15 abril 2007

reflexões / paradoxos do individualismo




(…)

A nossa civilização edificou-se sobre as facilidades da comunicação, as quais ainda são uma surpresa para muitos de nós. Não há fronteiras: tudo se sabe, ainda que muito insuficientemente, e tudo pode ser visto em directo; as viagens deixaram de ser aventuras extraordinárias para se tornarem parte do que é habitual; tivemos de nos acostumar ao uso e manuseamento dos computadores, dos faxes e dos vídeos. E no entanto, temos saudades da vida em comum que já não existe. Os meios de comunicação, por estranho que pareça, não nos fazem comunicar, contribuindo antes para nos isolar no nosso próprio mundo. Nada faz com que o indivíduo se sinta mais compreendido, mais atendido, mais acompanhado. A sociedade da comunicação não é mais solidária nem mais afectiva. Não soube pôr os meios e o progresso técnico ao serviço da democracia e do entendimento mútuo. Muito menos ao serviço do ser humano. A técnica vale por si própria e só se submete ao poder económico.
As descobertas e as grandes viagens com que desponta a modernidade introduziram o relativismo no pensamento. O indivíduo deixou de ter um fim pré-fixado: foi concebido como um ser livre para forjar e escolher a sua própria vida. Nasceu a ideia da tolerância juntamente com a convicção de que o nosso mundo é plural e diverso. Desde então, sabemos que universalidade e individualismo têm de ser compatíveis. Não só é aceitável a projecção em formas de vida diferentes como a diferença é boa em si mesma, enriquece-nos a todos. Este é, no entanto, um ponto de vista que só estamos dispostos a defender em teoria e sempre e quando não nos exija demasiados sacrifícios. Hoje, no mundo desenvolvido, onde o que é diferente poderia ter mais oportunidades de expressão, as diferenças, venham de onde vierem, dissolvem-se rapidamente no crisol da americanização irreversível que engole todas as culturas. O mundo inteiro é Disneylandja. Longe de proporcionar iniciativas, o liberalismo económico homogeneíza as culturas. A moda é cómoda, dizia Ferrater Mora, porque «poupa o trabalho de pensar». Por isso, talvez, nos raros momentos de lucidez, resistimos a segui-la sem reservas e emitimos alguns sinais de oposição à mimese generalizada, à uniformidade do prêt à porter, ao simplismo do quantificável e redutível a números. Começamos a exigir mais qualidade. A qualidade de um passado que começa a parecer mais confortável: com o regresso ao regional, ao que sai da terra, ao caseiro, ao não adulterado. Ou a qualidade de um presente e um futuro menos servis perante os avanços técnicos. A qualidade, por outro lado, que nos tornará mais competitivos quando já quase nada pode ser inventado, mas tudo é muito melhorável.
O mercado não ajuda. A inércia do mercado é o obstáculo mais claro ao desenvolvimento daquilo que se tem vindo a chamar liberdade positiva. Seremos realmente autónomos, autogovernar-nos-emos? É evidente que a liberdade não é um absoluto, que as nossas circunstâncias determinam muitas das nossas preferências e escolhas. Nunca se escolhe a partir de nada. Mas, mesmo assim, escolher é uma obrigação, uma «condenação», disse o trágico Sartre. E poucas vezes se vêem as coisas desta maneira, porque ao mercado só interessam escolhas muito determinadas. O problema é que esse modelo, que só deveria valer para o consumo, vale já para tudo, por que tudo, incluindo os bens mais espirituais, deixam de ser apetecíveis se não se apresentam como bens de consumo.
Em resumo, uma quantidade de paradoxos e ambivalências que reflectem as duas faces do individualismo: a afirmação de um indivíduo autónomo e independente que quer ser expressão da humanidade mais autêntica, e a afirmação do indivíduo que se deixa moldar pelas forças, interesses ou grupos mais dominantes. Este último indivíduo tem as suas raízes teóricas na hipótese moderna, que culmina com a Ilustração, de um indivíduo central e prepotente, sujeito do saber verdadeiro e legislador da conduta justa. Um indivíduo que só entende a sua aceitação das normas sociais através da ficção teórica de um «contrato social». As teorias do contrato são, com efeito, a única explicação possível para sociedades formadas por indivíduos isolados e iguais, sem interesses comuns, sem vontade política prévia, sociáveis contra vontade, livres mas obrigados a usar a sua autonomia a favor do desenvolvimento da essencial dignidade humana. Os desejos, as paixões, as singularidades, o egoísmo, que, na realidade, definem os indivíduos, valem pouco, são obstáculos que devem ser vencidos para obter a harmonia do todo e de todos. Para isso basta que cada um obedeça à razão universal inscrita no próprio ser. A moral é autónoma: a lei moral não depende da religião, nem da lei positiva, nem, muito menos, dos costumes. Depende, contudo, da razão, esse enigma que quisemos converter em garantia da unanimidade em matéria de moral.
Tudo é pura abstracção. Uma abstracção que a filosofia conseguiu corrigir pouco a pouco: sem renegar o indivíduo como princípio e razão do conhecimento teórico e prático, a filosofia já não o concebe como esse ser sobredotado que contém em si próprio a chave e o poder para se transformar e transformar o universo, se a vontade lhe não falhasse. O indivíduo é hoje, basicamente, um ser que fala, tão ambivalente nas suas manifestações como na sua forma de as exprimir. A linguagem mediatiza tudo: o conhecimento e a relação com o mundo, o conhecimento e a relação com o outro, o autoconhecimento e a relação consigo próprio. A consciência da nossa realidade linguística acabou com o solipsismo — individualismo — metodológico que vertebrou toda a filosofia moderna de Hobbes até Hegel. Nietzche, Freud, Marx, Wittgenstein, Heidegger, Sartre, Foucault puseram em causa, cada um a partir da sua particular perspectiva, a validade teórica da consciência ou do indivíduo como ponto de partida absoluto até ao extremo de proclamar sucessivas mortes do sujeito. A única objectividade reconhecida hoje é a intersubjectividade. A verdade reside apenas no acordo. E dependemos absolutamente da linguagem: uma linguagem herdada de outros, substrato de outras culturas e outros tempos. O indivíduo não ignora os seus limites, sabe que a sua razão não é monológica, mas dialógica, que sozinho não irá a lado nenhum. Tudo isso foi assumido pelas ciências e foi também assumido pela filosofia, mas parece ignorado numa prática obtusa e servidora de outros deuses, que continua a manter entronizado o indivíduo soberano e possessivo. Mostram-no os recentes exemplos famosos como paradoxos e contradições do nosso tempo. À política democrática falta-lhe a interacção e participação que a definem; o trabalho tem como protagonista o homo econoinicus e o tempo livre não é emancipador; a comunicação é unilateral; as diferenças sucumbem à uniformização das modas; as sociedades fecham-se para preservar o que lhes é próprio e as propostas de integração são acolhidas com desconfiança; o indivíduo sente-se mais seguro e confortável na pele de burguês do que na de cidadão. As tendências à comunalidade, à cooperação, à associação com outros são igualmente egoístas e interessadas: a tribo, o clã, a etnia, a empresa, o partido, o sindicato, nada escapa — ou pelo contrário, tudo encoraja — ao corporatismo.
Em teoria, temos todos os ingredientes necessários para reconhecer e ir corrigindo o individualismo, para nos darmos conta do erro que encerra aquilo a que chamei o «preconceito egoísta» instaurado pela modernidade. Temo-los porque a filosofia sabe que ninguém tem razão e que a conduta racional não está previamente determinada. Sem solidariedade, já não só moral, mas também científica, não avançamos, nem é possível tornar real nenhum propósito. Na prática, contudo, continuamos a actuar com prepotência como ignorantes das nossas limitações. Triunfaram os valores liberais convenientes à economia de mercado. Fazemos declarações antirnodernidade, mas o direito de propriedade continua a ser a peça fundamental do credo liberal, tão intocável e prioritário como o foi para os liberais do século XVII.
Contudo, não deve satisfazer-nos por completo o credo individualista pois que o criticamos. Só a cegueira intelectual e o cinismo poderiam fazer derivar os valores individualistas realmente existentes do tronco dos direitos fundamentais. É outra ideologia na qual não lemos outro remédio senão confiar, a ideologia do mercado, a que converteu os valores individuais num individualismo estreito e perverso. É necessário dizê-lo: a ética tem que ser individualista, tem que preservar o indivíduo, mas essa preservação é, ao mesmo tempo, um direito e uma exigência: direito do indivíduo determinar o que quer e deve ser, exigência ao indivíduo de responsabilidade perante os outros como ser humano. Só assim, com essas exigências, pode construir-se uma ética, como propõe Fernando Savater, na base do «amor próprio». Só a partir da responsabilidade do humano se pode arvorar o princípio moral da «dissidência» que propõe Javier Muguerza.
(...)








victoria camps
paradoxos do individualismo
trad. de manuel alberto
relógio d´água
1996





as riquíssimas horas do Duque de Berry





abril

Chegada da Primavera. O jovem casal de noivos troca os anéis. É a esperança e a vida que voltam com o verde, com os pássaros, com o sol.




12 abril 2007

eu vi






Eu vi
Vi os comboios silenciosos os comboios negros que
vinham do Extremo-Oriente e que passavam como
fantasmas
E o meu olhar, como a lanterna da retaguarda, corre
ainda atrás desses comboios
Em Talga 100 000 feridos agonizavam por falta
de cuidados
Visitei os hospitais de Krasnõiarsk
E em Khi!ok cruzámos com um longo comboio de
soldados loucos
Vi nos lazaretos chagas abertas feridas que
sangravam a jorros.



E os membros amputados dançavam em volta
ou levantavam voo no ar roufenho
O incêndio estava em todos os rostos em todos
os corações
Dedos idiotas tamborilavam em todos os vidros
E sob a pressão do medo os olhares rebentavam
como abcessos
Em todas as estações deitavam fogo aos vagões


E vi
Vi comboios de 60 locomotivas que se escapavam
a todo o vapor perseguidas pelos horizontes
com cio e bandos de corvos que voavam
desesperadamente atrás,
Desaparecer
Na direcção de Porto-Artur.

Em Tchita tivemos alguns dias de descanso
Paragem de cinco dias devido a obstáculos da linha
Passámo-los em casa do Senhor lankéléwitch, que
queria dar-me em casamento a sua filha única.
Depois o comboio tornou a partir.
Agora era eu que me sentara ao piano e tinha dores
de dentes
Revejo quando quero esse interior calmo a loja do pai
e os olhos da filha que vinha à noite para a minha cama
Moussorgsky

E os lieder de Hugo Wolf
E as areias do Gobi
E em Khaïlar uma caravana de camelos brancos
Creio bem que estive bêbedo durante mais de
500 quilómetros
Mas eu estava ao piano e foi tudo quanto vi
Quando se viaja deviam-se fechar os olhos
Dormir
Gostaria tanto de dormir
Reconheço todos os países de olhos fechados pelo
seu odor
E reconheço todos os comboios pelo barulho que
fazem
Os comboios da Europa são a quatro tempos enquanto
os da Ásia são a cinco ou a sete
Outros seguem em surdina são canções de embalar
E há os que no ruído monótono das rodas me lembram
a prosa pesada de Maeterlinck
Decifrei todos os textos confusos das rodas e reuni
os elementos dispersos duma violenta beleza
Que eu possuo
E me força.



Tsitsika e Kharbine
Não vou mais longe
É a última estação
Desembarquei em Kharbine quando acabavam
de deitar fogo às instalações da Cruz Vermelha.

Ó Paris
Grande lareira ardente com os tições entrecruzados
das tuas ruas e velhas casas que se debruçam
por cima e se aquecem
Como os avós
E eis os anúncios, vermelho, verde, multicolores como
o meu passado em resumo amarelo
Amarela a cor altiva dos romances da França
no estrangeiro.
Nas grandes cidades gosto de me meter nos
autocarros em andamento
Os da linha Saint-Germain-Montmartre levam-me
ao assalto da Butte
Os motores mugem como touros de ouro
As vacas do crepúsculo pastam o Sacré-Coeur
Ó Paris
Estação central cais das vontades cruzamento das
inquietações
Só os droguistas têm ainda um pouco de luz por cima
das portas
A Companhia Internacional das Carruagem-Camas
e dos Grandes Expressos Europeus enviou-me
um prospecto
É a mais bela igreja do mundo
Tenho amigos que me rodeiam como barreiras
Têm medo quando eu parto que nunca mais volte

Todas as mulheres que conheci erguem-se
nos horizontes
Com gestos lastimosos e olhares tristes de semáforos
à chuva
Bela, Inês, Catarina e a mãe ‘do meu filho na Itália
E ainda a mãe do meu amor na América
Há gritos de sirene que me rasgam a alma
Na Manchúria um ventre estremece ainda como num
parto
Gostaria
Gostaria de nunca ter feito as minhas viagens
Esta noite um grande amor atormenta-me
E contra a minha vontade penso na jovem Joana
de França.
Foi numa noite de tristeza que escrevi este poema
em sua honra
Joana
A jovem prostituta
Estou triste estou triste
Irei ao Lapin Agile recordar-me da minha juventude
perdida
E beber copinhos
Depois voltarei sozinho para casa










Paris
Cidade da Torre única da enorme Forca e da Roda
do Suplício
Paris, 1913













blaise cendrars
poesia em viagem
assírio & alvim
1974




11 abril 2007

ein fichtenbaum…





Um pinheiro solitário,
Do Norte, sobre as alturas,
Dorme entre gelos e neves
Que o envolvem de brancuras.


E sonha com uma palmeira
Que longe, longe, no Oriente,
Sofre sozinha e calada,
Presa ao seu rochedo ardente.









heinrich heine
poesia de 26 séculos
segundo volume
de bashô a Nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972



10 abril 2007

a pasolini






Sabes que eu
podia ter terminado
como o outro em óstia.

não porque tivesse um amante proletário violento
mas porque me opus a um lado e a outro
da conspurcação.

portanto leitor nunca te esqueças disso
nem da minha mente
tingida pelo sangue da adrenalina
do tempo furioso.

levantava-se um vento forte
em óstia semanas antes,
disse-me uma testemunha.
o mesmo vento áspero
que me faz hoje aquecer as mãos
com o bafo da minha boca
numa interminável
fila de refugiados entre a albânia e a grécia.

lembra-te pois disso leitor
e dá-me paz.












carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001


09 abril 2007

brilhos






lembro-me
de te abrir as mãos


de procurar na janela
o cume das árvores
e de nos teus olhos

subir
içar os brilhos

até ao cegar da memória
até ao olvido
do saber

imaginei que poderias cantar
ceifar silêncios

como quem inventa um destino
e prodigamente se decifra
no fio do poema








gil t. sousa
poemas
2001

06 abril 2007

noutros tempos





noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenámo-nos boca a boca com vidro moído
pelas salivas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras









al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997







05 abril 2007

jorge vaz nande / descobriu-se no outono



Descobriu-se no Outono
(beijo com um beijo frio
uma pedra de Lua nova)
a concubina de Paris
bebia chá-mate
(aquilo que sou e sou p’ra alguns
não é o que sou e sou para outros)
entre o fumo de cigarrilhas
e acamava uma cave
(as Lágrimas querem romper-te como um fio de
vento às árvores)
com um som baixo de acordeão triste


recolho os círculos que vi no chão e descanso-os
nos meus braços.










jorge vaz nande
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra


04 abril 2007

então quem sou eu?





"Então quem sou eu?

Digam-me isso primeiro,
e depois,
se eu gostar de ser essa pessoa,
eu subo;
senão,
fico cá em baixo
até ser outra pessoa qualquer. "









lewis carroll
alice no país das maravilhas



03 abril 2007

ausente






Ausente,
a tua figura aumenta
a ponto de encher
o universo.

Passas
ao estado fluido
que é o dos fantasmas.

Presente,
ela condensa-se;
atinges as concentrações
dos metais
mais pesados,
do irídio,
do mercúrio.


Morro
com esse peso
quando ele me cai
no coração.










marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995




02 abril 2007

shakespeare





Shakespeare criou o mundo em sete dias.

No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos —
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra, e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor do ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.

Por esse tempo chegaram também uns indivíduos
Que se tinham atrasado.
O criador afagou-lhes compassivo a cabeça,
E disse que só lhes restava
Tornarem-se críticos literários
E contestarem a sua obra.
O quarto e o quinto dia reservou-os para o riso.
Soltou os palhaços
Para darem cambalhotas,
E deixou os reis, os imperadores
E outros desgraçados divertirem-se.
Ao sexto dia resolveu alguns problemas administrativos:
Forjou uma tempestade,
E ensinou ao rei Lear
O modo de usar uma coroa de palha.
Com os restos da criação do mundo
Fez o Ricardo III.
Ao sétimo dia viu se havia algo mais a fazer.
Os directores de teatro já tinham coberto a terra de cartazes,
E Shakespeare concluiu que depois de tanto esforço
Também ele merecia assistir ao espectáculo.
Mas antes disso, esfalfado de todo,
Foi morrer um pouco.








marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em Mateus
quetzal
1997








31 março 2007

vertigem





a absurda vertigem
das luas mais tardias

do seu duro espelhar
no lado morto dos rios

do demorado subir
da loucura

do desaguar das veias
no coração deserto

dos vivos
dos que caminham

sobre o sangue
e gritam

rasgam a seda do céu
com a faca do desejo

até choverem os anjos
no escuro charco do medo








gil t. sousa
poemas
2001








30 março 2007

primeiro poema do diário flagrante





Na ponta da minha caneta vem-me uma insónia
e todos os mares rasteiros
e tudo que não vem com a tinta
festas de luto.
Pela ponta da minha caneta a precocidade dos céus dramáticos
que me interrogam.
Mas meu amor, eu não te interrogo
nem te chamo
porquanto nasço contigo num mesmo berço:
os poemas que queimei no fogão.
Dos poemas fiquei eu que não me fui a queimar.
Porque, tu sabe-lo, no sangue não há leilões
e jamais deixarias de ser impossível
num silêncio marinho como o do sangue.


E pela noite
uma estátua desce do pedestal para espreitar nos bares,
e pela noite
(já não quero mais noite nem mais dia)
conta milhões de vidas sobre mim
e quero-me lá vidro escaldante
criando uma superfície
onde os teus passos fiquem marcados
como problemas que do meu corpo
e em sono
são todos o silêncio de uma praia.

Faço uma bola negra para me divertir.
Justamente uma bola que não faça conclusões.
Prego alfinetes no meu tapete
e deito-me no meio.
Depois
é esperar-me a rolar
despir o sobretudo e sair.
Atravessar o rio
e parar junto de um sapato que está na outra margem.
Desse sapato farei mil coisas:
vidros,
casas arruinadas,
animais sem vida,
infinitos de avenida
e líquidos de sabores variáveis
(os alfinetes do meu tapete perguntam-me se amo)
e os meus cabelos ficam alheados
e as minhas mãos são a estrada de tanta resposta sem fito.
Cama de mim mesmo não obstante
nunca me quis medir
salvo em fumo,
em horas de insónia
ora em catorze horas de sono funâmbulo.

…………………………………………………………………………
Esta aparência de calma são gases
e fico sem saber se estou em casa se na rua.

São para mim as pancadas numa porta algures em Paris.
São umas tantas esquinas
correrias e gritos
brincalhonas e alcoólicas umas tantas algibeiras
pingando nesgas de noite.
Faço rodas com os gatos numa rua gelada
e os ponteiros do relógio
audaciosos recolhem-se junto da maquinaria.
Emocionados todos os meus objectos
falam de mares distantes
como me falava o pequeno buda de marfim
que aguardava o dia de leilão para ser vendido…
Era todo um mundo que se projectava atrás dos meus passos,
um equívoco de que falavam,
de telhado para telhado,
todas as cidades.
E no espaço
um campo de meteoros
muitas léguas para além dos cactos onde me pico por desdém
assim como uma sede que me ataca durante uma conversa telefónica.
Depois,
um diário flagrante que deixo esquecido num túmulo.








fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005