20 dezembro 2021

ernst moerman / mil anos na vida de um pássaro

 
 
Não sei muito bem quem sou.
As minhas questões, lá no céu, parecem indiscretas,
E toda a gente aqui tem um ar tão apressado.
 
Porque havia eu de fazer como eles?
O meu lugar está reservado, na morte.
Cem mil pássaros voam em meu redor,
E fingem não me avistar.
Cem mil pássaros de cristal
Invisíveis aos olhos do Mal.
 
É no meio desses pássaros
que me sinto mais à vontade;
os pássaros não têm começo nem fim.
Incessantemente pousam no que digo
E o que escrevem no céu
Deve ser lido ao contrário.
Os homens sacam ferros dos bolsos,
E prendem-nos pelos seus crimes impunes.
Na confluência do homem e da noite,
Três arames inimigos
Desenham no céu um triângulo,
Cujos três ângulos
Em conjunto valem dois ângulos rectos.
 
Triângulos no céu
Trespassados pela bruma,
Permitem aos pássaros sem memória
Partilhar entre si a noite.
 
Não sei muito bem quem sou.
Mas lembro-me duma noite de tempestade
Em que não pude afogar-me no mar.
A minha mãe ensinou-me a pintar-me de azul,
Para escapar às flechas do caçador.
Sou o urso do céu,
Num mundo em que o metal não tem cor,
E a música é imóbil.
 
Não sei muito bem quem sou.
E conheço poucas coisas.
Conheço o cheiro da Terra
Como conheço a chuva do Céu,
Entre dois fumos.
 
A morte é uma ladra de pássaros.
E é por ela que agora sei,
Que fui um pássaro.
 
 
 
 
O mundo, esse nó corrediço à volta do pescoço,
Para os muito jovens, apertado se usa,
Para os muito velhos, frouxo se usa,
Mas a juventude, para comprar cordas
Não tem dinheiro.
E a velhice já não tem pescoço.
 
 
 
ernst moerman
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 



 

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