13 agosto 2021

cesare pavese / virá a morte e terá os teus olhos

 



 

Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
 
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
 
 
                                22 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021





 


12 agosto 2021

pedro salinas / poema

 
 
Não te vejo. Mas sei
que estás aqui, por detrás
de uma frágil parede de ladrilhos e de cal, ao alcance
da minha voz, se te chamasse.
Mas não, não te vou chamar.
Chamar-te-ei amanhã,
quando, ao deixar de te ver,
me imagine que continuas
aqui ao pé, a meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem não quis pronunciar.
Amanhã… quando lá
estiveres, por detrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de tempo.
 
 
 
 
pedro salinas
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021

 




11 agosto 2021

nuno júdice / um resto de insónia

 
 
A noite chegou até ele sem bater à porta;
devagar, instalou-se no sofá da sala, escureceu
os cantos, roubou a luz às lâmpadas. E
não abriu a boca: enquanto ele, sem nada
compreender, a empurrava para longe de si,
tentava abrir as janelas, acendia velas,
que ela soprava por trás. A noite chega,
assim, afirmando a sua presença. Não dá
descanso, a não ser que a aceitem como ela é:
mas não é fácil tê-la dentro de casa, nem conviver
com os seus gestos de treva. Talvez se possa,
apenas, murmurar esse nome que ela nos
roubou, um dia, e que só agora se nos torna
necessário lembrar; ou invocar uma protecção
ilusória, a deusa diurna, de cabelos iluminados
pelo ouro primaveril. Tudo inútil – e como ela
se ri!, a noite branca que o obriga a manter
os olhos abertos, fixando o último fio de luz,
como se também a sua vida escorresse por aí…
 
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





 

10 agosto 2021

tomás gonzález / passaram dias felizes

 
 
Onde
o optimista costume
de querer ser melhor?
Fiquem para primos afastados
as imperiosas buscas de dias felizes,
os derradeiros sorrisos de um futuro simpático.
 
Aqui já é esta hora.
Diferentes corações sofrem sem ânsias de consolo.
Outros redimem penas que não reconhecerão mais tarde.
 
Fique para o rico,
recaia sobre ele, como ganho imerecido,
a fortuna de viver.
Aqui já fomos muito felizes.
Aqui já é esta hora surda e cinzenta.
 
 
 
tomás gonzález
(espanha, 1940-1966)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 






 
 

09 agosto 2021

john ashbery / algumas árvores

 
 
Estas são notáveis: cada uma
Ligando-se à seguinte, como se a fala
Fosse uma representação imóvel.
Combinando por acaso
 
Encontrar-nos tão distantes esta manhã
Do mundo como concordes
Com ele, tu e eu
Somos de repente o que as árvores tentam
 
Dizer-nos que somos:
Que só o aí estar delas
Significa algo: que em breve
Poderemos tocar-nos, amar, explicar.
 
E contentes por não termos inventado
Um tal decoro, estamos cercados:
Um silêncio já cheio de ruídos,
Uma tela em que emerge
 
Um coro de sorrisos, uma manhã de Inverno.
Postos sob uma luz enigmática, e movendo-se,
Os nossos dias adoptam uma tal reticência
Que estas inflexões parecem a sua própria defesa.
 
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995

 





08 agosto 2021

manuella bezerra de melo / a cadela que fazia amizade

 
 
A cadela que fazia amizade
lambendo feridas e
não sabia abanar o rabo
teve a língua arrancada
                (adocicada)
servida com ovos moles
 
 
 
 
manuella bezerra de melo
volta para tua terra:
uma antologia antirracista/antifascista de
poetas estrangeiros em portugal
editora urutau
2021

 





07 agosto 2021

j. r. solonche / hoje vesti uma t-shirt

 
 
Hoje vesti uma T-shirt
com o focinho de um lobo.
Se a reencarnação existe mesmo,
eu gostaria de regressar
como um lobo. Um lobo
cinzento, um lobo vermelho ou
qualquer um da lista de
raças em perigo. Se
voltasse na minha próxima vida
como um lobo à beira da
extinção, podia fazer coisas
tais, podia fazer coisas
tais, digo-te, podia
fazer coisas tão maravilhosamente
horríveis que não consigo dizer-te.
 
 
 
j. r. solonche
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020





 
 

06 agosto 2021

josé carlos barros / o vaso de plástico

 


 

trago para dentro de casa o vaso de plástico não
vá passar adriano entre as sombras da noite e
roubá-lo com a erva da fortuna para os
jardins da sua vila em
tivoli
 
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020





 


05 agosto 2021

julio cortázar / sábio com buraco na memória

 
 
 
     Sábio eminente, história romana em vinte e três volumes, candidato certo ao prémio Nobel, grande entusiasmo no país. súbita consternação: rato de biblioteca em ‘full-time’ edita grosseiro panfleto denunciando omissão. Caracala. Relativamente pouco importante, de qualquer maneira omissão. Admiradores estupefactos consultam Pax Romana que artista esquece pessoas Vara devolve-me as minhas legiões homem das mulheres e mulher dos homens (atenção aos Idos de Março) o dinheiro não tem cheiro com este sinal vencerás. Ausência incontroversa de Caracala, consternação, telefone desligado, sábio não pode atender rei Gustavo da Suécia mas não é esse o rei que quer chamá-lo mas sim um outro que marca o número baldamente praguejando numa língua morta.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 




04 agosto 2021

louis aragon / ar do tempo

 
 
Nuvem
Ergue-se um cavalo branco
E é madrugada na estalagem onde despertará o
                                       rimeiro que aparecer
Vais andar a vadiar no meio da gente a vida inteira
Semi-morto
Semi-adormecido
Não estás farto dos lugares comuns
As pessoas olham-te sem se rirem
Têm olhos de vidro
E tu passas
Perdes o teu tempo
Passas
Contas até cem e fazes batota para matar mais dez segundos
Estendes bruscamente o braço para morrer
Não tenhas medo
Mais tarde ou mais cedo
Só haverá mais um dia e a seguir um dia
E depois pronto
Nunca mais será preciso ver os homens nem esses abençoados
                         bichinhos que eles afagam de quando em vez
Nunca mais será preciso falar sozinho durante a noite
                          para não ouvir o lamento da lareira
Nunca mais será preciso abrir as minhas pálpebras
Nem lançar o meu sangue como um disco
Nem respirar sem ter vontade disso
Contudo não desejo morrer
O sino do meu coração canta em voz baixa uma
                            uma esperança muito antiga
Esta música
Bem sei
Mas a letra da canção
Que dizia a letra ao certo
Imbecil
 
 
 
louis aragon
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 





03 agosto 2021

charles bukowski / está qualquer coisa a bater à porta

 
 
uma grande luz branca amanhece sobre o
continente
enquanto adulamos as nossas tradições falhadas,
muitas vezes matamos para as preservar
ou às vezes matamos só por matar.
parece não ter importância: as respostas balouçam
fora do alcance,
fora de mão, fora da mente.
 
os líderes do passado eram insuficientes,
os líderes do presente não estão preparados.
enroscamo-nos nas nossas camas à noite e esperamos.
é uma espera sem esperança, uma
oração pedindo graças imerecidas.
 
tudo se parece cada vez mais com o mesmo velho
filme.
os actores são diferentes mas o enredo é o mesmo:
absurdo.
 
devíamos ter aprendido ao observar os nossos pais.
devíamos ter aprendido ao observar as nossas mães.
eles não sabiam, eles próprios não estavam
                                               preparados
para ensinar.
éramos demasiado ingénuos para ignorar os seus
conselhos
e agora adoptámos a sua
ignorância como
nossa.
somos eles, multiplicados.
somos as suas vidas não saldadas.
estamos falidos
de dinheiro e
de espírito.
 
há algumas excepções, claro,
mas estas oscilam
sobre o precipício
e a qualquer momento
cairão para se juntar
a nós,
os delirantes, os derrotados, os cegos e os tristemente
corruptos.
 
uma grande luz branca amanhece sobre o
continente.
as flores abrem-se cegamente no vento fétido,
enquanto o nosso século XXI,
grotesco e em última instância
inabitável,
se esforça por
nascer.
 
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





 

02 agosto 2021

allen ginsberg / nas traseiras do real

 
 
parque de locomotivas em San Jose
                desconsolado eu deambulava
frente a uma fábrica de tanques
                e sentei-me num banco
junto à baiuca do agulheiro.
 
Uma flor jazia no feno sobre
a estrada asfaltada
– a assombrosa flor do feno
                pensei eu – tinha um
negro caule crestado e uma
                corola de espinhos sujos
amarelados como polegadas
                da coroa de Jesus e um tufo
de algodão seco e manchado
                no meio tal pincel de barba
usado que jazesse soterrado
                há um ano na garagem.
 
Amarela flor, amarela e
                flor da indústria,
dura flor aguçada e feia,
                e ainda assim flor,
com a forma da grande Rosa
                amarelo dentro da cabeça!
É esta a flor do Mundo.
 
 
San Jose, 1954
 
 
 
allen ginsberg
uivo e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2014





01 agosto 2021

josé de almada negreiros / de 1 a 65

 


                                «N’adhéres jamais»
                                       Georges Braque
 
 

Nasci d’asas
com asas
cortaram-me as guias
de pé no chão
vieram os filhos
cortaram-me os pés
cresceram as asas
sei só voar
sem pé em terra
sem pá no mar
tenho pé no ar
filho d’asas
abe voar
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017