18 abril 2006

post it / alexandre moreira

perto desse lábio de chávena não me atrevo a luz
no fundo é corrente de ar- tes todas um
instante sempre em todo o caso um
cenário a cair mal já tarde a
pensar a convicção é o perigo o dedo a salvação serás
talento velhinho a atravessar rua no meu quarto
de orgão coagular de vento direitinho quando
penso quando penso a convicção é o perigo o dedo a salvação será a pautar pelo pescoço umas páginas ainda umas páginas ainda de um olhar fixo uma natureza particular esta ideia de fazer partida seria neste auge do meu terror pesado imóvel soureal . perto desse lábio de chávena não me atrevo ao olhar de cada esposa dé- cada esposo década vez década três não denuncio a pequenez esmago sempre o nome contra o peito senhor na janela naúsea bastante nova é fumar radialmente nesse viver o passado sempre um instante depois não existiu lugar com música não plastifico monstro no seu trabalho frequente mente relativa mente eu nevoeiro alfabético quarta- feira é nevoeiro alfabético quinta- feira e os passos soam recentes junto a grandes janelas tremem se ( senta sue ) jeitos e ao objecto conferem a voz distante uns palmos acima do sol




alexandre moreira




12 abril 2006

um poema de: leopoldo maria panero



OS LIVROS caíam sobre a minha máscara (e onde havia um esgar de velho moribundo), e as palavras açoitavam-me e um remoinho de gente gritava contra os livros, assim que os lancei todos à fogueira para que o fogo desfizesse as palavras...

E saiu um fumo azul dizendo adeus aos livros e à minha mão que escreve: “Rumpete libros, ne rumpant anima vestra”: que ardam, pois, os livros nos jardins e nas lixeiras e que se queimem os meus versos sem sair dos meus lábios:

o único imperador é o imperador do gelado, com o seu sorriso tosco, que imita a natureza e seu odor a queijo podre e vinagre. Os seus lábios não falam e ante essa mudez de assombro, caio estático de joelhos, ante o cadáver da poesia.

Leopoldo Marra Panero 1 .03.87



poemas do manicómio de Mondragón
trad. de jorge melícias
ed. alma azul
coimbra 2003


10 abril 2006

textos com fumo (1)


(…)

E ele atravessa a rua, passando pelo tempo, de pedra em pedra, com um cigarro na mão para pedir lume ao cigarro alheio, que brilha no outro lado, ao cimo dos três degraus.
Vai ser assim: dá-me lume, por favor?, e o cigarro encostar-se-á ao seu, o lume passará de um para outro, de uma pessoa para outra pessoa, e então, no meio da eternidade deserta, será sim o dia de hoje.
Mas a noite é imensa, quer dizer: a noite do lugar e do tempo, a noite da nossa solidão — é imensa, e apenas um pequeno órgão vivo palpita algures, vibra rapidamente, e amortece-se, e desaparece.
Então, uma vez mais a noite se levanta de nós, e o que estremece é a carne, a nossa, cega e desamparada — mas fremente na sua cegueira e desamparo.
Sabes que estás só? — pergunta a carne à carne —, sabes que a noite se ergueu de ti, como se fosses o seu próprio e único talento, e que esse talento te cerca como uma atmosfera, o morto clima que transportas em ti, de um lado para outro, ao longo das pedras, ao longo de todos os lugares do homem?
Ela sabe, ou pelo menos sabe que sabe.
E é demasiado.
Por isso, olha e espera.
E vê de novo a brasa que estremece na escuridão como uma planta que crescesse e florescesse na terra negra, ou um animal cujo calor abrisse uma brecha no tempo frio.
A carne embriaga-se com imprecisas metáforas de salvação — que salvação?! — com um movimento subterrâneo de analogias, e ele diz: vou pedir-lhe lume.
Vai através do bairro múltiplo, o tempo que o escuro abafou, e então é como se fosse fora do tempo, ou dentro de todo o tempo, à procura do lume para o seu cigarro.
Eles construíram e os anos destruíram, e eles reconstruíram as coisas gastas e construíram outras novas.
Que é isto?
Quer dizer que a carne renasce, e é essa a tarefa?
A noite vem sempre, mas talvez trabalhem também de noite.
Às vezes ouvem-se as picaretas e os martelos, à distância, durante certas noites.
E depois é manhã, e apercebemo-nos de que existe uma coisa nova, um corpo que se organiza para o dia, e isso foi um secreto trabalho nocturno.
Eles acreditam, então — será verdade que ousam acreditar?
Pode-se avançar nas trevas.
Uma, duas vezes, foi-nos indicada uma luz fugitiva — e depois sabemos.
Talvez ainda mais nítida, a topografia marcou-se na nossa cegueira, e então caminhamos, caminha ele com o seu cigarro por acender, a sua perseguição ao fogo.
Não é uma admirável virtude do fogo, não será até um milagroso talento das trevas que, aqui e ali, durante um segundo, o fogo abra a sua pequena rosa trémula, e o homem possa respirar na cega atmosfera dos séculos?
Ë — eis que ele o diz para si, com uma força maior do que ele próprio, o inventado poder da sua vertiginosa, momentânea fé.
Caminha pelos anos pétreos, com os pés a decifrarem o empedrado e os degraus do bairro.
Ouve os próprios passos, porque sempre ouviu as pancadas do coração — por aí é que reconhece estar vivo, embora isso seja violento demais e demasiado precipitado para a verdadeira harmonia que, possivelmente, seria o estar vivo.
Mas respira, isso sim, o sangue corre pelas veias e artérias, corrompe-se e purifica-se dentro da confusa massa da sua dor de homem, e anda, ele anda, sobe, desce.
Contudo, os passos que ouve, como se fossem as pancadas fortes do seu sangue, parecem distanciar-se.
Pára.
E os passos continuam, afastando-se.
Mais longe, aparece a brasa do cigarro.
O outro foge.
Porque foge?
Que medo inspira assim o desejo do conhecimento, ou o desejo do amor?
Ë a caça?
Existem aqui o desígnio, o jogo, o ritual — e a alegria bárbara e o primitivo pânico da caça?
Porque o amor é mortal (o amor é mortal?).
Talvez se adivinhe que sim, e obscuramente se saiba que é mortal o conhecimento.
Talvez seja isso o que melhor se conheça do conhecimento — a sua natureza mortal.
Os passos do outro fogem pelo tempo fora, ouvem-se — embaraçados e rápidos — perdendo-se nas escadas, pelas ruas ondulantes, sob os arcos.
Um momento ecoam no meio de uma praça, o cigarro brilha, forma-se uma súbita coroa de silêncio.
Haveria palavras para dizer, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
Mas não haveria resposta.
Ou seria: tenho medo, ou então: é o jogo.
Contudo, não se sabe bem o que acontece, por isso não haveria resposta.
Medo?, porquê medo?, dir-se-ia, jogo, que espécie de jogo?
E as palavras nunca mais acabariam.
Não mais existiria este silêncio no qual, ofegantes, sabemos com tanta dor que ainda estamos vivos.
Por isso é que andamos, agora com todas as artes da caça, devagar, depressa, silenciosamente, cercando a presa.
Amo-te — diríamos nós, no exacto instante de lhe cravar o punhal no meio do peito.
E depois desejaríamos que se fizesse luz, uma grande luz branca, o sol, para vermos o sangue correr e, possivelmente, afogar a nossa boca no sangue amado.
Para conhecermos tudo, até ao fundo e até ao fim. Porque o amor e o conhecimento são as artes do crime.
Tenho um ramo de flores para ti, diz o amante: são flores venenosas.
Mas toda a gente sabe isto: ninguém deseja nada do amor.
É o tema eleito das palavras.
Eis a razão por que o outro está escondido na praça, ao meio da qual existe um largo fontanário, com a sua rodada taça de pedra, de onde transborda uma água silenciosa e dormente.
A brasa do cigarro marca uma curva no ar e cai na água.
É um indício.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois tudo será mais difícil.
Porque será a perseguição declarada, sem o pretexto de pedir lume.
Também não haverá já a indicação do lume, no meio da noite — o sinal de que ali está a pessoa, viva, fumando, respirando, tremendo.
Porque foges?, e enquanto, no mais secreto da sua aflição, ele o pergunta, corre em direcção ao fontanário e quase esbarra com o outro.
Sentem-se, mútuos, únicos, arfam no escuro da praça, a treva treme levemente na água adormecida.
Mas ele diz (e quem sabe se isso é absurdo?) diz: lume, e o outro escapa-se, e põe-se a correr em volta do fontanário.
Os sapatos chapinham na água e a ele, que já começou a persegui-lo, correndo também em torno da taça de pedra, chapinhando do mesmo modo na água vazada, ocorre-lhe um insólito pensamento: caminhamos sobre as águas.
Então abranda um pouco a corrida, inclina o corpo para a direita, e mete a mão na água da taça.
Ë um ruído novo, virgem, e o contacto da sua carne com a água faz nascer em si uma confusa alegria, o sentido de uma festa natural, o desejo de morrer ali, agora, triunfalmente.
E o outro? — o outro foge, e como não abrandou o passo, nem mergulhou a mão na água, nem pensou (supõe-se) na alegria de uma festa mortal, o outro adiantou-se, e já se encontra no lado oposto do fontanário.
E é ágil, essa criatura sem nome, o ser que se ama, aquele que se persegue e a quem se deseja conhecer, para suplicar lume, ou voz, ou vida, ou sangue, ou sabe-se lá o quê.
(…)



apresentação do rosto
herberto helder
editora ulisseia
1968

09 abril 2006

reflexões / a cruzada anti-tabaco



PROCURANDO DESESPERADAMENTE UMA MORAL INDIVIDUAL

A cruzada anti-tabaco

Mesmo as recentes campanhas contra o álcool e o tabaco ilustram a vaga pós-moralista. Por certo que o novo higienismo não é de todo desprovido de um espírito de cruzada: são concedidas condecorações às organizações e personalidades que contribuíram para promover a sociedade sem nicotina; nos Estados Unidos, agentes de segurança medem nas empresas a taxa de óxido de carbono do ar, empregados apanhados em flagrante delito a fumar nos seus locais de trabalho são despedidos; em França, a lei prevê a proibição de todo e qualquer tipo de publicidade ao tabaco. Qualquer que seja o radicalismo destas medidas, o neo-higienismo possui como característica o facto de não impor nenhum ideal superior à própria pessoa, mais não fazendo do que, em conformidade com a lógica do pós-dever, sacralizar o referencial da saúde, o direito dos não-fumadores, a protecção dos jovens, raros são os que justificam os novos dispositivos higienistas em nome dos interesses da nação ou da empresa. Os especialistas em saúde pública denunciam regularmente o «desastre sanitário» do alcoolismo e do tabagismo, mas as campanhas de informação já não dão primazia à derrocada moral da nação, à exigência de «regeneração física e moral» dos indivíduos, à indignidade dos que não respeitam os deveres individuais de higiene de vida. Os argumentos categóricos da moral individual tornaram-se obsoletos, não resta mais do que a problemática pós-moralista da protecção sanitária, livre da ideia de obrigação, quer individual quer colectiva.
Em nenhum lugar se trata de, a exemplo dos anos vinte nos Estados Unidos, instaurar a proibição do fabrico e do consumo de álcool e, agora, do tabaco, o objectivo é «convencer sem impor», sensibilizar a opinião através de spots publicitários dissuadir pela informação, reduzir cada vez mais o consumo através do aumento do preço do tabaco, O espírito higienista floresce, mas está mais preocupado com a tomada de consciência do que com a injunção autoritarista, apela menos ao esforço voluntarista dos sujeitos do que à eliminação das solicitações perigosas, acredita menos na repressão do que no impacto dos dados estatísticos de mortalidade, menos na pedagogia moral do que no apoio da auriculoterapia, na intervenção psicoterapêutica, no cigarro sem tabaco e sem nicotina. A lógica da imposição dirigista deu lugar à da persuasão e da dissuasão: viragem cultural do combate higienista que ilustra tipicamente os paradoxos da época pós-dever. O verbo é menos severo, a acção mais reguladora da sociedade civil; o discurso menos encantatório, as medidas - pelo menos no que diz respeito ao tabaco - mais intervencionistas e, sem dúvida, mais penetrantes a longo prazo. Quanto menos odes ao dever existem, mais crescem o empenho na libertação da escravidão da nicotina e a ansiedade sanitária; quanto menos são brandidas as obrigações morais individuais, mais as regulamentações detalhadas da vida quotidiana se multiplicam e se tornam socialmente legítimas; quanto menos clamor repressivo existir, maior é o número de dispositivos de repressão e de enquadramento rigoroso dos compor1amentos: informação generalizada, proibição de fumar nos locais públicos, proibição de publicidade, eis-nos na era da dissuasão e da vigilância pós-moralista
Face a esta vaga higienista, elevou-se um coro de vozes contra o que é, por vezes, apresentado como uma «nova ordem moral». Nem sempre com muita prudência semântica, não se tem deixado de vilipendiar, aqui e ali, o «totalitarismo frouxo» das nossas sociedades, empenhadas que estão em extirpar os vícios privados, em fazer desaparecer, pura e simplesmente, o consumo do tabaco, em dirigir cada vez mais de perto a vida quotidiana dos indivíduos: depois de Tocqueville, tornou-se clássico o gesto de associar qualquer extensão da influência da autoridade pública à tendência moderadamente «despótica» das democracias modernas. E, neste caso, é sem dúvida difícil negar que as medidas anti-tabágicas ilustram o facto de que o Estado moderno toma cada vez mais a seu cargo a existência colectiva. Em contrapartida, é menos convincente ver nisso uma manifestação new-look das ambições prometeicas do Estado democrático administrativo. Longe de legislar contra a vontade colectiva e de sujeitar a sociedade a uma norma exterior «tirânica», o Estado neo-higienista abre caminho às novas aspirações dominantes, narcísicas e clean, obcecadas pela saúde individual, alérgicas às lições de moral mas favoráveis às medidas sociais de regulação-dissuasão dos diversos «excessos». Os próprios adversários das novas políticas de saúde reconhecem a legitimidade, ou seja, a necessidade de muitas das medidas tomadas; num sentido, a guerra anti—tabaco não terá lugar dada a ausência da possibilidade de manter razoavelmente a posição antagonista, estritamente não-regulamentar, até às suas últimas consequências práticas. As oposições reais que se exprimam denunciam a extensão abusiva das obrigações impostas pela autoridade estatal, e não a necessidade de regulamentações. É manifesto o contra-senso que associa as políticas neo-higienistas a projectos de essência totalitária: ao seu nível mais profundo elas são consensuais e funcionais, traduzem mais a retracção liberal das perspectivas políticas contemporâneas do que uma vontade demiúrgica. O único objectivo é proteger a saúde, e não caminhar, em marcha forçada, em direcção do homem virtuoso, prolongar a vida, não mudá-la, reduzir os excessos nocivos, não extirpar a corrupção de costumes. A acção limita-se a informar, a proibir a promoção publicitária, a regulamentar o uso do tabaco nos lugares públicos, não proíbe o consumo. O Estado está empenhado em remodelar racionalmente os comportamentos? Todavia, não apela a nenhum sacrifício com vista a um fim colectivo superior aos interesses subjectivos. Qualquer que seja a expansão efectiva do poder administrativo sobre a sociedade civil, é o Estado «modesto» liberal que se manifesta, não o poder prometeico, que sonha reconstruir de acordo com os seus planos e passo a passo o homem e a sociedade. Os megaprojectos de regeneração social e moral foram aniquilados, resta apenas uma vontade de gestão optimizada dos corpos: as perspectivas revolucionárias de mudar a natureza humana foram substituídas por uma rigorosa administração operacional da saúde.
A verdadeira ameaça que pesa sobre as sociedades liberais não é tanto a infantilização dos cidadãos e a hidra do «fascismo moderado», mas a dualização social das democracias. Precisamente na altura em que alastra a febre higienista, blocos inteiros da sociedade afundam-se na marginalidade, na pobreza, na regressão sanitária. Nos Estados Unidos, o fenómeno adquiriu um aspecto particularmente importante ao longo dos últimos dez anos: 37 milhões de pessoas, entre as quais 12 milhões de crianças, estão excluídas de todo e qualquer sistema de segurança social, a taxa de vacinação infantil é inferior em 40% comparativamente às de outros países industrializados, os desempregados e os marginais representam mais de 30 milhões de pessoas, 1 em cada 5 crianças vive abaixo do limite de pobreza. No final dos anos oitenta, estimava-se em 25 milhões o número de americanos que tomam drogas, 500 000 dos quais consomem heroína com alguma regularidade e 6 milhões cocaína. O culto higienista-narcísico tem por reverso a pauperização, o desmembramento dos programas sociais, a regressão dos sistemas de segurança, o desaparecimento das formas de auto-controlo. As novas democracias, com dois ritmos de desenvolvimento, vêem coabitar os comportamentos «adequados» da maioria e as práticas sanitárias calamitosas, a ausência de cuidados, a escalada da «derrocada» toxicomaníaca de minorias mais ou menos numerosas. o individualismo liofilizado e «bem temperado» tem no seu reverso o individualismo «destroy».
O higienismo pós-moralista não é, nem o grande Satã denunciado pelos que vêem uma manifestação de totalitarismo em toda e qualquer medida racionalizadora dos comportamentos privados, nem uma política ao abrigo de qualquer derrapagem anti-liberal. É impossível associar a corrente neo-higienista a uma maquinação liberticida, quando se trata, nomeadamente, de proteger o espaço dos não-fumadores: a existência de locais separados é legítima de um ponto de vista exclusivamente liberal, dado o respeito devido aos direitos dos não-fumadores. A perspectiva não é moralizadora, mas sim de essência proteccionista e individualista: não queremos ser agredidos pelo fumo dos outros, só o interesse dos sujeitos é tido em conta, trata-se de salvaguardar a liberdade de uns sem fazer imposições aos outros. Em conformidade com uma lógica pluralista que abre toda uma gama de escolhas individuais, a organização de espaços distintos permite conciliar o higienismo com as aspirações legítimas à liberdade de viver sem fumo. De outra natureza são ou seriam as regulamentações que proíbem, sem excepção, fumar em todos os locais públicos. Neste caso, o direito de uns nega o direito dos outros, o higienismo transforma-se em polícia moral, em «terrorismo limpo», introduz um dispositivo regulamentar contrário aos valores de uma sociedade liberal que reconhece a cada um o direito de dispor livremente do seu próprio corpo, desde que não prejudique os outros.
O mesmo equívoco reside no cerne da questão da interdição da publicidade ao tabaco. Se se trata de proteger os menores, a proibição da publicidade pode ser considerada legítima, o Estado intervém a fim de impedir uma influência julgada nefasta sobre seres que ainda não foram reconhecidos como plenamente donos de si próprios e responsáveis. Mas, neste caso, as proibições deveriam dizer, logicamente, respeito apenas aos suportes e aos media acessíveis às crianças. Em contrapartida, a imprensa para adultos deveria poder continuar a difundir publicidade, porquanto se considera que os indivíduos maiores, donos da sua vida, têm direito a uma esfera privada fora do controlo social. Ao empenhar-se na exclusão total da publicidade ao tabaco, o Estado vai frontalmente contra os valores liberais, arroga-se o direito de determinar o que os cidadãos podem ou não ver, associando-os a seres incapazes de se auto-determinar na sua esfera privada: tais medidas drásticas são dificilmente compatíveis com uma sociedade baseada na liberdade individual e comercial. Não estaremos perante uma contradição, ao tornar ilícita, indistintamente, a publicidade a um produto cuja existência no mercado é legal? Porquê proibir a publicidade ao tabaco e apenas limitar a do álcool? Dir-se-á: é legítimo proibir uma publicidade que valoriza um produto responsável por dezenas de mortes por ano. Mas o automóvel não mata também em grande número? E ninguém se preocupa, evidentemente, em proibir a sua publicidade. Comparação inaceitável? Todavia, em ambos os casos, não é o produto em si que é perigoso, mas o excesso ou a imprevidência do seu uso. Mas se é apenas o abuso que deve ser combatido, podemos mostrar reservas quanto à legitimidade das regulamentações que se reportem à nocividade absoluta do produto.
Estas medidas recentes ilustram, no fundo, duas tendências contraditórias que coexistem na era do pós-dever. Uma é tutelar, rígida, hiperprotectora; a outra trabalha para fixar, de acordo com uma via mais liberal, fronteiras limites, regulamentações de geometria variável. Proibições redibitórias num caso, medidas diferenciadas no outro: sendo antinómicas, estas duas lógicas coabitam e continuarão, ao que tudo indica, a orientar mais ou menos conflituosamente o futuro das democracias contemporâneas.




O crepúsculo do dever
A ética indolor dos novos tempos democráticos
Gilles Lipovetsky
Trad. Fátima Gaspar e Carlos Gaspar
Publicações D. Quixote
1994

05 abril 2006

book zapping #006 roland barthes


O ROSTO DE GARBO

Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que a percepção do rosto humano lançava a maior perturbação no meio das multidões, em que as pessoas se sentiam literalmente perdidas numa imagem humana como num filtro, em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne, que não podia ser atingido nem abandonado. Alguns anos antes, o rosto de Valentino provoca suicídios; o de Garbo participa ainda do mesmo reinado do amor cortês, em que a carne gera sentimentos místicos de perdição.
Trata-se, indubitavelmente, de um admirável rosto-objecto; na Rainha Cristina, filme que foi reposto em Paris nos últimos anos, a caracterização tem a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos, são como duas nódoas um pouco trémulas. Mesmo em toda a sua extrema beleza, esta face, que não é desenhada, mas antes esculpida numa matéria lisa e esfarelável, o que quer dizer que é simultaneamente perfeita e efémera, aproxima-se da face enfarinhada de Charlot, dos seus olhos de vegetal sombrio, do seu rosto de tóteme.
Ora, a tentação da máscara total (a máscara antiga, por exemplo) implica talvez não tanto o tema do oculto (caso das mascarilhas italianas) como o de um arquétipo do rosto humano. Garbo dava a ver uma espécie de ideia platónica da criatura, e é isso que explica que o seu rosto seja quase assexuado, sem todavia ser ambíguo. Ë verdade que o filme se presta a essa indeterminação (a rainha é sucessivamente uma mulher e um jovem cavaleiro); mas a Garbo não realiza nenhuma proeza de disfarce; ela é sempre igual a si mesma, ostentando sem fingimento, debaixo da coroa ou dos seus grandes chapéus de feltro de abas caídas, o mesmo rosto de neve e de solidão. O seu apelido de Divina visava, sem dúvida, menos a expressão de um estado superlativo da beleza do que a essência dia sua pessoa corpórea, caída de um céu em que as coisas são criadas e acabadas na maior das claridades. Ela própria tinha consciência disso: quantas actrizes consentiram em deixar entrever à multidão o amadurecimento inquietante da sua beleza! Ela, não: era preciso que a sua essência se não degradasse, que o seu rosto não conhecesse nunca outra realidade além da perfeição intelectual, mais ainda do que plástica. A Essência foi-se obscurecendo pouco a pouco, progressivamente recoberta pelo véu dos óculos, dos chapéus e dos exílios; mas não se alterou nunca.
E, contudo, sobre este rosto divinizado, algo de mais agudo do que uma máscara se desenha: uma espécie de relação voluntária, e portanto humana, entre a curva das narinas e a arcada das sobrancelhas, uma função pouco vulgar, individual, entre essas duas zonas da face; a máscara não é senão a adição das linhas, o rosto é antes de mais uma referência temática de umas às outras. O rosto da Garbo representa esse momento frágil em que o cinema vai extrair de uma beleza essencial uma beleza existencial, em que o arquétipo vai ser inflectido para a fascinação dos rostos transitórios, em que a claridade das essências carnais vai dar lugar a uma lírica da mulher.
Enquanto momento de transição, o rosto da Garbo concilia duas idades iconográficas, assegura a passagem do terror ao encanto. Como se sabe, encontramo-nos hoje no outro pólo desta evolução: o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (a mulher infantil, a mulher felina), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade da Garbo era de natureza conceptual, a de Audrey Hepburn de natureza substancial, O rosto da Garbo é a incarnação da Ideia, o de Hepburn a do Acontecimento.



Mitologias
Roland Barthes
Edições 70
1988

02 abril 2006

post it / tiago alexandre correia

OS AMANTES COM DINHEIRO


Tinham o portão fechado a quem passava.
Tinham salas com brasões
e aquecimento central na mansão.
Tinham jardins onde a lua repousava
nos estofos da limousine
e um banqueiro rico por irmão.
*
Tinham como todos da espécie
o milagre da multiplicação do Euro
engordando nas contas;
e olhos de cifrão
onde ardiam
as megalomanias mais pomposas.
*
Tinham fartura e gula como os abades,
e silêncio
à roda dos seus chás,
mas a cada telefonema que faziam
um ministro caía
e deslumbrados penetravam nos lobbys.



tiago alexandre belejo correia



(poema/homenagem a Eugénio de Andrade, enviado pelo Tiago no dia da morte do poeta)

31 março 2006

estações

4)

crítica & amiguismo


Não, não é o gráfico da rede de “amiguismo”: é o desenho de um neurónio feito por Ramón y Cajal.

30 março 2006

post it / nuno travanca

sem título


na extensão imanente dos teus púberes dedos
outra linguagem
centelha apertada no corpo
desfeita pela lonjura das sombras


a letra levada a extremos
holograma da pele
investido em ângulos mais fracos
cada vez mais fracos


um prelúdio de esquecimento
gestação fúnebre do instante


o semblante do lugar
em puro desfasamento
afastado da luxúria
ao encontro da rugosidade do papel


dedos púberes e incompletos
registo óbvio da gnose
da leviandade
do próximo raio de tinta


o corpo
conteúdo da brevidade escutada


a centelha a desabrochar
no toque.



nuno travanca

28 março 2006

estações

3)


"28 de Outubro (1935)

A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Não é, de facto, uma descrição exacta de um mar bonançoso, mas o prazer de ter descoberto a semelhança, a exactidão de um liame misterioso, a necessidade de se gritar aos quatro ventos que de tal nos apercebemos.
No entanto, é igualmente idiota determo-nos aqui. Começada assim a poesia, é preciso terminá-la e compor uma narrativa rica de nexos e que equivalha a um juízo de valor.
Esta seria a poesia-tipo, a ideia. Mas, habitualmente, as obras são feitas de sentimentos — a exacta descrição da bonança — que, de vez em quando, espumejam em descobertas de relações. Pode ser que a poesia-tipo seja irreal e que — tal como nós vivemos também de micróbios — o que até agora foi feito seja constituído por simples pedaços miméticos (sentimento), por pensamentos (lógica) e por nexos mal esboçados (poesia). Uma combinação mais absoluta seria talvez irrespirável e idiota. "



Cesare Pavese
O ofício de Viver
Diário (1935-1950)
Trad. Alfredo Amorim
Relógio d’ água
2004

27 março 2006

post it / alexandre moreira

poema 15 ou 18



Não há homem verdadeiramente sozinho de
coração a esquecer a parecer
idiota com banco e negras
forma salto finalmente
o pálido o alemão com passo com porta
os momentos que se apoderam
há momentos que se apoderam nada mais se
move na sala de fumo conversas de
peito indignado a mover-se na sala de fumo um rapaz
muito bem talvez um rapaz discretamente envolvente
bem talvez envolvente
dois retratos a negociar-nos de chapéu alto de chapéu
alto se dorme suavemente
e as mãos as mãos as mãos são pouco sacrifício agora
de murmúrio diluído em receio se
é delicioso se há momentos que se apoderam do
mar ao longe a face a declarar guerra branca como
interior do vidro como troçar de nós mesmos um
minuto destes será quase vazio será
todo à beira desta cama não ouso
este pequeno papel espera não estou longe morrer
é afinal um dia bonito imóvel de vez até lá domir
comer tomei banho até lá que é afinal imóvel de vez até lá
até sempre
ter o sol todo coisa teatral por baixo lisboa
e eu nesta rua branca a vislumbrar um aborrecimento inteiro.



alexandre moreira

26 março 2006

um poema de: pier paolo pasolini


A UM PAPA


Poucos dias antes de morreres, a morte
pousou os olhos em alguém da tua idade:
aos vinte anos, tu estudavas, ele era pedreiro,
tu, nobre, rico, ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.
Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,
e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o
e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:
durante umas horas ficou ali, sob o rodado:
poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,
em silêncio: já era tarde, havia pouca gente.
Um dos homens que existem para que tu existas,
um velho polícia, desbocado como todos os patifes,
gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»
Depois veio uma ambulância buscá-lo:
as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,
e, mais à frente, a dona de um cabaré,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto.
Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um
dos do teu grande rebanho romano e humano,
um pobre bêbado, sem família nem leito,
que andava de noite, vivendo ao deus-dará.
Tu ignoravas: como ignoravas
outros milhares e milhares de cristos como ele.
Talvez seja cruel ao perguntar por que razão
a gente como Zucchetto é indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem na poeira antiga, na lama de outras eras.
Não muito longe de onde tu viveste,
à vista da bela cúpula de San Pietro,
fica um desses lugares, o Gelsomino...
Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé,
entre um charco e uma fieira de prédios novos,
um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas.
Bastava um gesto teu, uma palavra,
para esses teus filhos terem uma casa:
nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.
Ninguém te pedia que perdoasses Marx! Uma vaga
imensa que irrompe sobre milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas não se fala, na tua religião, de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu sabias que pecar não é fazer o mal:
não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.
Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste:
não houve quem mais pecasse do que tu.




poemas
pier paolo pasolini
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005