02 maio 2018

paulo da costa domingos / tira




Bofetões. É o que levais
desta vida. Falta de tempo
para fugir ao sofrimento.
Masturbações às escondidas,
tais e tantas e de tantas
formas aos patrões, que já nem
sabeis qual o vosso sexo.

E outras coisas que não ficam bem
ditas num poema para a risível
História da Literatura, é o que levais
enquanto uns poucos, os puros
habituais, só consomem recursos.

Por isso, ide e julgai esses,
olhai direito nos olhos
o vosso sustentável vampiro.

A nu.


  
paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017









01 maio 2018

paul éluard / aos meus camaradas tipógrafos




Tínhamos o mesmo ofício
Que ajudava a ver na noite
Ver é compreender e agir
É ser ou desaparecer.

Era preciso acreditar preciso
Crer que está nos homens o poder
De ser livre e de ser melhor
Que o destino que lhe foi imposto

E nós esperávamos a grande primavera
E nós esperávamos uma vida perfeita
E que a claridade se decida
A carregar todo o peso do mundo.



paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971







30 abril 2018

antónio ramos rosa / a sede do silêncio





                A sede do silêncio é um fruto do silêncio. A sede da palavra nasce da palavra que nasce do silêncio. A necessidade do silêncio é uma necessidade da palavra que (não) se perde na palavra. Distância, deserto, de árvore em árvore, a eterna sede, a sede do eterno, da frugal transparência do efémero. Terra, toda a distância da terra em cada sílaba, em cada vocábulo sem água. A página é deserto e caminho errante, obstinado. O horizonte do deserto anula a miragem, nega o imaginário. A sede da página é sede da ausência e sede da palavra do horizonte. A ausência é a segunda dimensão do dia, o outro lábio da terra, a verdadeira voz do vocábulo.




antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001








29 abril 2018

álvaro de campos / ah as horas indecisas em que a minha vida parece de um outro...




Ah as horas indecisas em que a minha vida parece de um outro...
As horas do crepúsculo no terraço dos cafés cosmopolitas!
Na hora de olhos húmidos em que se acendem as luzes
E o cansaço sabe vagamente a uma febre passada.

s.d.



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993







28 abril 2018

al berto / salsugem




4
às vezes… quando acordava
era porque tínhamos chegado

ficava a bordo encostado às amuradas
horas a fio
espiava a cidade as colinas inclinando-se
para a noite lodosa do rio
e o balouçar do barco enchia-me de melancolia

a noite trazia-me aragens com cheiro a corpos suados
cantares e danças em redor de fogos que eu não sabia
o ruído dos becos a luz fosca dum bar
se descesse a terra encontrar-te-ia… tinha a certeza
para o voo frenético do sexo
e num suspiro talvez alagássemos os umbrais da noite
mas ficava preso ao navio… hipnotizado
com o coração em desordem
os dedos explorando nervosos as ranhuras da madeira
os pregos ferrugentos as cordas

as luzes do cais revelavam-me corpos fugidios
penumbras donde se escapavam ditos obscenos
gemidos agudos sibilantes risos que despertavam em mim
a vontade sempre urgente de partir




al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997






27 abril 2018

herberto helder / as musas cegas




VIII
Ignoro quem dorme, a minha boca ressoa.
Despedir-se dos meses é uma nova tarefa, um ofício
inquieto. Às vezes na noite
vejo as casas pequenas, as rosas que se voltam
para o subterrâneo e subtil
ruído da seiva. Penso nas mulheres
de pálpebras descidas, no seu espírito
expansivo que repousa. Nas crianças que enlouquecem
silenciosamente dentro da sua inocência.
Às vezes na noite ainda jovem, mas
que principia a engolfar-se no seu doce
hermetismo — tantas vezes
penso na chuva, e nos corpos, e nas pontes onde
se encontra alguém
com as cegas mãos escorrendo para o fundo
o sangue de uma imensa
inspiração. Eu sei: despedir-se dos meses
é um ofício inquieto.

As luzes, as mesas, as armas antigas, os jardins debruçados
nas violas paradas. Não sei o que há
tão veloz e tão firme
na base de um homem. Às vezes vejo
que é uma invencível doçura, um espanto
colorido em redor de uma casa, uma raiva
generosa nas mãos iluminadas.
Mas no fundo, no fundo,
é a boca desmanchada que sangra devagar.
Ignoro quem dorme, é um ofício novo e louco,
uma tarefa perene do coração
sobre quanto se ignora. Minha boca ressoa.
Os próprios meses ressoam como espelhos ardentes,
como telhados, cúpulas, livros,
como objectos ardentes.

Sobre um rosto eu diria: é um rosto? Sobre
uma vida eu perguntaria se era
a força de uma vida. Porque os ossos e as veias
vão de corpo para corpo,
e despedir-se de tudo é um ofício inquieto.
Tudo isto é uma musa, um poder, uma pungente
sabedoria. As rosas que há
nas palavras, as palavras que estão
no alto como fungos luminosos, as palavras
que gravitam em baixo
no instável momento que avança e recua
ao pé da eternidade — as mãos
rodeando uma lâmpada, essas mãos
docemente cobertas de sangue — tudo isso
disposto para a inquietação de um ofício.

Eu sei: as vigas da cabeça estremecem um pouco.
Partem-se, aqui e ali,
alguns arcos secundários. Uma vida pode tremer
do princípio ao fim. É instantâneo,
eterno. Mas é o homem
que recebe a inspiração violenta.
Ignoro quem dorme, a minha boca está no fundo,
móvel, coberta de sangue, a minha
boca ressoa como as cavernas de um barco,
a minha boca da minha vida
é um ofício. O meu ofício de despedir-me
um pouco engolfado na loucura.
A minha tarefa inquieta de pôr a vida
na sua oculta loucura.

Tudo isso canta nas galerias dos meses
ornados de delgados mastros
acesos. E despedir-se dia a dia
desta torrente de pequenas imagens alucinadas e mansas
é um mister ainda jovem,
algo que se aprende lentamente com as mãos
e a garganta e a testa
e o marulho das águas que correm profundamente
em lugares inacessíveis,
sem nomes nem janelas por onde surja a cabeça
coroada de violinos.
É um violento ofício, e no fundo desse ofício
violento e puro,
a boca está coberta de um perturbado sangue
masculino.


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





26 abril 2018

eugénio de andrade / rotina




Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.





eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000








25 abril 2018

sophia de mello breyner andresen / nestes últimos tempos







Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo —  de seu
Viscoso gozo da nata da vida — que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos da sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?



sophia de mello breyner andresen
o nome das coisas
caminho
2004





24 abril 2018

josé carlos ary dos santos / in memoriam




Requiem aeternam dona eis,
Domine, et lux perpetua
Luceat eis.



Que a terra lhe seja pesada.
Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,
Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta
E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento
E arrase com ela a memória gravada
Na lembrança demente dos que o choram.

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Cheio de ossos e uivos
E garfos aguçados
E que reparta o medo com o primeiro intruso
E o vento se insinue pelas portas fechadas
E rasteje no quarto
E suba pela cama
E lhe entre no olhar como estiletes de aço,
Lhe penetre os ouvidos como agulhas de som.
Lhe emaranhe os cabelos como um nó de soluços,
Lhe desfigure o rosto como um ácido em chama.

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Que a mulher que foi dele oiça o vento na cama!

Que o nome que era o seu o persigam os ecos,
O gritem no deserto as gargantas com sede,
O murmurem no escuro os mendigos com frio,
O clamem na cidade as crianças com fome,
O soluce o amante de súbito impotente,
O maldigam no exílio as almas sem descanso.

Que o nome que era o seu seja a bandeira negra,
A pálpebra doente,
O vómito de sangue.
Que o gesto que era o seu o imitem as mães
Que se torcem de dor quando abortam nas trevas,
O desenhem a lume os braços amputados,

O perpetue o esgar dos jovens mutilados,
O dance o condenado que morre na fogueira.

Que o gesto que era o seu seja o punhal do louco,
A arma do ladrão,
A marca do vencido.

Que o sangue que era o seu o farejem os cães
Nas veias de seus filhos.
Que o sangue que era o seu se lhes veja nas mãos,
E lhes aperte os pulsos como algemas de lodo,
Lhes carregue o olhar como um sopro de infâmia,
Lhes assinale a testa como um escarro de fogo,
Lhes atormente os passos como um peso de lama.

Que o sangue que era o seu seja o rictus da tara,
A máscara de sal,
A vingança do pobre.
E que o Exterminador, no seu trono de enxofre,
o faça tilintar os guizos da tortura
Até que o mundo o esqueça
E mais ninguém o chore.



ary dos santos
vinte anos de poesia
fotografias, 1970
círculo de leitores
1983







23 abril 2018

eva christina zeller / o mar não conhece o mar




o mar não conhece as profundidades
nenhum azul nem conhece as suas ondas
o mar não é soberbo nem
manso nem amargo
não conhece o sabor do vento nem da espuma
o mar não vê nenhum sol
nem terra nem seixos
O mar não ama o céu
nem a lua
o mar não se conhece


eva christina zeller
sigo a água
trad. maria teresa dias furtado
relógio d´água
1996






22 abril 2018

luís vaz de camões / verdes são os campos




Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.



luís vaz de Camões








21 abril 2018

nydia bonetti / caminho






caminho arranhando meus pés sobre as pedras
quentes

gosto

do som das rodas que se arrastam sobre
concreto

fatídicas vias [de fato]

gosto
do som da vida em seu eterno arrastar-se
                                                                  sobre/tudo



nydia bonetti
& natália gregorini
de barro e pedra
editora urutau
2017






20 abril 2018

wislawa szymborska / crepúsculo do século




Devia ter sido melhor que os anteriores o nosso século XX.
Já não conseguirá sê-lo,
tem os anos contados,
o passo vacilante,
o fôlego curto.


Já demasiadas coisas se passaram
que se não deveriam ter passado
e não chegou
o que deveria ter chegado.

Devia ter-se tendido mais para a primavera
e para a felicidade, entre outras coisas.

O terror devia ter abandonado vales e montanhas.
E, mais rápida que a mentira,
Devia ter sido a verdade a primeira a chegar.

Houve desgraças
que já não deviam ter acontecido,
a guerra, por exemplo,
e a fome, e por aí fora.

Deveriam ter sido considerados
a capacidade de defesa dos indefesos,
a confiança e etc.

A quem quis alegrar-se com o mundo,
deparou-se-lhe um projecto
impossível de realizar.

A imbecilidade não é cómica.
A sensatez não é alegre.
A esperança não é já aquela rapariga fresca
e mais e mais, infelizmente.

Deus deveria finalmente ter confiado no homem
bom e forte,
mas o bom e o forte
continuam a ser duas pessoas.

Como viver, perguntou-me numa carta alguém
a quem eu tencionava perguntar
a mesma coisa.

Uma vez mais e como sempre,
como se vê no que acabei de dizer,
não há perguntas mais urgentes
que as ingénuas.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998