02 abril 2025

giórgios seféris / o jardim e suas fontes sob a chuva

 
 
 
VI
 
                                            M.R.
 
O jardim e suas fontes sob a chuva,
hás-de vê-lo apenas da janela baixa
por trás do vidro fosco. O teu quarto
de luz só terá a chama da lareira
e às vezes ao luzir longínquo dos raios ver-se-ão
as rugas da tua fronte, velho amigo.
 
O jardim e suas fontes, que nas tuas mãos eram
ritmos de outra vida, para lá dos mármores
quebrados e das colunas trágicas
e um espaço entre os loureiros
junto à nova pedreira,
 
um vidro turvo ter-to-á cerceado de tuas horas;
não hás-de respirar; a terra e a seiva das árvores
saltarão dos teus sonhos para virem bater
a esta vidraça onde bate a chuva
do mundo lá fora.
 
 
De Mythistorema, 1935
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 


01 abril 2025

kiki dimoulá / 1 de abril

 
 
 
Abril
– o famoso jardineiro –
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.
 
A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.
 
 
 
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003





 

31 março 2025

juan luis panero / a memória e a morte

 
 
 
     Só são tuas – na verdade – a memória e a morte,
a memória que apaga e desfigura
e a sombra da morta que aguarda.
Só lembranças fantasmais e o nada
repartem entre si tua herança sem destino.
Depois de contratos sórdidos, mentiras,
de gestos inoportunos e palavras
– irreais palavras ilusórias -,
só um testamento de cinza
que o vento move, espalha e desordena.
 
 
 
juan luis panero
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento
assírio & alvim
2001





 

30 março 2025

e. m. de melo e castro / aí estás

 
 
 
Aí estás. Solitária entre o pó e os homens,
transposta mas presente, construída
de tão pequenos pensamentos e de tão
leves quase ilusões dos teus sentidos.
 
Aí estás e não nos tens lembranças,
nem te lembramos, nem te esquecemos,
nem a presença em que estás é nossa
e no entanto és tu.
 
Para sempre as nossas mãos são actos
do teu querer.
 
Para sempre os nossos ideais são destroços
de ti.
 
Aí estás.
Para sempre a nossa ignorância
és tu.
 
 
 
e. m. de melo e castro
ignorância da alma (1956)
antologia da novíssima poesia portuguesa
livraria moraes editora
1971
 



 

29 março 2025

maria alberta menéres / meditação

 
 
 
XXXII
 
Fechei os olhos, para ver melhor
tudo o que a luz me negava!
– E quando o sono chegou
antes da revelação,
senti a minha alma paralela
como as grades que um jardim
desenha, às vezes, no chão…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




28 março 2025

david mourão-ferreira / infinito pessoal

 
 
 
Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse…
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto…
Como se de repente o Mundo entontecesse…
 
Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.
 
Mas de entre as espirais confusas quem sabia
Se era de novo amor, se era só melodia?
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971




27 março 2025

mário de sá-carneiro / quasi

 
 
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...
 
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
 
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
– Ai a dor de ser - quasi, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
 
Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
 
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
 
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
 
……………………………………………………..
……………………………………………………..
 
 
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d’ asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Paris 1913 – maio 13
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007





26 março 2025

miguel torga / fronteira

 
 
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente, doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
 
O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.
 
Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.
 
 
 
miguel torga
libertação
1944
poesia completa vol. i
dom quixote
2007




25 março 2025

josé de almada negreiros / a um poeta que morreu

 
 
 
Sou eu o que está atrasado
tu já te despediste
– a verdadeira despedida –
o silêncio já fala por ti
e eu ainda tenho para dizer.
 
Por mim o silêncio ainda não fala,
a vida ainda me dá a palavra
e cá estou eu para me embaraçar
e todos embaraçar no meu novelo.
 
Violenta deusa, ó Serenidade,
que tão tumultuosos nos trazes em buscar-te,
a tua exigência só à Morte aproveita!
 
Cegos por ti, ó Serenidade,
escalamos os dias, dia a dia,
e a memória não relê
ao que a morte pôs ponto-final!
 
Mas finalmente entendo por que o Sol
anda por vales e por montes
semeando cores parecidas,
acesas, luminosas, vivas,
por onde nós vamos passando!
Do princípio ao fim
os braços sempre erguidos
as mãos no fim dos braços
por cima das mãos o ar
e depois ponto-final.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




24 março 2025

cesário verde / contrariedades

  
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
     Consecutivamente.
 
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
     E os ângulos agudos.
 
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
     E engoma para fora.
 
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
     Mal ganha para sopas...
 
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d’um jornal me rejeitar, há dias,
     Um folhetim de versos.
 
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d’uma redação, das que elogiam tudo,
     Me tem fechado a porta.
 
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
     Vale um desdém solene.
 
Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
     Diverte-se na lama.
 
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
     Me negam as colunas.
 
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
     Deliram por Zaccone.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
     Do que escrever em prosa.
 
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
     Os meus alexandrinos...
 
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
     E fina-se ao desprezo!
 
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
     D’uma opereta nova!
 
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
     Impressas em volume?
 
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
     Todas as minhas obras
 
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
     Que mundo! Coitadinha!
 



cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024





23 março 2025

luís vaz de camões / aquela triste e leda madrugada



 
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
 
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se d’üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
 
Ela só viu as lágrimas em fio,
de que d’uns e d’outros olhos derivadas
s’acrescentaram em grande e largo rio.
 
Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988
 




 

22 março 2025

camilo pessanha / porque o melhor, enfim




 

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!
 
– Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. –
 
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
 
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
 
Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva
 
Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.
 
Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício
 
Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...
 
Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,
 
Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...
 
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...
 
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.
 
 
 
camilo pessanha
clepsydra
assírio & alvim
2003
 




 

21 março 2025

bertolt brecht / os tempos modernos




 
Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova,
Meu neto talvez ainda viva na antiga.
 
 
A carne nova come-se com velhos garfos.
 
 
Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques
Nem os aviões sobre os telhados
Nem os bombardeiros.
 
 
As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976