou a emoção.


4. Valores da linguagem

Quer isto dizer que há diferentes valores e belezas diversas na dicção duma só coisa, e que as palavras e a arte literária exprimem as paixões e as emoções que estão encarregadas de reproduzir (não de imitar) mais ou menos bem. Existe pois um estudo cerrado e avançado de todos os recursos do discurso, da fonética, do vocabulário, da sintaxe, dos tropos e das figuras, da unidade geral da obra. Ser bem sucedido é um perpétuo problema de expressão e a arte literária é uma arte de bem dizer.

Por isso a obra conclui por uma procura duma norma do gosto, como começara por uma introdução sobre o gosto. Porque o problema que a arte literária põe vai muito mais longe do que ela e supõe toda uma cultura, imaginação, paixões civilizadas e valores diversos da sua expressão. A arte literária está acima de todas as artes. A sua própria função, expressiva e apaixonada, faz dela a mais requintada das artes do gosto e a arte mais embebida de crítica.













raymond bayer
história da estética
trad. josé saramago
editorial estampa
1979





07 julho 2007

sábado






Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.




Isto era o destino:


chegar à margem e ter medo da quietude da água.











antonio gamoneda
livro do frio
(5-sábado)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999





05 julho 2007

febo del poggio






Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que importa o que outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração…

Acordo. Tenho diante de mim, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir… Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais.










marguerite yourcenar

o tempo esse grande escultor
trad. helena vaz da silva
difel
2001








03 julho 2007

diz...







diz aquilo que o fogo hesita dizer,
sol do ar, claridade que ousa,
e morre porque o disseste por todos.









rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000








four boys on a beach







Winslow Homer
Four Boys on a Beach, c. 1873
John Davis Hatch Collection, Andrew W. Mellon Fund
1979.19.1
National Gallery of Art





01 julho 2007

para um livro de leituras escolares







não leias odes, meu filho, lê antes horários:
são mais exactos. desenrola as cartas marítimas
antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes.
o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas
nas portas e marcar a fogo no peito os que digam
não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara.
treina-te nas pequenas traições, na mesquinha
fuga quotidiana, úteis as encíclicas
mas para acender o lume, e os manifestos
são bons para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas
para assoprar-se nos pulmões do poder
o pó fino e mortal, moído por
aqueles que aprenderam muito

e são meticulosos por ti.










hans magnus enzensberger
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978





27 junho 2007

hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo


22 de agosto de 1994



Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu pode-
ria escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imã-
gens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:

«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»


Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:


que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, que-
rem ser reais,
e não morrer.


Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.

Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.









maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996







25 junho 2007

paixão





estou no mais alto
da pura manhã

o meu coração é uma lágrima enorme
um frágil astro
que procura na linha dos teus lábios
o despertar generoso
dos solstícios
o alegre andamento
das estações

e quando desces a montanha do teu sono
e ficas tão nua da noite

eu
eu só sou
o sereno rio que passa
e que numa paixão de luz
te leva
ao azul infinito do mar









gil t. sousa
poemas
2001





avion arc en ciel








Eduardo Luiz (1932-1988)
avion arc en ciel (1987)
óleo sobre tela, 81x100 cm
colecção particular (França)






23 junho 2007

o limiar e as janelas fechadas







O que é certo é que gostei de ti.
O resto não: se exististe,
e se assim foi, qual a cor dos olhos, ora verdes
ora cinzentos, deles levantou-se uma vez
um bando de andorinhas. Quais. As rápidas,
as que não andam, as que se amam no ar.
Como foi. Ficaste doente
ou coisa assim, levaram-te, muito se passou,
acho que ia ter outro filho e esqueci-me de ti
até ouvir-te, esta noite, a horas impossíveis,
vem comigo, é tempo. Larga tudo e sai,
espero por ti ao pé da cancela.
Mas cheguei lá e o trinco
estava solto, batia ao vento
contra o poste, fechei-o, voltei para trás,
a pensar em ti, que estiveste lá,
sabe-o Deus, que abriste a cancela,
que gostei de ti e também
que a porta não encaixava bem.










eva gerlach
alguns poemas
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994









22 junho 2007

está-se a fingir muito bem







(…)

Está-se a fingir muito bem.
Finge-se quase até ao esquecimento.
Há paisagens, ruas, cinemas, amores, dinheiro,
pensamentos, palavras, estações do ano
e obras de arte.

Diz-se: a vida.

Ou: o tempo.

E um dia abre-se o livro
e vê-se de novo a fotografia.
E já não se recomeça a leitura no mesmo ponto.
O que se roubou foi o tempo,
sim, mas não naquele primeiro sentido suposto.
A antiquíssima imagem fixa
serve para se roubar ao tempo a sua qualidade de perdão.

Porque a idade não ensina a anuência aos bons
e fáceis sentimentos.
A idade é: cada vez mais atenção.
Só te resta isso, caminhador:
o perigo.
O perigo que é o conhecimento,
o conhecimento ganho na atenção.

Um homem que conquistou a sua idade
não pára diante da fotografia antiga
para se comover e murmurar:
a mãe com o seu filho ou o filho com a sua mãe.

Ele pensa: quem são?
o que fazem um ao outro?
Ele ouve:
vou morrer, e vou deixar-vos descansados.
E ouve a sua própria voz:
então morra.

E as mãos inocentes.

De uma delas sabe que se moveu
como se agarrasse um punhal
— a pequena mão inocente registada com oito anos.

Descanso?
Mas isso conhecia ela bem que seria impossível.
O que ela dizia era assim:
morro para que tu, tu, tu,
não tenhas nenhuma espécie de descanso.

Um pouco mais, um pouco mais
— é para isso que as imagens são imóveis.
Tu próprio não és uma criatura móvel,
a menos que fales em atenção,
em profundidade.

Desce àquilo em que te encontras imóvel.

Mas em vez disso saímos para a rua,
à procura dos velhos companheiros:
os que se vão suicidar,
os que se encontram à entrada do seu irrevogável romance de esquizofrenia,
os que de longe escreverão uma carta
pedindo para os ajudarmos a virem morrer nesta cidade branca
que, do outro lado,
quando se está com o fígado desfeito e a cabeça a tremer,
a gente imagina metaforicamente aérea,
varrida por ventos puros.

Saímos em busca dos bêbados.

Pretende-se a ilusão de espaços dinâmicos,
figuras que se propaguem através deles,
o empolgante cinetismo das visões,

E que haja tempo, o tempo, o tempo.

Que as coisas avancem,
desfazendo os nós ferozes onde a angústia se concentrou.

Uma semana de bebedeira ininterrupta
— e aparecem as amiguinhas,
vamos todos de um lado para outro,
bando apocalíptico,
animado por um furor malsão, uma alegria brutal.

Arranjamos um quarto,
despimo-nos,
e depois estamos noutro quarto,
e estamos a despir-nos,
e de novo a fazer amor,
quatro, seis, oito em cima do tapete —
o terrível milagre de uma alucinação de pernas,
braços, seios, mãos, sexos, coxas, cabeças, vestidos, camisas.

E uma madrugada, só,
vagueando pelos cais desertos,
no meio da luz suja e trémula,
ressurge o horror da inteligência.

Vê-se tudo, e seria preciso morrer.

E então volta-se para casa,
procura-se a fotografia no livro,
no fundo de uma gaveta,
e está lá isto: o tempo não existe.

Seria possível uma pequena piedade por nós próprios,
mas somos tão pouco sentimentais,
nós.

Não gostamos da piedade.

Descobre-se que a mãe não era para piedades.
A perversa cabeça infantil
entra nela como um punhal,
e a mãe, sem conhecer o peso do braço do cavalheiro,
olha o espaço, de lado, neutra,
ligada àquela espécie de enigmático crime,
à obscura vingança
no outro lado da sua profecia do descanso para eles, para ele, ele
— para ti.

Decifrando a metáfora,
percorrendo os caminhos para descobrir as deslocações das partes
e, assim, recompor a verdade do texto
— a fotografia, a realidade, a vida
— ele descobre que toda a gente tem as mãos cheias
de sangue.

Que nada foi criado
que o não fosse no abismo das destruições.
E entendendo enfim a linguagem das fotografias,
ele assume a sua desgraça,
e a insignificância dela,
e supõe poder avançar,
liberto,
para a sua própria morte,
algures num tempo.

(…)










herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968






20 junho 2007

os paraísos artificiais, o vinho





A ALMA DO VINHO


Uma noite, a alma do vinho cantava nas garrafas:
«Homem, vai de mim para ti, ó caro deserdado,
Nesta prisão de vidro e de selos vermelhos,
Um canto cheio de luz e de fraternidade!

Sei quanto é preciso, sobre a colina em chamas,
De esforço, de suor e de sol esbraseante
Para engendrar-se a minha vida e ser-me dada alma;
Mas não serei ingrato nem malfazejo,

Pois é imensa a alegria que sinto quando caio
Na garganta de um homem gasto pelo trabalho,
E o seu cálido peito é um túmulo tranquilo
Onde melhor me sinto do que nas frias caves.

Ouves tu ressoar as canções dos domingos?
E a esperança que ri no meu seio palpitante?
De cotovelos na mesa e arregaçando as mangas,
Tu me glorificarás e estarás radiante;

Iluminarei os olhos de tua mulher encantada;
A teu filho darei a cor e as forças
E serei para esse frágil atleta da vida
O óleo que reforça os músculos dos lutadores.

Em ti cairei, vegetal ambrósia,
Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,
Para que do nosso amor nasça a poesia
Que subirá a Deus como uma rara flor!»





O VINHO DOS TRAPEIROS


Muitas vezes, à luz vermelha de um candeeiro
Cuja chama o vento sacode e cujo vidro atormenta,
No coração de um velho subúrbio, labirinto lodoso.
Onde a humanidade se agita em fermentos tempestuosos,

Vê-se um trapeiro que vem, meneando a cabeça,
Tropeçando, e esbarrando nas paredes como um poeta,
E, sem dar atenção aos espiões, seus súbditos,
Expande todo o coração em gloriosos projectos.

Presta juramentos, dita leis sublimes,
Derruba os maus, ergue de novo as vítimas,
E sob o firmamento como um dossel suspenso
Enebria-se dos esplendores da sua própria virtude.

Sim, estes seres fatigados de desgostos domésticos,
Moídos do trabalho e atormentados pela idade,
Extenuados e vergados sob um monte de restos,
Vomitados confusos do enorme Paris,

Regressam, perfumados de um odor de tonéis
Seguidos de companheiros, encanecidos nas batalhas,
Cujos bigodes pendem como os velhos estandartes.
As bandeiras, as flores e os arcos triunfais

Erguem-se diante deles, solene magia!
E na estrondosa e luminosa orgia
Dos clarins, do sol, dos gritos e do tambor,
Trazem a glória ao povo ébrio de amor!

Assim através da Humanidade frívola
O vinho rola ouro, deslumbrante Páctolo;
Com a garganta do homem canta as suas proezas
E reina por seus dons como os verdadeiros reis.

Para afogar o rancor e embalar a indolência
De todos esses velhos malditos que morrem em silêncio,
Deus, tocado de remorsos, fizera o sono;
O Homem juntou-lhe o Vinho, filho sagrado do Sol.





O VINHO DO ASSASSINO


Minha mulher está morta, sou livre!
Posso agora beber quanto quiser.
Quando chegava a casa sem dinheiro
Rasgava-me as fibras aos gritos.

Sou tão feliz como um rei;
O ar é puro, o céu admirável...
Tivemos um Verão assim!
Quando me apaixonei por ela.

A horrível sede que me dilacera
Precisaria para se satisfazer
De tanto vinho quanto pode conter
O túmulo dela; — e não é dizer pouco:

Atirei-a ao fundo de um poço,
E empurrei-lhe mesmo para cima
Todas as pedras do bucal.
Hei-de esquecê-lo se puder!

Em nome dos juramentos de ternura,
De que nada pode desligar-nos,
E para nos reconciliarmos
Como nos bons tempos do nosso entusiasmo,

Implorei-lhe um encontro,
À noite, numa rua escura.
Ela veio! — doida criatura!
Todos somos mais ou menos doidos!

Estava ainda bonita,
Embora fatiga da! e eu,
Amava-a de ‘mais! por isso
Lhe disse: Sai desta vida!

Ninguém pode entender. Um só
Desses bêbedos estúpidos
Terá pensado nas noites mórbidas
Fazer do vinho uma mortalha?

Essa crápula invulnerável
Como as máquinas de ferro
Nunca, de Verão ou de Inverno,
Conheceram o verdadeiro amor,

Com os seus negros bruxedos,
Seu cortejo infernal de alarmes,
Seus frascos de veneno, suas lágrimas,
Sem ruídos de grilhões e de ossadas!

— Eis-me livre e solitário!
Esta noite estarei bêbedo a cair;
Depois, sem medo e sem remorso,
Deitar-me-ei no chão,

E dormirei como um cão!
A galera de pesadas rodas
Carregada de pedras e de lamas,
O vagão desgarrado pode vir

Esmagar-me a cabeça culpada
Ou cortar-me pelo meio,
Rio-me de tudo como de Deus,
Do Diabo ou da Santa Mesa!





O VINHO DO SOLITÁRIO


O olhar singular de uma mulher galante
Que desliza para nós como o raio branco
Que a lua ondulosa envia ao lago trémulo
Quando quer banhar nele a beleza preguiçosa;

O último saco de escudos nas mãos de um jogador;
Um beijo libertino da magra Adeline;
Os sons de uma música enervante e carinhosa,
Semelhante ao grito distante da dor humana,

Tudo isto não vale, ó garrafa profunda,
Os bálsamos penetrantes que a tua pança fecunda
Reserva ao coração sedento do poeta piedoso;

Tu deitas-lhe a esperança, a juventude e a vida,
— E o orgulho, tesouro da indigência,
Que nos torna triunfantes e iguais aos Deuses!





O VINHO DOS AMANTES


Hoje o espaço é esplêndido!
Sem freio, sem esporas, sem brida,
Partamos a cavalo no vinho
Para um céu feérico e divino!

Como dois anjos atormentados
Por calentura implacável,
No azul cristal da manhã
Sigamos a miragem distante!

Suavemente balouçados sobre a asa
Do turbilhão inteligente,
Em um delírio paralelo,

Minha irmã, nadando lado a lado,
Fugiremos sem descanso nem tréguas
Para o paraíso dos meus sonhos!












charles baudelaire
os paraísos artificiais
trad. josé saramago
livros b
estampa
1978




19 junho 2007

tango azul





uma vez a polícia alvejou-me.
a história tem os seus quês. eu conto-te:


apanharam-nos num automóvel gamado
cercaram-nos
mandaram-nos sair do chaço
e apoiar as mãos na parte de trás
da mala para
nos revistarem
algemarem
nos levarem de cana.
era sexta-feira. no sábado
tinha pensado estrear roupa para ir todo
catita
à discoteca
a meter-me com as gajitas.
não hesitei dei a volta e desatei a correr.
estava perto a esquina da salvação.
um dos chuis gritou-me:


PÁRA, FILHO DA PUTA, OU MATO-TE!


atirou
disparou a 5 metros de distância
e falhou
escapei
vesti a minha roupa nova
dei show.


mas o importante da história
é o que eu digo sempre:

devia ter acertado

devia ter-me matado nesse mesmo instante

quando não tinha medo da morte

quando ainda era

feliz.










david gonzález
trad. gs
a partir do texto original em
poesia espanhola, anos 90
joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000