13 setembro 2019

sebastião alba / a esperança enlaçava a âncora




A ESPERANÇA ENLAÇAVA A ÂNCORA
por sobre o banco de Antero…
foi-se a idade da bala no céu da boca
(pois que outro céu havia?)
e a da morte acerca de cujos lances,
na guerra, os tabus são omissos:
como ir-se babando pelo chão
atrás dum olho seu.
Esperarei até que as unhas se encaracolem,
sem um corredor entre os cimos das árvores
nem outra evasão em que vogue,
que a Ursa Maior me fareje
da sua constelação, e se aproxime.



sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996





12 setembro 2019

marta navarro / complexo de interioridade




Antes de terminar
antes de me remeter ao silêncio da ilha
que não sei ainda descrever
mas desejo que seja a casa
da mentalidade pós-lógica
uma última coisa:
o tempo que dá o ritmo
às ideias e às acções
é o da eterna repetição cíclica
Hofmannsthal procurava x
eu procuro x
e como se este voltar a procurar
este continuar a procurar
não se autojustificasse
cem anos de novas combinações
eu posso escrever a ouvir Korn
ele não.
Isto deveria bastar para me tranquilizar
mas não basta
Da insatisfação em adaptação
de adaptação em insatisfação
saio à noite para levar o complexo de interioridade à rua
e mesmo quando apanho o melhor banco do jardim vago
vejo apenas sombras
de ucronia
uma dupla dança
que a exegese diz que diz
a um só tempo
não tinha de ser assim
mas é assim
do que se conclui que
melhor não conseguiriam
mais não conseguiriam
e eu não sou mais que a voz
do teu complexo
citando para
manter viva a fragilidade
do «triunfo do avesso»
do versilibrista.




marta navarro
doqse concq
editora a tua mãe
2016






11 setembro 2019

jesús lizano / mamíferos



Eu vejo mamíferos.
Mamíferos com nomes estranhíssimos.
Esqueceram-se que são mamíferos
e crêem-se bispos, canalizadores,
leiteiros, deputados. Deputados?
Eu vejo mamíferos.

Polícias, médicos, porteiros,
Professores, alfaiates, cantautores.
Cantautores?
Eu vejo mamíferos…

Presidentes, criados, escriturários, mestre d´obra.
Mestres d´obra!
Como pode crer-se mestre d´obra um mamífero?
Membros, sim, membros, crêem-se membros
do comité central, da ordem dos médicos…
académicos, reis, coronéis.
Eu vejo mamíferos.

Actrizes, putas, assistentes, secretárias,
directoras, lésbicas, puericultoras…
Na verdade, eu vejo mamíferos.
Ninguém vê mamíferos,
ninguém, ao que parece, se lembra que é mamífero.
Serei eu o último mamífero?
Democratas, comunistas, xadrezistas,
jornalistas, soldados, camponeses.
Eu vejo mamíferos.

Marqueses, executivos, sócios,
Italianos, ingleses, catalães.
Catalães?
Eu vejo mamíferos.

Cristãos, muçulmanos, coptas,
Inspectores, técnicos, beneditinos,
Empresários, caixeiros, cosmonautas…
Eu vejo mamíferos.



jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019






10 setembro 2019

rui caeiro / escolher uma razão de ser triste



Escolher uma razão de ser triste
– ele há tantas – e depois sê-lo

Sem hesitação, apaixonadamente

Dar á luz um poema imerecido
e logo de seguida abandoná-lo

Sem hesitação, galhardamente




rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019







09 setembro 2019

fernando lemos / dois horizontes




Dois horizontes
duas árvores
dois corpos

no meio um arame
no meio do arame
um frio
por cima de tudo
uma tempestade
duas nuvens
dois clarões
a iluminar os dois corpos

no meio um arame
no meio do arame
um frio

no meio do frio
o medo



fernando lemos
poesia
porto editora
2019





08 setembro 2019

josé de almada negreiros / esboço




O Sol-posto de mau gosto nem acerta com o postal.
A tarde hoje veio cedo
ainda hoje não comecei.
A paisagem não foi feita por mim
e a casa falta pensá-la.
Um hálito de convalescente casa-se com o sol poente.
Uma mulher sozinha na estrada
e o homem sozinho que a vê.
Fica o moinho a cantar
a rotina secular.


                                *
                *                             *

Tejo, lombada do meu poema aberto em páginas de sol.
Poesia dos pinheiros solteiros
encostados à nostalgia do fresco da tarde.




josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017






07 setembro 2019

daniel francoy / latitudes




Fala-me Conrad de um tempo,
ou melhor, de uma latitude
que ultrapassada impede
qualquer regresso –
como se o destino de um homem
fosse descer por uma luz vacilante
degrau após degrau.

Sujamo-nos, não há outro caminho
que não seja ter as mãos sujas.
Sujamo-nos e são as mãos sujas
o último elo a romper-se.
Por elas passa o ouro conseguido
a um custo indizível,
o perfume de amores enlouquecidos,
as flores que colhemos quando
muito jovens ou muito cansados.
O último elo a romper-se porque
da luz mais gasta permanece o pólen.




daniel francoy
identidade
editora urutau
2016







06 setembro 2019

federico garcia lorca / meia-lua




Pela água vai a lua.
Como o céu está tranquilo!
Vai ceifando lentamente
o tremor velho do rio,
enquanto um ramo jovem
a toma por espelhinho.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013









05 setembro 2019

luís falcão / envelhecemos avaliando perdas



Envelhecemos avaliando perdas
corroídos pela solidão e pelo medo
tocamo-nos, retemo-nos
como azáleas doentes
cujas ossos
escuríssimos e inacessíveis
procuram uma aliança de fogo branco



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016










04 setembro 2019

joão luís barreto guimarães / um quarto de hotel em madrid




Não se chega a pertencer nunca a
quarto de hotel. Não se lhe ganha afecto (não
é nosso por inteiro) se é
certo que amanhã outro dono estará
emoldurado
ao espelho. Não se chega a confiar nele
(não se lhe lega segredos) sequer a
palavra impudica expurgada
da pele
pela toalha de banho. Não chega a
ser nossa a cama (não se molda
a nosso jeito) melhor que
nem te despeças dessa alcova pela manhã
quando sabes como é lesta a
entregar-se ao próximo viandante
por dinheiro.




joão luís barreto guimarães
você está aqui (2013)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019






03 setembro 2019

tomas tranströmer / passagem para peões



Vento gélido contra os olhos, raios solares dançam
no caleidoscópio das lágrimas quando atravesso
a rua, rua que me tem seguido tanto tempo,
e onde o verão gronelandês brilha nas suas poças d´água.

Ao meu redor rodopia toda a força da rua,
de que nada se recorda e nada quer.
No subsolo, bem no fundo, sob o trânsito,
espera aí há mil anos a floresta por nascer.

Ocorre-me que a rua olha para mim.
O seu olhar é tão suspeito que até o sol
parece uma meada cinzenta no escuro do céu.
Neste instante sou eu que brilho. A rua vê-me!




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






02 setembro 2019

jacques brel / a minha infância




A minha infância passou
Entre tédios e silêncios
Entre falsas mesuras
E batalhas que não houve
De Inverno no ventre
Daquela grande casa
Que tinha ancorado
A norte por entre os juncos
De Verão meio nu
Mas modesto por inteiro
Tornava-me índio
Embora já convicto
De que meus tios cevados
Me tinham roubado o Far West

A minha infância passou
As mulheres nas cozinhas
Onde eu sonhava com a China
Envelheciam em cozinhados
Os homens ao queijo
Envolviam-se em tabaco
Flamengos calados e ponderados
E não me conheciam
Eu que todas as noites
Ajoelhado por nada
Arpejava o meu desgosto
Aos pés da cama imensa
Queria apanhar um comboio
Que jamais apanhei

A minha infância passou
De criada em criada
Admirava-me já
Não serem elas plantas
Admiravam-me ainda
Essas rodas de família
Flanando de defunto em defunto
E que o luto cobre
Admirava-me sobretudo
Vir eu de tal rebanho
Que me ensinava a chorar
Que eu conhecia demais
O meu olhar era de pastor
Mas o coração de cordeiro

A minha infância estourou
Chegou a adolescência
E o muro do silêncio
Uma manhã ruiu
Foi a primeira flor
E a primeira namorada
A primeira gentil
E o primeiro medo
Eu até voei eu juro
Eu juro que até voei
O meu coração abria os braços
Era o fim da barbárie

E a guerra chegou

E eis-nos agora aqui



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997





01 setembro 2019

byron / neste dia completo o meu 36.º aniversário




É tempo deste coração permanecer insensível
porque já não pode comover o dos outros:
mas, se por ninguém eu posso ser amado,
ainda quero amar!

Os meus dias estão nas folhas já caídas;
as flores e os frutos do amor abandonaram-me;
o verme, o cancro, o profundo desgosto
a ninguém mais pertencem!

Como uma ilha vulcânica, sozinho
o fogo vem consumir-se no meu peito;
não há nenhum lume que aí se reacenda
– uma chama funerária!

A esperança, o temor e o ciúme,
tudo o que é excessivo no sofrimento,
e o poder do amor, não posso compartilhar,
só lhes sofro as cadeias.

Mas não é assim – e não é neste lugar –
que deviam estes pensamentos abalar-me, nem agora
quando a glória decora o túmulo do herói
ou lhe coroa a fronte.

A espada, a insígnia e o campo de batalha,
a glória e a Grécia, contemplo à minha volta!
O guerreiro espartano, erguido sobre o escudo,
Não era mais livre.

Desperta (que a Grécia, ela está acordada!)
Desperta, meu espírito! Pensa naquele
cujo sangue vital corre para o lago materno
e encontra o seu destino.

Subjuga os desejos que despertam ainda,
virilidade indigna! – para ti
deveriam ser indiferentes o sorriso ou o duro
olhar da Beleza.

Para que vives, se lamentas a tua juventude?
Aqui fica o lugar de uma morte honrosa.
Caminha para a luta, e deixa que se apague
o teu último alento!

Procura – sem o procurar, tê-lo-ias encontrado –
o túmulo de um soldado, aquilo que mereces;
olha por fim à volta e prefere esta terra,
aceita o teu descanso.



byron
poesia romântica inglesa
(byron, shelley, keats)
trad. fernando guimarães
editorial inova
1977