26 julho 2019

valter hugo mãe / as brincadeiras




brincávamos a cair nos braços
um do outro como faziam as actrizes
nos filmes com marlon brando e
suspirávamos sem saber habituar o
coração à dor

o amor um pelo outro como se a desgraça
nos servisse bem o peito todo em movimento
a vida podia durar um dia

doíam-me os braços e tu caías uma e outra vez
distante eu era um lugar abandonado
querias culpar-me por ser triste de outro modo
lento convicto culpado fui o primeiro a dizer que
amar é afeiçoar o corpo ao perigo

a minha mãe avisava valter tem cuidado
não brinques assim vais partir uma perna
vais partir a cabeça vais partir o coração
estava certa foi tudo verdade


valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
segundo livro, terceira parte
pornografia erudita
assírio & alvim
2018





25 julho 2019

paulo da costa domingos / quatro



A Beleza quer-se cheia,
mas um de cada vez…
Vale mais um prodígio néscio
que um desejo insatisfeito.

Só os amantes da Beleza
deixam perplex’ o Belo,
cingido a núbeis axiomas.

Mesmo quando a folha cai,
Recebe a terra esses beijos.

Múltiplos.



paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017







24 julho 2019

rui costa / não são poemas



Não são poemas o que eu escrevo
São casas onde os pássaros esperam.
Nas suas janelas coincide o mundo.
Nos seus esteios resvalam gigantes.
Algumas vezes ódio.
Algumas vezes amor.
Não são mortalhas incondicionais do medo.
O HÓSPEDE DA CASA NÃO
TEM O DEVER DE SER FELIZ!
Não são poemas que eu escrevo
São espelhos onde os rostos principiam.


rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





23 julho 2019

samuel beckett / bebe sozinho



bebe sozinho
incha arde fornica rebenta só como defronte
dos ausentes mortos os presentes fedem
retira os olhos e lança-os sobre os juncos
se eles se divertem ou se dão lamentos
pouco te importe existe o vento
e o estado de vigília


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970









22 julho 2019

lawrence ferlinghetti / o olhar do poeta obscenamente olhando



O olhar do poeta obscenamente olhando
vê a superfície do mundo redondo
                com os seus telhados bêbados
                e oiseaux de madeira nas cordas da roupa
                e machos e fêmeas de gesso
                com pernas ardentes e seios de roseira
                em camas desmontáveis
e as suas árvores plenas de mistérios
e os seus parques domingueiros e as suas mudas
                                                          [estátuas
e a sua América
                com as cidades fantasmas e as Ilhas Ellis
                                                                  [vazias
e a sua paisagem surrealista de
                planícies sem espírito
                subúrbios de supermercados
                cemitérios aquecidos a vapor
                dias santos de cinerama
                e catedrais protestatárias
um mundo à prova de beijo formado de tampas de
                                         [retrete tampax e táxis
                cowboys de drugged-stores e virgens de
                                                             [las vegas
                peles-vermelhas expropriados e matronas
                                                           [cinemalucas
                senadores não-romanos e não-objectores
                                                      [de consciência
e todos os outros fatais e desguarnecidos
                                                              [fragmentos
do mundo do imigrante que se tornou real de mais
                e se extraviou
                                        no meio dos banhos de sol


lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972








21 julho 2019

eugénio de andrade / ao luís miguel nava, noutra estrela




Dizem que foste tu
a escolher a violência
da tua morte, num acorde perfeito
com os teus versos. Não é verdade:
tu sabias que nenhum inferno
é pessoal, por isso procuravas
um rio onde ardesses
para voltares a nascer longe da terra.
Apenas isso – o resto é merda.




eugénio de andrade
relâmpago nº. 15 10-2004
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2004





20 julho 2019

bénédicte houart / há tantas criaturas



há tantas criaturas, mas
a minha preferida é deus
de todas tem alguma coisa
de nenhuma, tudo



bénédicte houart
inimigo rumor
número 15
2º semestre 2003







19 julho 2019

yorgos seferis / a casa perto do mar



As casas que tive tiraram-mas. Calhou
que fossem anos nefastos guerras desolações expatriamentos;
por vezes o caçador encontra as aves de passagem
por vezes não as encontra; a caça
era boa no meu tempo, os chumbos apanharam muitos;
os outros vagueiam ou enlouquecem nos refúgios.

Não me fales do rouxinol nem da cotovia
nem da pequena arvéola
que escreve algarismos na luz com a sua cauda;
não sei muito de casas
sei que têm a sua tribo, mais nada.
novas ao princípio, como as crianças de colo
que brincam nos jardins como as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e brilhantes
portas sobre o dia;
quando o arquitecto acaba mudam,
enrugam ou sorriem ou mesmo teimam
com os que ficaram com os que partiram
com outros que voltariam se pudessem
os que se perderam, agora que o mundo
se tornou num imenso hotel.

Não sei muito de casas,
lembro-me da sua alegria e da sua tristeza
às vezes quando paro;
                                            mesmo
às vezes, perto do mar, em câmaras nuas
com uma cama de ferro sem nada meu
olhando a aranha nocturna cismo
que alguém se prepara para vir, que o enfeitam
com roupa branca e negra com jóias multicores
e em seu redor falam baixo damas veneráveis
cabelos cinzentos e rendado escuro,
que se prepara para vir e despedir-se de mim;
ou, uma mulher com pestanas em hélice talhe profundo
voltando de portos meridionais,
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria,
de cidades fechadas com as quentes persianas,
com perfumes de frutos de ouro e com ervas mágicas,
que sobe os degraus sem ver
os que adormeceram debaixo das escadas.

Sabes as casas teimam facilmente, quando as despes.


yorgos seferis
tordo
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





18 julho 2019

umberto saba / despedida




Vós o sabeis, amigos, e eu o sei.
Também os versos são quais bolas de sabão:
umas sobem, outras não.



umberto saba
«commiato», cose leggere e vaganti (1920)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003









17 julho 2019

antónio gancho / amor, entre a vida e a morte



AMOR, ENTRE a vida e a morte
escolhe à nossa sorte
ou o amor ou a loucura
escolhe a morte escolhe a vida
escolhe o beijo com ternura
amor, a vida não dura
a vida não dura, amor
e a ternura não sabe
mas cabe a ti dizer
o que é loucura até morrer
é a morte é a vida
é o beijo até morrer




antónio gancho
poemas digitais
jun. / jul. 89
o ar da manhã
assírio & alvim
1995







16 julho 2019

e e cummings / xix poemas



[xi]

“fundemos uma revista

que se lixe a literatura
queremos uma coisa com sangue na guelra

piolhosa com pura
fedendo com absoluta
e determinadamente obscena

mas deveras limpa
estão a ver
não estraguemos a coisa
façamos a coisa a sério

qualquer coisa de autêntico e delirante
percebem qualquer coisa de genuíno como uma marca
numa retrete

agraciada com gana e esganada
com graça”

apertem os tomates e abram a cara



e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998





15 julho 2019

wallace stevens / teoria



Sou o que me rodeia.

As mulheres compreendem isto.
Não se é duquesa
A cem metros de uma carruagem.
Estes, então, são retratos:
Uma antecâmara preta;
Uma cama alta protegida por cortinas.

Isto são meros exemplos.



wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991



14 julho 2019

alberto caeiro / estou doente. meus pensamentos começam a estar confusos,




Estou doente. Meus pensamentos começam a estar confusos,
Mas o meu corpo, tocando nas coisas, entra nelas.
Sinto-me parte das coisas com o tacto
E urna grande libertação começa a fazer-se em mim,
Uma grande alegria solene como a de um acto heróico
Pondo a vis no gesto sóbrio e escondido.

1-10-1917


alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
presença
1994