14 dezembro 2021

luis garcia montero / canção 2001

 
 
Os jornais são
longas noites de inverno.
 
As minhas palavras ardem no lume.
 
E nos televisores
chove no molhado,
precisamente ali onde a terra
não conhece a chuva.
 
O frio do sermão
descobriu rosas, castigos e milagres
nas regras impuras da objectividade,
e agora vende notícias
em vez de areia branca nos passos do náufrago
ou liberdade nos cemitérios.
 
São as regras
e o mar não as esquece.
Espero-te à luz de um passado imperfeito.
Chegas pelas sombras de um futuro perdido.
 
 
 
luis garcia montero
a intimidade da serpente (2003)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018




 

13 dezembro 2021

albano martins / as palavras do pai

 
 
Olha, meu filho, esta
é a árvore
da vida. Crescerás
com ela. Às vezes
nos seus ombros colherás
lágrimas em lugar
de frutos, mas
é nos ramos mais altos
que o sonho
mora e a liberdade
floresce.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
toda a poesia
caderno de argolas (2000-2010)
glaciar
2021




 

12 dezembro 2021

josé agostinho baptista / eden mar hotel

 
 
Anoitece.
No promontório a oeste,
as aves do mar parecem adormecidas.
Uma única estrela acende a sua luz sobre o
horizonte,
sobre as lanternas brancas e azuis,
sobre a inquietação dos peixes vermelhos.
Mas nada se ouve.
Ninguém bate à porta,
os amigos são apenas uma palavra vazia,
sepultada para sempre.
Silenciosamente,
duas lágrimas descem do meu rosto,
na varanda deste hotel,
entre as árvores do fogo e a noite em ruínas.
Fecho os olhos.
Dói, às vezes docemente, dói a vida.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006




 

11 dezembro 2021

jorge roque / um exemplar falhado da espécie

 
 
I
Fascinados pela possibilidade alimentar que o extraordinário progresso criou, os povos desenvolvidos, organizados em estados, governados pela economia, administrada por uns quantos que com ela lucram, acomodam-se de boca cheia à condição de animal de criação na empresa desses quantos, cujo negócio é precisamente a classe privilegiada de que fazem parte. E se isto custa a perceber, tão perversa é esta aliança entre exploração e privilégio, o pior, está bom de ver, é o mais mau. Quero dizer: a janela que abriste, não mais poderás fechar. O frio que por ela entra é sem regresso. O homem que nesse desabrigo se ergue, não há casaco que o vista. Ínfimo diante da força surda do mundo, é nu que treme, nu que sofre, nu que desesperado grita. E nu, por fim, que morrerá sem alcançar a razão do seu grito. Lembrando o comentário do meu vizinho de baixo, proferido a respeito de pessoa alheia, mas curvado à verdade triste de ele mesmo ser um deles: coitado!



jorge roque
ladrador
averno
2012




 

10 dezembro 2021

josé ángel cilleruelo / a casa

 
 
Verão livros amontoados e sem ordem.
Muitos lidos, os romances de Joaquín Belda
assustarão alguém. Não vão achar diário
nem sublimes escritos com intimidades.
Não há quadros no quarto. Não há outra esperança
além de uma esferográfica que ainda escreva,
um envelope, um selo. E quando procurarem cartas
apenas verão velhos recortes de jornal.
Os cadernos que me ofereceram em Málaga.
Péssimas fotografias de família. Onze
versos casuais de um soneto inexistente.
E um feixe de razões para o esquecimento.
Quando abandonar a casa o último dia
pouca vida mais nela encontrarão.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004




09 dezembro 2021

william carlos williams / chegada

 
 
 
E, todavia, chegas
dás por ti a desatar-lhe
o vestido
em alheios aposentos –
sentes que o outono
deixa cair as suas folhas de seda e linho
junto aos seus tornozelos.
Falso é o brilho do corpo que emerge
e se contorce
como o vento do inverno…!
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993




 

08 dezembro 2021

sharon olds / domingo à noite na cidade

 
 
De mãos dadas, estendemo-nos na cama,
as nossas pernas compridas cruzadas como asas
dobradas, os nossos pés compridos tocando aos pés
da cama na sombra, o alçado gravado como
lápide com uvas. O teu cabelo em desalinho, escuro
como uma avelã negra, frisado como rebentos
de videiras. A tua mão direita na minha mão
direita. A minha mão esquerda na tua esquerda.
Braços entrelaçados como patinadores, estendemo-nos
sob a pintura de uma paisagem de campo: as silvas
negras e difusas como fumo, as árvores
erguendo os cinzentos esqueletos de peixe,
e ao centro, sobre nós,
o calmo lago
mudo como se fora eterno.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad. margarida vale de gato
antígona
2004




07 dezembro 2021

samuel beckett / vêm

 
 
 
vêm
diferentes e parecidas
com cada uma é diferente e parecido
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é parecida
 
 
 
samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





06 dezembro 2021

charles simic / livro de história

 
 
 
Um miúdo encontrou as suas páginas soltas
Numa rua movimentada
Deixou de jogar à bola
Para correr atrás delas.
 
Elas escaparam-se das suas mãos
Voando como borboletas.
Apenas pôde entrever
Alguns nomes, uma data.
 
Nos arredores o vento
Fê-las subir.
Foram arrastadas sobre o depósito de pneus usados
Em direcção ao rio cinzento,
 
Onde afogam os gatinhos –
E a barcaça desliza,
Aquela que crismaram Vitória
De onde um aleijado acena.
 
 
 
charles simic
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




05 dezembro 2021

federico garcia lorca / ao ouvido de uma jovem

 
 
Não quis.
Não quis dizer-te nada.
 
Vi em teus olhos
duas arvorezinhas loucas.
De brisa, de riso e de ouro.
Meneavam-se.
 
Não quis.
Não quis dizer-te nada.
 
 
 
federico garcia lorca
transversões
poemas reescritos em português
trad. de zetho cunha gonçalves
contracapa
2021




04 dezembro 2021

franz kafka / diários

 
 
1913, 20 de dezembro
 
 
Nenhuma carta.
 
O efeito de um rosto pacífico, de um discurso calmo, especialmente quando realizado por uma pessoa desconhecida que ainda não observámos. A voz de Deus vinda de uma boca humana.
 
Um velho andava pelas ruas no nevoeiro numa noite de Inverno. Fazia um frio de gelar. As ruas estavam desertas. Ninguém passou perto dele, só de vez em quando é que ele via à distância, meio escondido no nevoeiro, um polícia alto ou uma mulher com peles ou xailes. Não havia nada que o perturbasse, ele apenas queria visitar um amigo a casa de quem não ia há muito tempo e que tinha acabado de lhe mandar uma criada para o convidar a ir lá.
 
Passava muito da meia-noite quando soou um bater leve na porta do comerciante Messner. Não foi necessário acordá-lo, ele só adormeceu pela manhã, e até essa altura ele costumava ficar deitado na cama de barriga para baixo, com a cara enfiada na almofada, os braços em arco e as mãos postas sobre a cabeça. Ele tinha ouvido logo a pancadas na porta. «Quem é?», perguntou. Um murmúrio indistinto, mais leve do que as pancadas, foi a resposta. «A porta está aberta», disse ele e acendeu a luz eléctrica. Uma mulher delicada, pequena, envolta num grande xaile cinzento, entrou no quarto.



franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986




03 dezembro 2021

nathalie handal / três poemas para gaza

 
 
Gaza
Um dia numa faixa insignificante
buracos negros engoliram corações
e uma criança disse a outra
não respires
sempre que o vento da noite
deixar de ser uma terra de sonhos
 
 
Naturais de Gaza
Morri antes de viver
vivi em tempos numa campa
dizem-me agora que é pequena
para acomodar todas as minhas mortes
 
 
Pezinhos
Uma mãe olha para outra –
um mar de pequenos corpos
queimados ou decapitados
à sua volta –
e pergunta,
Como faremos o luto disto?
 
 
 
nathalie handal
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




02 dezembro 2021

peter sandelin / no comboio

 
 
Creio
que a neve não neva para cima
porque ali não há pessoas que a esperem
nem tão pouco plataformas de estação.
 
Creio
que as árvores o descobriram
e por isso se agarraram rapidamente à terra
com os seus braço amarelos.
 
e creio
que eu penso como uma criança
para me aproximar também de algo.
 
 
          De lysande och döda, 1953
 
 
 
peter sandelin
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. de amadeu baptista
contracapa
2021