PROCURANDO DESESPERADAMENTE UMA MORAL INDIVIDUAL
A cruzada anti-tabaco
Mesmo as recentes campanhas contra o álcool e o tabaco ilustram a vaga pós-moralista. Por certo que o novo higienismo não é de todo desprovido de um espírito de cruzada: são concedidas condecorações às organizações e personalidades que contribuíram para promover a sociedade sem nicotina; nos Estados Unidos, agentes de segurança medem nas empresas a taxa de óxido de carbono do ar, empregados apanhados em flagrante delito a fumar nos seus locais de trabalho são despedidos; em França, a lei prevê a proibição de todo e qualquer tipo de publicidade ao tabaco. Qualquer que seja o radicalismo destas medidas, o neo-higienismo possui como característica o facto de não impor nenhum ideal superior à própria pessoa, mais não fazendo do que, em conformidade com a lógica do pós-dever, sacralizar o referencial da saúde, o direito dos não-fumadores, a protecção dos jovens, raros são os que justificam os novos dispositivos higienistas em nome dos interesses da nação ou da empresa. Os especialistas em saúde pública denunciam regularmente o «desastre sanitário» do alcoolismo e do tabagismo, mas as campanhas de informação já não dão primazia à derrocada moral da nação, à exigência de «regeneração física e moral» dos indivíduos, à indignidade dos que não respeitam os deveres individuais de higiene de vida. Os argumentos categóricos da moral individual tornaram-se obsoletos, não resta mais do que a problemática pós-moralista da protecção sanitária, livre da ideia de obrigação, quer individual quer colectiva.
Em nenhum lugar se trata de, a exemplo dos anos vinte nos Estados Unidos, instaurar a proibição do fabrico e do consumo de álcool e, agora, do tabaco, o objectivo é «convencer sem impor», sensibilizar a opinião através de spots publicitários dissuadir pela informação, reduzir cada vez mais o consumo através do aumento do preço do tabaco, O espírito higienista floresce, mas está mais preocupado com a tomada de consciência do que com a injunção autoritarista, apela menos ao esforço voluntarista dos sujeitos do que à eliminação das solicitações perigosas, acredita menos na repressão do que no impacto dos dados estatísticos de mortalidade, menos na pedagogia moral do que no apoio da auriculoterapia, na intervenção psicoterapêutica, no cigarro sem tabaco e sem nicotina. A lógica da imposição dirigista deu lugar à da persuasão e da dissuasão: viragem cultural do combate higienista que ilustra tipicamente os paradoxos da época pós-dever. O verbo é menos severo, a acção mais reguladora da sociedade civil; o discurso menos encantatório, as medidas - pelo menos no que diz respeito ao tabaco - mais intervencionistas e, sem dúvida, mais penetrantes a longo prazo. Quanto menos odes ao dever existem, mais crescem o empenho na libertação da escravidão da nicotina e a ansiedade sanitária; quanto menos são brandidas as obrigações morais individuais, mais as regulamentações detalhadas da vida quotidiana se multiplicam e se tornam socialmente legítimas; quanto menos clamor repressivo existir, maior é o número de dispositivos de repressão e de enquadramento rigoroso dos compor1amentos: informação generalizada, proibição de fumar nos locais públicos, proibição de publicidade, eis-nos na era da dissuasão e da vigilância pós-moralista
Face a esta vaga higienista, elevou-se um coro de vozes contra o que é, por vezes, apresentado como uma «nova ordem moral». Nem sempre com muita prudência semântica, não se tem deixado de vilipendiar, aqui e ali, o «totalitarismo frouxo» das nossas sociedades, empenhadas que estão em extirpar os vícios privados, em fazer desaparecer, pura e simplesmente, o consumo do tabaco, em dirigir cada vez mais de perto a vida quotidiana dos indivíduos: depois de Tocqueville, tornou-se clássico o gesto de associar qualquer extensão da influência da autoridade pública à tendência moderadamente «despótica» das democracias modernas. E, neste caso, é sem dúvida difícil negar que as medidas anti-tabágicas ilustram o facto de que o Estado moderno toma cada vez mais a seu cargo a existência colectiva. Em contrapartida, é menos convincente ver nisso uma manifestação new-look das ambições prometeicas do Estado democrático administrativo. Longe de legislar contra a vontade colectiva e de sujeitar a sociedade a uma norma exterior «tirânica», o Estado neo-higienista abre caminho às novas aspirações dominantes, narcísicas e clean, obcecadas pela saúde individual, alérgicas às lições de moral mas favoráveis às medidas sociais de regulação-dissuasão dos diversos «excessos». Os próprios adversários das novas políticas de saúde reconhecem a legitimidade, ou seja, a necessidade de muitas das medidas tomadas; num sentido, a guerra anti—tabaco não terá lugar dada a ausência da possibilidade de manter razoavelmente a posição antagonista, estritamente não-regulamentar, até às suas últimas consequências práticas. As oposições reais que se exprimam denunciam a extensão abusiva das obrigações impostas pela autoridade estatal, e não a necessidade de regulamentações. É manifesto o contra-senso que associa as políticas neo-higienistas a projectos de essência totalitária: ao seu nível mais profundo elas são consensuais e funcionais, traduzem mais a retracção liberal das perspectivas políticas contemporâneas do que uma vontade demiúrgica. O único objectivo é proteger a saúde, e não caminhar, em marcha forçada, em direcção do homem virtuoso, prolongar a vida, não mudá-la, reduzir os excessos nocivos, não extirpar a corrupção de costumes. A acção limita-se a informar, a proibir a promoção publicitária, a regulamentar o uso do tabaco nos lugares públicos, não proíbe o consumo. O Estado está empenhado em remodelar racionalmente os comportamentos? Todavia, não apela a nenhum sacrifício com vista a um fim colectivo superior aos interesses subjectivos. Qualquer que seja a expansão efectiva do poder administrativo sobre a sociedade civil, é o Estado «modesto» liberal que se manifesta, não o poder prometeico, que sonha reconstruir de acordo com os seus planos e passo a passo o homem e a sociedade. Os megaprojectos de regeneração social e moral foram aniquilados, resta apenas uma vontade de gestão optimizada dos corpos: as perspectivas revolucionárias de mudar a natureza humana foram substituídas por uma rigorosa administração operacional da saúde.
A verdadeira ameaça que pesa sobre as sociedades liberais não é tanto a infantilização dos cidadãos e a hidra do «fascismo moderado», mas a dualização social das democracias. Precisamente na altura em que alastra a febre higienista, blocos inteiros da sociedade afundam-se na marginalidade, na pobreza, na regressão sanitária. Nos Estados Unidos, o fenómeno adquiriu um aspecto particularmente importante ao longo dos últimos dez anos: 37 milhões de pessoas, entre as quais 12 milhões de crianças, estão excluídas de todo e qualquer sistema de segurança social, a taxa de vacinação infantil é inferior em 40% comparativamente às de outros países industrializados, os desempregados e os marginais representam mais de 30 milhões de pessoas, 1 em cada 5 crianças vive abaixo do limite de pobreza. No final dos anos oitenta, estimava-se em 25 milhões o número de americanos que tomam drogas, 500 000 dos quais consomem heroína com alguma regularidade e 6 milhões cocaína. O culto higienista-narcísico tem por reverso a pauperização, o desmembramento dos programas sociais, a regressão dos sistemas de segurança, o desaparecimento das formas de auto-controlo. As novas democracias, com dois ritmos de desenvolvimento, vêem coabitar os comportamentos «adequados» da maioria e as práticas sanitárias calamitosas, a ausência de cuidados, a escalada da «derrocada» toxicomaníaca de minorias mais ou menos numerosas. o individualismo liofilizado e «bem temperado» tem no seu reverso o individualismo «destroy».
O higienismo pós-moralista não é, nem o grande Satã denunciado pelos que vêem uma manifestação de totalitarismo em toda e qualquer medida racionalizadora dos comportamentos privados, nem uma política ao abrigo de qualquer derrapagem anti-liberal. É impossível associar a corrente neo-higienista a uma maquinação liberticida, quando se trata, nomeadamente, de proteger o espaço dos não-fumadores: a existência de locais separados é legítima de um ponto de vista exclusivamente liberal, dado o respeito devido aos direitos dos não-fumadores. A perspectiva não é moralizadora, mas sim de essência proteccionista e individualista: não queremos ser agredidos pelo fumo dos outros, só o interesse dos sujeitos é tido em conta, trata-se de salvaguardar a liberdade de uns sem fazer imposições aos outros. Em conformidade com uma lógica pluralista que abre toda uma gama de escolhas individuais, a organização de espaços distintos permite conciliar o higienismo com as aspirações legítimas à liberdade de viver sem fumo. De outra natureza são ou seriam as regulamentações que proíbem, sem excepção, fumar em todos os locais públicos. Neste caso, o direito de uns nega o direito dos outros, o higienismo transforma-se em polícia moral, em «terrorismo limpo», introduz um dispositivo regulamentar contrário aos valores de uma sociedade liberal que reconhece a cada um o direito de dispor livremente do seu próprio corpo, desde que não prejudique os outros.
O mesmo equívoco reside no cerne da questão da interdição da publicidade ao tabaco. Se se trata de proteger os menores, a proibição da publicidade pode ser considerada legítima, o Estado intervém a fim de impedir uma influência julgada nefasta sobre seres que ainda não foram reconhecidos como plenamente donos de si próprios e responsáveis. Mas, neste caso, as proibições deveriam dizer, logicamente, respeito apenas aos suportes e aos media acessíveis às crianças. Em contrapartida, a imprensa para adultos deveria poder continuar a difundir publicidade, porquanto se considera que os indivíduos maiores, donos da sua vida, têm direito a uma esfera privada fora do controlo social. Ao empenhar-se na exclusão total da publicidade ao tabaco, o Estado vai frontalmente contra os valores liberais, arroga-se o direito de determinar o que os cidadãos podem ou não ver, associando-os a seres incapazes de se auto-determinar na sua esfera privada: tais medidas drásticas são dificilmente compatíveis com uma sociedade baseada na liberdade individual e comercial. Não estaremos perante uma contradição, ao tornar ilícita, indistintamente, a publicidade a um produto cuja existência no mercado é legal? Porquê proibir a publicidade ao tabaco e apenas limitar a do álcool? Dir-se-á: é legítimo proibir uma publicidade que valoriza um produto responsável por dezenas de mortes por ano. Mas o automóvel não mata também em grande número? E ninguém se preocupa, evidentemente, em proibir a sua publicidade. Comparação inaceitável? Todavia, em ambos os casos, não é o produto em si que é perigoso, mas o excesso ou a imprevidência do seu uso. Mas se é apenas o abuso que deve ser combatido, podemos mostrar reservas quanto à legitimidade das regulamentações que se reportem à nocividade absoluta do produto.
Estas medidas recentes ilustram, no fundo, duas tendências contraditórias que coexistem na era do pós-dever. Uma é tutelar, rígida, hiperprotectora; a outra trabalha para fixar, de acordo com uma via mais liberal, fronteiras limites, regulamentações de geometria variável. Proibições redibitórias num caso, medidas diferenciadas no outro: sendo antinómicas, estas duas lógicas coabitam e continuarão, ao que tudo indica, a orientar mais ou menos conflituosamente o futuro das democracias contemporâneas.
O crepúsculo do dever
A ética indolor dos novos tempos democráticos
Gilles Lipovetsky
Trad. Fátima Gaspar e Carlos Gaspar
Publicações D. Quixote
1994
Sem comentários:
Enviar um comentário