10 junho 2007

a mulher e o lobo










Eduardo Luiz
(1932-1988)
a mulher e o lobo (1971)
óleo sobre tela, 89x116 cm
colecção Manuel de Brito






09 junho 2007

fastos III







artur hipólito morreu com 62 an
os, 20 anos após ter feito 42, mas
na altura quem diria?


heitor fragoso morreu atropelado.
foi levado para o hospital, mas es
queceram-se duma parte do corpo
no local do acidente.

manuel testa morreu sem se ter c
onseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.

arnaldo rodrigues caiu a um bur
aco da canalização e nunca mais
foi visto.

jeremias cabral pôs termo à exist
ência por motivos desconhecidos.

zeca gomes morreu em defesa da
pátria mas a pensar noutra coisa.

antónio de oliveira morreu igual
a si mesmo: triste sinal dos te
mpos!

bernardo leite pôs-se a pensar na
morte e não conseguiu voltar a
trás.

ivo gouveia tinha uma agência f
unerária e escolheu para si um
caixão representativo.

guilherme silva fechou-se no sót
ão, para morrer num lugar eleva
do.

luís dimas respirava saúde, agora
respira um hálito de eternidade.

antónio garcia, o coveiro, teve u
ma síncope e caiu dentro da cov
a que estava a abrir.

bento nogueira engasgou-se com
um pedaço de carne e desapare
ceu do nosso convívio.

paiva de jesus enforcou-se.

joão baptista viu o cunhado lev
antar-se do caixão e teve uma sí
ncope.

lourenço pinheiro estava a ver a
trovoada e um relâmpago entrou
lhe por um olho e saiu-lhe pelo
outro.

jorge velez de castro finou-se
após uma longa vida de sacrifí
cios, toda dedicada ao bem-comu
m. e foi assim: depois de ter inge
rido o seu sumo de laranja, foi c
onduzido para a cadeira de rep
ouso pelo enfermeiro de confian
ça. nela se conservou, de boca en
treaberta e olhos fechados, até
às onze horas. às onze horas, o e
nfermeiro de confiança aproxim
ou-se com a intenção de o condu
zir ao banho. pondo delicadamen
te a mão nas costas da cadeira,
disse: são horas do banho, senhor
director. como este não desse si
nal de ter ouvido, o enfermeiro
de confiança, com a costumada jo
vialidade, debruçou-se e repetiu:
são horas do banho, senhor direc
tor. posto isto, empurrou a cadei
ra até ao balneário, passou um br
aço pelos rins outro por baixo d
os joelhos do director, e assim o
levou para a água, só então se da
ndo conta de que ele já não vivia.

zé maria, o peidolas, foi expulso
da vida pela autoridade compet
ente.

joão gaspar foi um nobre e val
oroso homem que morreu heroi
camente no campo da honra. p
az à sua alma.

raul santos deitou-se um dia e p
or mais que o sacudissem nunca
mais se levantou.

alfredo penha caiu tão desastrada
mente da cama que nem é possív
el dar pormenores da sua morte.

joaquim perestrelo morreu no me
io da missa, qual quê! ainda a m
issa não ia a metade!

sousa dias morreu de pé, mas en
terraram-no deitado, como toda a

gente.













alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990









05 junho 2007

retiro de cada instante





(…)

digo mais uma vez:


como
se fosses
o vento
passaste
pela minha
vida –



passaste por este bloco apaixonado, primitivo, alucinado, obscuro, rumoroso, desprendido, fatigado, perseverante, abrasado – como se fosses apenas uma visita subtil da brisa irrompeste por este campo silencioso, inquieto, duríssimo, taciturno, abjecto, obstinado, espesso, inventado – como se mais não fosses do que uma fresca brisa matinal visitaste esta pequena ilha cruel, à deriva, transparente, dissolvida no seu sal, estéril, fantástica, humilde, incandescente que foi o meu corpo, o espaço vulnerável do meu comércio.


E abandonaste-me.
Num deserto que não conhecia.
Com uma casa inteira para percorrer com os meus passos por dentro da noite.



Ou fui eu quem te
abandonou?












casimiro de brito
imitação do prazer
publicações dom quixote
1991



02 junho 2007

como é que os loucos podem ter sono!





- Há pessoas, imaginem, que não dormem!
- E porque não dormem?
- Porque nunca têm sono.
- E porque não têm sono?
- Porque são loucos.
- Então os loucos não têm sono?
- Como é que os loucos podem ter sono!








franz kafka
crianças na estrada nacional
(kinder auf der landstrasse)
10-12-1912







hidden secrets



Joy Christiansen
hidden secrets (detail 2)
2002

01 junho 2007

um adeus português





Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti












alexandre o'neill
no reino da dinamarca (1958)
poesias completas
assírio & alvim
2000











30 maio 2007

coisas que nunca vi





quero levar-te nas mãos
coisas que nunca vi

quero cegar

e com a loucura
dos dias iguais

erguer
a muralha das horas

longa
como o longo beijo da noite

lenta
como o lento vermelho das rosas








gil t. sousa
20-05-2002









29 maio 2007

sem medo…






entra o vento na alma.
coalha o poema dentro do corpo
e os dedos deixam de cantar.


param as horas na mente branca.
o riso salva o silêncio
na sombra dos olhos abissais.


cessa a vida calcada,
num livro envolto de miragens.
insignificante o negrume do desejo.


na areia enterra-se o prazer.
pestífero difuso da mágoa
de ser ameaça insuspeita


esquece o acaso inimigo
em dias de discernir ruídos.
o dia cansado senta-se


não há vacuidade no valor de base
da imaginação fluente.
os sonhos não têm peso


a linguagem da morte encalhou,
resta um corpo na poesia despida!









l.maltez






28 maio 2007

deixou um rasto de sombra riscado de luzes





deixou um rasto de sombra riscado de luzes
sobre o incauto coração
e as nuvens enfeitavam as janelas fechadas
carimbou a sua posse com marcas de anil fechado
anil irisado anil nacarado
e as árvores murmuravam lampejos frementes
prendeu nas suas penas as almas românticas
as almas sem reflexo
e o sol tingia de carmim as mãos dos inocentes
imaginou um cenário de cordeiros degolados
sobre aras pagãs
e isaac morria às mãos do anjo mensageiro
apoderou-se irredutivelmente dos vazios
dos nadas das agonias
e madalena morria aos pés do prometido
amalgamou os universos destroçados os
estreitos vales das mortes
e
enfim
a revolta dos desprotegidos
ergueu-se nos caminhos calcados
sacudiu as desgraças obrigatórias
estendeu céus resplandecentes
deixou silhuetas nos horizontes
refez os destinos
reviveu
levantou a cabeça

ámen





m.f.s.








25 maio 2007

marguerite duras / textos secretos (1)





Ontem à noite, depois da sua partida definitiva,
fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque,
fui para ali onde fico sempre no mês de junho,
esse mês que inaugura o Inverno.


Tinha varrido a casa,
tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral.

Estava tudo depurado de vida,
isento,
vazio de sinais, e depois disse para comigo:
vou começar a escrever
para me curar da mentira de um amor que acaba.


Tinha lavado as minhas coisas,
quatro coisas,
estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa,
e também aquilo que encerrava o todo,
o corpo e a roupa,
estes quartos,
esta casa,
este parque.



E depois comecei a escrever...







marguerite durastextos secretos
trad. tereza coelho
quetzal
1999












24 maio 2007

gin beijos






dizes-me que a cama do teu quarto
está por fazer que saíste e todas
as lojas estavam fechadas hoje


é domingo que ontem sábado dissemos
muitas coisas muito amor gin beijos
se terei um pouco de pão ou de ternura

para te emprestar









pablo garcia casado
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004

21 maio 2007

cesariny




autografia
um filme de miguel gonçalves mendes















(…)

M.C. – Não é não querer, é não saber. E saber que estamos num país em que não se pode dizer o que realmente interessa. É assim desde o D. Afonso Henriques.

Era uma altura em que a minha gente estava viva. Tanto de amigos verdadeiros como de gente para passar um bocado na cama, tudo isso funcionava, com a polícia a correr atrás, a chatear-me. Também havia maneira de chatear a polícia. E agora, nem polícias nem ladrões. É um deserto.




M.C. – A chamada consideração, não quero dizer glória, consideração literária, ou artística, para mim não tem significado. Nenhum!
Queres ver como é?
Também hás-de ter isso, quando começares a receber grandes prémios, de curta-metragem na Alemanha.
É assim, eu estou assim num pedestal, muito alto, a dizer versos: blá, blá, blá.
Depois está uma data de malta cá em baixo: eeehhhh.
Depois deixam-me ir para casa sozinho.
Isto é a glória literária à portuguesa.
Tá bom?

E não creio que isto que eu estou a dizer seja muito interessante, sabes!?




M.C. – Eu acho que sou um poeta bastante sofrível, numa época em que o tecto está muito baixo. Percebes o que eu quero dizer? Um grande poeta numa época em que não há Anteros, não há Camilos Pessanhas, não há Guerras Junqueiros, não há Pessoas, se quiseres. Compreendes? Há para aí uma data de gente a publicar uma data de livros de poesia, que aquilo há-de ir parar tudo, não sei… muito longe. Há-de ir parar muito longe.

Isto é horrível de dizer. Mas talvez porque os meus poemas, digamos, de amor, a esses poemas nunca falta um condimento muito forte de revolta. É talvez isso que os torna mais fortes e não o miau miau, «daquela triste e leda madrugada, toda cheia de mágoa e de piedade», é o miau miau do gato a quem apertam demais o rabo. Espero que os meus leitores se apercebam disso, não são poemas de amor: «Estavas linda Inês, posta em sossego», são também, não sei, uma espécie de grito. São do contra.


M.C. – Acabou! E não julgues que eu não tenho saudade desse tempo, em que andava pelos cafés ou pelas ruas.
Nunca escrevi um poema em casa, nunca, não me perguntes porquê. Pelas ruas, era como voar. Foi-se!

Não sei se pode aplicar aquela coisa de quando o verbo se faz carne. No princípio era o verbo, mas depois fez-se carne, e ossos, e pessoas. Talvez achasse mais poesia nisso.
Porque de certa maneira os poetas são todos um bocado onanistas. Em vez de estar a dar a queca, como era sua obrigação, estão: ái, ái, dha, dha.

(…)














a phala
de s. jerónimo a cesariny
1#2007
assírio & alvim
2007








20 maio 2007

as palavras





(…)

durmo.
durmo de pé atravessando quartos, as minhas mãos não dormem —
talvez eu sorria estremecendo,
estremecendo.

as minhas mãos saem do sono, para os lados, mexem, mexem,
os pés estão acordados
e levam com um sorriso o meu sono pelos espaços vivos e brancos, sem som —
estou de pé estremecendo.

depois tenho quatro patas
como um perfume que partisse
ou uma flor que partisse à procura do seu perfume.
digo que tenho uma aflita quadrupedia,
como um cão nu que fosse em busca da sua flor desaparecida em toda a parte,
neste clima aberto à volta do clima.

as minhas patas saem do sono
para saber como é o espaço exasperado do clima,
andam pelos soalhos do clima —
e ao alto do movimento
há um sorriso em lume brando numa pessoa estremecendo,

aprendi como é devagar —
comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder —
aprendi devagar.

entretanto, se me falarem de rosas não me falem de rosas —
falem-me da espinhosa arte de ser rosa,
da arte do devagar.

mexes-te muito, digo eu,
e penso: mexes-te muito pouco —
é que eu sou o muito mais possível devagar, respondo,
é que eu sou o sangue procurando, pelos tubos quentes,
o pavor do coração.

sou o sangue em busca de como há-de bater nas mãos e nos pés,
através das galerias,
como um ramo de ventania a bater no espaço da ventania.

mexes-te pouco, é o sono que te leva,
as mãos tremem,
os pés apanham os passos um pouco atrás,
o coração é terrível como um órgão oculto —
mas a boca exposta
é que é o órgão do amor.

durmo, durmo, durmo em todas as direcções —
abrem luzes como quem espanca neve,
tornam claro como quem desdobra lençóis,
tiram do sono como quem abre torneiras
sobre as ervas espantadas.

oh, deixa-me tu passar, digo-me eu,
dá-me a superfície inteira desta noite irregular,
a profundeza deste sono
onde apenas se mexe uma incrível sabedoria à força de lentidão.

é isto que levo no corpo -
a nudez, a nudez.

e a nudez põe o sono às costas,
caminha, sabe, encontra, perde e caminha —
toda exposta em seu espaço branco.

não te importes com a água fria
que atravessa a primeira imagem da tua ciência —
tu abraças o amor como se abraçasses uma chaga ardente:
a lepra, a loucura, a visão.

(...)








herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968