31 dezembro 2021

manuel antónio pina / azul

  
A luz, se formos luz. A sombra
se formos sombra: os olhos, sombra;
o coração, sombra: a própria luz
do pensamento, exílio e sombra.
 
Na infância (pois fomos
jovens um dia) atrás dos reposteiros
o invisível vigiava
o nosso sono desperto.
 
Agora que acordámos
do amarelo e do azul
e do branco e do azul
e do coração e do azul,
 
como regressaremos
a este mundo?
(O azul não é deste mundo,
nem os olhos são deste mundo).
 
À nossa porta batem
inúteis lembranças: sombras.
Cegámos. Os amigos (sombras)
morreram de doenças de velhos,
o enfarte, a solidão, ou só
de morte, e nem
uma réstia de azul iluminou
o seu último olhar.
 
Se ao menos tivéssemos
envelhecido sem motivo, sem tempo,
desaparecido para dentro
lucidamente, como uma coisa desprendendo-se!
 
 
 
manuel antónio pina
moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





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