28 fevereiro 2007

as riquíssimas horas do Duque de Berry





fevereiro

O inverno numa aldeia. A neve, o fogo, a vida quotidiana que não pára.



canção de amor





Se estivesses a afogar-te, vinha acudir-te,
embrulhava-te num cobertor e dava-te chá quente.
Se fosse xerife, prendia-te
e fechava-te numa cela com aloquete.

Se fosses uma ave rara, gravava um disco
e ficava a ouvir a noite inteira o teu trilo agudo.
Se fosse o sargento, serias a minha recruta,
e, rapaz, garanto-te, ias adorar a instrução.

Se fosses chinesa, aprendia a língua,
queimava pilhas de incenso, vestia roupas esquisitas.
Se fosses um espelho, invadia as “Senhoras”,
dava-te o meu bâton e punha-te pó-de-arroz no nariz.

Se gostasses de vulcões, seria a lava, em
erupção contínua da minha secreta fonte.
E se fosses a minha mulher, era o teu amante,
porque a Igreja ao divórcio se opõe firmemente.







joseph brodsky
tradução de carlos leite
Cotovia
1995





27 fevereiro 2007

ninguém se lembra





De quem ao coração vai buscar água
ninguém se lembra nem
de quem por tê-lo
pregado à pele mostra os seus pregos ferrugentos.








luís miguel nava

poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002





26 fevereiro 2007

as riquíssimas horas do Duque de Berry





janeiro

O mês de Janeiro é o mês dos presentes de Ano Novo. Em certas famílias não se celebrava o Natal, dava-se um presente no início de cada ano, chamado étrennes. Esta palavra remonta a um costume romano segundo o qual o patrão oferecia um subsídio anual aos seus clientes.
(do latim strena, que em português se tornou estreia)


a casa onde às vezes regresso




a casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos


durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo


tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.








josé tolentino mendonça
“a que distância deixaste o coração”
assírio & alvim
1998







25 fevereiro 2007

a espuma dos dias


(…)

— De facto não me interessa muito — disse o gato.
— Fazes mal — respondeu a ratinha. — Ainda sou nova e até há pouco bem alimentada.
— Também eu ando bem alimentado — disse o gato — e não sinto nenhuma vontade de me suicidar. Estás pois a ver por que razão acho isso anormal.
— É porque não viste — acrescentou a ratinha.
— O que é que isso tem? — perguntou o gato.
Não tinha grande necessidade de sabê-lo. Havia calor e os seus pêlos revelavam a maior elasticidade.
— Fica à beira da água — disse a ratinha — espera a hora, anda pela prancha e pára ao meio. Vê qualquer coisa.
— Não pode ver grande coisa — respondeu o gato. — Talvez um nenúfar.
— Sim — disse a ratinha, — Espera que ele suba para o matar.
— É idiota. Não tem qualquer interesse.
— Depois de passar a hora — continuou a ratinha — volta à margem e olha para a fotografia.
— Nunca come? — perguntou o gato.
— Nunca — disse a ratinha. — Está a ficar muito fraco e eu não posso suportar uma coisa dessas. Um destes dias vai dar um passo em falso, quando passar por cima daquela grande prancha.
— E que mal isso te faz? perguntou o gato. — Sentir-se-á infeliz, por acaso?
— Não se sente infeliz — respondeu a ratinha —, sofre. É isso que eu não posso suportar. E depois há-de cair na água, debruça-se de mais.
— Sendo assim — disse o gato —, quero prestar-te o serviço, mas não sei por que razão digo «sendo assim», uma vez que não percebo nada.
— És formidável — disse a ratinha.
— Mete a cabeça na minha boca e espera.
— Vai demorar muito tempo?
— O tempo de alguém me pisar o rabo — respondeu o gato; tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo de fora, não tenhas medo.

A ratinha afastou as mandíbulas do gato e enfiou a cabeça entre os dentes agudos. Retirou-a logo a seguir.

— Diz-me cá — perguntou —, comeste tubarão esta manhã?
— Ouve — disse o gato —, se não te agradar podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinha.

Parecia aborrecido.

— Não te zangues — pediu a ratinha.

Fechou os olhinhos pretos e pôs a cabeça em posição. Com precaução, o gato encostou os caninos pontiagudos ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos da ratinha misturavam-se aos seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estendida no passeio.

Onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio, o Apostólico, aproximavam-se a cantar.








boris vian
a espuma dos dias
trad. aníbal Fernandes
ulisseia
1974


22 fevereiro 2007

o sul do tempo




o olhar desfeito
na coerência do invisível

o remoto
lugar de areias ardentes
onde afogadas as mãos se soltam

o nome dos ventos
o sul do tempo

o sentido rumor
dos séculos imperfeitos
que te escondiam

esperavas
sob a mais alta estrela

o mundo a cercar-te
como se eu te levasse
o livro

pus o meu nome
na roldana do vento

era cedo
como nunca mais
voltaria a ser






gil t. sousa
poemas
2001




21 fevereiro 2007

em nome







em nome da tua ausência
construí com loucura uma grande casa branca
e ao longo das paredes te chorei








sophia de mello b. andressen
dual I
moraes
1972







20 fevereiro 2007

moravagine




Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.


O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.





blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992






17 fevereiro 2007

é amargo o coração do poema



É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.







herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002






duelo após o baile de máscaras

16 fevereiro 2007

no mesmo espaço




Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

(1929)







constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



15 fevereiro 2007

sentires



saltei os dias, enquanto minha mãe embalava a máquina do tempo, tentando esquecer os gritos ruidosos. sentia o vai e vem acelerado da vida vazia, que guardava na memória das redes de secretos desejos. carregava nos ombros cactos. picavam-me a pele queimada pelo salitre. não havia dor, o sangue escorria como áscuas. a paixão perseguia um rasto agudo. fulgurava a pressão aterradora do sibilar da cobra pérfida, que atravessava o silêncio, da minha memória. saboreava no outro lado do dia, pitangas que colhia no quintal sem paredes. um rasto de esperma precário, fazia-me recordar erros em salas de tortura. senti-me um lugar. os sonhos transmitiam nevoeiros de palavras embaciadas mas hábeis. desnudava muda o ardor das manhãs. no espelho da casa onde vivia, as sombras tomavam formas de corpos rasgados de mim, enlaçados na sofreguidão do ciúme.



os pássaros com mangonha, debicavam a goiaba pútrida. estendi os dedos e toquei nas aves. sobre a mesa da sala, outras mãos, unidas nas sombras, filhas de estrelas escondidas e sem rostos. mãos que acariciavam o saber místico dos sentires. os dedos dançavam no brilho dos meus olhos, senti-os gélidos, extensos. olhei-os fixamente e saltavam miraculosas cores luminosas. feriu-me o gelo intenso da luz.



por fim, adormeci no sumo do fruto proibido.

entrei no engano das imagens...





l.maltez