sands of the gobi (2006)
tsagaan (2005)
11 maio 2007
09 maio 2007
alma simétrica
faremos um pacto
alma simétrica
jamais vista em
qualquer horizonte
selaremos o pacto
com a linfa em que se banham
os nossos sentimentos
eriçados de tremendas
hesitações
guardaremos o pacto
no cofre mágico
das coisas verdadeiras
das coisas desejadas
na nossa decrepitude
esqueceremos o cofre
o pacto
as coisas verdadeiras
desejadas
nos limbos
das perdições
encheremos de ouro
os ramos
desfolhados das
árvores sem raízes
das árvores esvaziadas
da volátil seiva
do frágil fio
de prata
que une as coisas
desunidas
faremos uma cúpula
de águas
em sinfonias
transparentes
e luzes de palcos
habitados
seremos
os construtores das nossas
harmonias
os pais dos imanentes
regatos
da nossa hidrografia
novos deuses seremos
minha alma simétrica
m.f.s.
07 maio 2007
senhor…
Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar
hélène monette
poemas
tradução de rosa alice branco
06 maio 2007
desenterrar
IV
Noite, como se saboreada
por dentro. E cada mentira nossa
seria pela língua conhecida
quando recuasse, e naufragasse
no próprio veneno.
Dormiríamos, lado a lado
com tamanha fome, e desde o fruto
que guerreamos, seríamos os nomes
das coisas que nomeamos. Como se um crime,
por nós sonhado, pudesse no frio medrar,
e despenhar estas negras, crepitantes árvores
que sorvem a história das estrelas.
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
05 maio 2007
03 maio 2007
há uma pedra feroz
Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.
luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
películas
publicações dom quixote
2002
01 maio 2007
a flor da solidão
Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos
ruy belo
obra poética de ruy belo, vol.2
presença
1990
28 abril 2007
o desejo agarrado pelo rabo
«Medo dos saltos de humor do amor e humores dos saltos de cabrito da raiva. Tampa colocada no azul que se desprende das algas que cobrem o vestido engomado com ricos pedaços de carne despertada pela presença dos charcos de pus da mulher que subitamente apareceu estendida no meu leito. Gargarejo do metal fundido dos seus cabelos gritando de dor toda a sua alegria pela posse. Jogo de azar dos cristais mergulhados na manteiga derretida dos seus gestos equívocos. A carta que segue passo a passo a palavra inscrita no calendário lunar dos seus envelopes presos a espinhos faz estalar o ovo cheio de ódio e as línguas de fogo da sua vontade cavada na palidez do lírio no ponto exacto onde o limão exasperado desfalece. Duplo jogo das pedrinhas tingidas com o vermelho da cercadura do seu manto, a goma arábica que lhe goteja da calma atitude rompe a harmonia do ruído ensurdecedor do silêncio apanhado na armadilha.
O reflexo dos seus esgares pintados na vidraça aberta a todos os ventos aromatiza a dureza do seu sangue sobre o frio voo das pombas que o recebe. O negro da tinta que envolve os raios de saliva do sol que batem na bigorna das linhas do desenho adquirido a preço de ouro desenvolve, na ponta da agulha do desejo de a tomar nos braços, a força obtida e os meios ilegais de a atingir. Corro o risco de a ter morta nos meus braços, desabrochada e louca.» Carta de amor, se se quiser. Escrita cedo de mais, cedo de mais rasgada. Amanhã, ou esta noite ou ontem, mandá-la-ei para o correio graças aos cuidados dedicados dos meus amigos. Cigarro 1, cigarro 2, cigarro 3, um dois três, um mais dois mais três igual a seis cigarros; um fumado, outro grelhado e o terceiro assado no espeto. As mãos dependuradas no pescoço da corda descida a correr da árvore que levanta voo chicoteiam à grande o seu puro corpo de Vénus tão mal enjorcado. A pés juntos, o dia descarrega a carga destes anos no poço, cheio de sombra. As tripas que Pégaso arrasta após a corrida desenham-lhe o retrato sobre a brancura e a dureza do mármore brilhante da sua dor.
O ruído das persianas soltas tangendo os seus ébrios sinos sobre os lençóis amarrotados das pedras arrancam à noite gritos desesperados de felicidade. As marteladas das flores e o fedor tão belo das suas tranças temperam o guisado dos seus louros e cravinhos. Mãos volantes, mãos soltas das mangas de renda do corpete posto tão cuidadosamente dobrado sobre o veludo do sofá, apoiadas tão firmemente nas faces do machado cravado no cepo copiam melancolicamente, numa bela caligrafia redonda, a lição aprendida. Pedra dura das anémonas devorando a cal viva da cortina adormecida sobre a escada apoiada ao enxofre do céu agarrado à moldura da janela. As razões mais válidas, a iminência do perigo, os temores e os desejos que a impelem não impedem agora a alegria morosa de se instalar cómoda e para todo o sempre no sofá verde da esperança.»
pablo picasso
teatro - o desejo agarrado pelo rabo
trad. vítor silva tavares
& etc
1975
27 abril 2007
uma solidão mortal...
(...)
...«uma solidão mortal»...
Na taberna podes dizer graças,
brindar com quem quiseres, qualquer um.
Mas o Anjo anuncia-se e deves isolar-te
para o receber. Para nós, o Anjo é a noite
que desceu à pista fulgurante.
Que a tua solidão paradoxalmente se ilumine toda
e pouco importe a escuridão feita de milhares de olhos
que te julgam, temem e esperam que caias;
vais dançar sobre e dentro de uma solidão deserta,
de olhos vendados, se possível com as pálpebras agrafadas.
Mas nada - nem mesmo aplausos ou risos -
pode impedir-te de dançares para a tua imagem.
És um artista - ai de mim - não podes recusar-te
ao precipício monstruoso dos teus olhos.
Narciso dança?
Sim, mas é coisa totalmente alheia à graça sedutora,
ao egoísmo e amor de si próprio.
E sendo a Morte, em pessoa?
Deves dançar sozinho. Empalidecido, na ânsia
de agradar à tua imagem:
ou a tua imagem é quem dança para ti.
(...)
jean genet
o funâmbulo
hiena editora
1984
22 abril 2007
a máquina fotográfica
É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.
Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.
Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contratada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.
Moras aonde eu sei. É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a pista
trago a minha tristeza a tiracolo.
Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays
the sun is shinning
love.
Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.
Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sentido à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
num novo continente itinerante.
josé carlos ary dos santos
o surrealismo na poesia portuguesa
organiz. natália correia
assírio & alvim
2002
17 abril 2007
luar
o luar
era tão perto dos olhos cegos
e o teu chão
um mimo
no meu passo tão sozinho
gil t sousa
falso lugar
2004
16 abril 2007
papeis selvagens
10
De súbito, surgiram as ovelhas.
Num instante, num de baixar de olhos.
Por toda a paisagem e pela encosta do monte.
Eram cor de rosa, celeste. Sépia ou cor de platina;
as outras, brancas, negras.
Embora, por momentos, as coisas parecessem ao contrário.
Pensei que sonhava.
O que via num papel, desenhos em forma de ovelhas.
Mas não; era verdade.
Na paisagem.
E ao fechar os olhos aparecia a seguir, no ecrã negro,
um rosto rectangular, oval, e o corpo gordo, multiplicado,
sabiamente.
Pareciam ter acorrido à concentração,
convocatória, sem espanto, com alguma tristeza.
Não podia ir embora, por onde iria!
Não podia chamá-las, porque já aqui estavam.
Não podia afugentá-las, porque eram imóveis.
Não podia esquecê-las, porque não me esqueço.
Não podia aceitá-las, porque havia qualquer coisa
que não estava bem.
Eu tou entre a espada e a parede,
e isto é um pedido de ajuda.
marosa di giorgio
poemas
tradução de rosa alice branco
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