20 fevereiro 2018

luís miguel nava / a pouco e pouco








     Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.

     Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.

     Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.




luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







19 fevereiro 2018

josé luis garcía martin / o último convidado




Os amigos foram-se despedindo
e antes que pudesses dar-te conta
estás de novo a beber sozinho.
Também tu queres ir a qualquer lado
onde sem fim a festa continue.
Porém não podes. Há um convidado
ainda por chegar. Abres a porta,
sentas-te à sua espera, olhas ao longe
as lentas luzes de barcos na noite.
Um último convidado. Tens medo
de que afinal decida que não vem.
Os teus olhos fecham-se. Não te importes.
Podes ao vê-lo chorar como criança.
Mais vale que chegue contigo adormecido.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998







18 fevereiro 2018

fernando pessoa / há entre mim e o mundo…




Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são — como são para os outros.

Sinto isto.

1915?


fernando pessoa
páginas íntimas e de auto-interpretação
ática
1966












17 fevereiro 2018

jorge de sena / lepra





A poesia tão igual a uma lepra!
.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .  


E os poetas na leprosaria
vão vivendo
uns com os outros,
inspeccionando as chagas
uns dos outros.


jorge de sena
perseguição (1942)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972










16 fevereiro 2018

rui knopfli / o fio da vida




Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não crêem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.



rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982







15 fevereiro 2018

ruy belo / segunda infância




À tua palavra me acolho lá onde
o dia começa e o corpo nos renasce
Regresso recém-nascido ao teu regaço
minha mais funda infância meu paul
Voltam de novo as folhas para as árvores
e nunca as lágrimas deixaram os olhos
Nem houve céus forrados sobre as horas
nem míseras ideias de cotim
despovoaram alegres tardes de pássaros
O sol continua a ser o único
acontecimento importante da rua
Eu passo mas não peço às árvores
coração para além dos frutos
Tu és ainda o maior dos mares
e embrulho-me na voz com que desdobras
o inumerável número dos dias



ruy belo
dedicatória
todos os poemas I
assírio & alvim
2004






14 fevereiro 2018

nuno júdice / gramática




Com que gramática se escreve? A
de  um luar antigo, por onde voaram
as aves nocturnas em busca
de alvorada? A de uma sintaxe matinal,
emprestando ao verso o soletrar
luminoso das vogais? Ou a dessa tarde
que deixou nos lábios o sabor
de palavras secas como as folhas
de outono?

Aprendi essas gramáticas nos
compêndios da imaginação; decorei
as suas regras com o fervor obscuro
das mnemónicas doentes; repeti
os seus exemplos em estrofes
vazias como as caixas amontoadas
num sótão de infância.
“Terá valido a pena esse
trabalho?”, perguntas-me. De facto,
não sei que resposta te poderei
dar. Os livros – arrumados nesse
canto do infinito em que nunca
nos havemos de encontrar; as frases,
sem ligação, como se a vida
as tivesse desfeito no moinho
da eternidade.

Então, pergunto eu: de que corpo
és a sombra sem rosto, o pulso
sem emoção, a queixa sem a música
de um murmúrio?




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997








13 fevereiro 2018

enrique lihn / mais velho




     O filho único seria o mais velho de seus irmãos
e em sua orfandade algo possui
do que se entende pela palavra velho. Como se também tivessem
                morrido
seus impossíveis irmão mais novos.
Muito mais rigoroso que o luto repartido
é o seu; a morte cortou-o à sua medida,
coseu-o, lenta, com extrema finura,
enquanto o pai se ia vazando no filho,
envelhecia-o à força de o criar à sua imagem
– menino outra vez o homem, homem outra vez o menino –
em noites tão escuras como o luto que levam.

     E o filho tem alguma coisa de um irmão mais velho
como se o rodeássemos, nonatos, enquanto ele nasce pela segunda
                vez
para uma vida mais grave que a nossa.
Alguém se olha nele com os olhos fechados,
gravita em seu silêncio
sobre nossas palavras sem objectivo.




enrique lihn
trad. josé bento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001








12 fevereiro 2018

manuel antónio pina / primeiro domingo




A tarde estava errada,
não era dali, era de outro domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.

E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num temo alheio e impresente.

Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.

23/4/99


manuel antónio pina
nenhuma palavra e nenhuma lembrança (1999)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012






11 fevereiro 2018

álvaro de campos / depus a máscara e vi-me ao espelho




Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.
E volto à personalidade como a um terminus de linha.

18-8-1934


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944





10 fevereiro 2018

herberto helder / elegia múltipla




IV
A colher de súbito cai no silêncio da língua.
Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos
puros. E sei que não é uma flor aberta
ou a noite cercada de águas extremas.
Paro por esta monstruosa,
ingénua força de uma morte.
— A colher envolvida pelo silêncio extenuante
da minha boca, da minha vida.

Que faço? Bem sei como se alimenta um homem,
e tímido e arguto
alimenta a sua irónica inspiração solar,
a inocente astronomia
de ossos e estrelas, veias e flores
e órgãos genitais —
para que tudo se construa docemente,
com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados,
sorrindo fixamente como as crianças na lírica,
tenebrosa densidade da carne.

A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo,
manso, ponderado — por certo
de uma beleza confusa e evocativa.
Eis: sou um homem que instante a instante
ganhava um sabor de perene
sentido, uma duração de sombra extasiada,
laboriosa, inclinada no grave centro
da primavera — a sombra
das minhas mãos.

A colher subia como um instrumento da criação,
firme subia nos dedos
como que invocando, unindo os fragmentos
do espírito,
a mímica na sugerida integridade
da pessoa
colocada na doce integridade do tempo.
Mas paro. Cai no silêncio da língua
a colher que era — quem sabe? — música,
intimidade, sinal fortuito
de uma essência, de um génio interior.

O puro roer devagar roerá
a colher na mão e a boca na colher,
e no sangue imóvel o pudor da imagem onde
coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam
na assimetria festiva e sagaz das invenções.
                                                                  — Cai
no silêncio da língua a colher tão brusca.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





09 fevereiro 2018

andré breton / rano raraku





Como o mundo é belo
A Grécia nunca existiu
Não passarão
O meu cavalo acha a ração na cratera
Homens-pássaros remadores arqueados
Voaram-me em volta da cabeça porque
Também sou eu
Quem lá está
Atolado a três quartos
A troçar dos etnólogos
Na amena noite do Sul
Não passarão
A planura não tem fim
Quem se destaca é risível
As altas imagens caíram.



andré breton
Xénophiles (1948)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994






08 fevereiro 2018

alexandre o'neill / em pleno azul




Com horror mal disfarçado
sincero desgosto (sim!)
lágrima azul aflita
mão crispada de piedade
vêem-me passar cantando
calamidades desastres
impossíveis de evitar
as mães
                as minhas a tua
as que estropiam ternamente os filhos
para monótono e prudente
avanço da família

E quando paro e faço a propaganda
dos lugares mais comuns da poesia
há um terror quase obsceno
nos seus olhos maternais

Então prometo congressos
em pleno azul

Prometo uma solução
em pleno azul

Prometo não fazer nada
em pleno azul

sem consultar o «bureau»
em pleno azul

Visivelmente sossegadas
é a hora de não cumprir
de recomeçar cantando
calamidades desastres
ruínas por decifrar


*

Se eu não estivesse a dormir
perguntaria aos poetas
A que horas desejam que vos acorde?

Vamos decifrar ruínas
identificar os mortos
dormir com mulheres reais
denunciar os traidores
e atraiçoar a poesia
envenenada nas palavras
que respiram ausência podre
vamos dizer sem maiúsculas
o amor a vida e a morte

                *

E as mães
onde estão elas?

As mães rezam as mães
cosem farrapos de dor
as mães gritam
choram
uivam
no espesso rio de um sono
já quase só animal



alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas
assírio&alvim
2000