26 julho 2017

carlos de oliveira / descida aos infernos


1
Desço
pelo cascalho interno a terra
onde o esqueleto da vida
se petrifica protestando.

Como um rio ao contrário, de águas povoadas
por alucinações mortas boiando levadas
para a alma da terra,
procuro os úberes do fogo.




carlos de oliveira
descida aos infernos
antologia poética
quasi
2001





25 julho 2017

ingeborg bachmann / invocação da ursa maior




Ursa Maior, desce noite hirsuta,
animal de pêlo de nuvens e olhos antigos,
olhos estelares;
irrompem cintilantes da espessura
as tuas patas e garras,
garras de estrelas;
atentos, vigiamos os rebanhos,
e, ainda que fascinados por ti, evitamos
os teus flancos cansados, os teus dentes aguçados
meio descobertos,
velha ursa.

Uma pinha: o vosso mundo.
Vós: as suas escamas.
Movo-o, faço-o rolar
dos pinheiros do princípio
aos pinheiros do fim:
farejo-o, tenteio com o focinho
e arrebato-o com as garras.

Que tenhais medo ou não:
deitai o vosso óbulo na caixa tilintante e dai
ao cego uma boa palavra,
para que tenha a Ursa pela trela.
E temperai bem os cordeiros.

Poderia acontecer que esta Ursa
se escapasse e já não ameaçasse
antes desse caça a todas as pinhas
caídas dos pinheiros, grandes, aladas,
despenhadas do Paraíso.




ingeborg bachmann
trad. josé lima
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







24 julho 2017

yorgos seferis / romance



II
Ainda mais um poço dentro de uma caverna.
Outrora era-nos fácil extrair ídolos e adornos
para se alegrarem os amigos que nos permaneciam
          ainda fiéis.

As cordas romperam-se; apenas sulcos na boca
          do poço
nos lembram a nossa felicidade passada:
os dedos no murete, como dizia o poeta.
Os dedos sentem a frescura da pedra um pouco
e o calor do corpo conquista-a
e a caverna joga a sua alma e perde-a
a cada momento, cheia de silêncio, sem uma gota.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993






23 julho 2017

álvaro de campos / domingo irei para as hortas na pessoa dos outros




Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Subtil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

9-8-1934


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944




22 julho 2017

tereza balté / os mitos



Os nossos gestos passam as palavras
prenunciam-lhes riscos sedimentos
partículas pensadas poluídas
sob a delicadeza com as feridas
o fio de sangue impresso nas bainhas

a erosão da voz no universo

e no entanto há arestas macias
o sal na língua o rir dos interstícios
as fórmulas que inventas na areia
arestas verosímeis que sustêm
parábolas em busca de finito




tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977







21 julho 2017

rené char / folhas de hipno




6
O esforço do poeta visa transformar velhos inimigos em leais adversários, dependendo toda a fertilidade do porvir do sucesso desse projecto, sobretudo no ponto preciso em que se lança, se enlaça, declina, é dizimada toda a variedade dos véus em que o vento dos continentes entrega o seu coração ao vento dos abismos.

         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




20 julho 2017

jorge luís borges / a prova




Do outro lado desta porta um homem
ignora a sua corrupção. À noite
elevará em vão alguma prece
ao seu curioso deus, que é três, dois, um,
e julgará que é imortal. Agora
ele ouve a profecia da sua morte
e sabe que é um animal sentado.
És esse homem, irmão. Agradeçamos
os vermes e o esquecimento.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




19 julho 2017

gil nozes de carvalho / no elevador da bica



1
O dia contrai na luz a rosa, dor
e ter um nome e perfumá-lo
sem saber porquê. Lá para o cimo
arde firme a mucosa no pátio
sujo. Cresce o cheiro, a palma
volta-se no sol esconde o rio,
um qualquer sexo, rapado
antes dos primeiros portos.


2
Doeu-lhe, esquecida uma das mãos,
na muralha, o aroma esfacelado mas
encontrou o que sempre quis
a superfície, o nome do castelo
na tensa água de uns olhos.




gil nozes de carvalho
alba
gota de água
1982




18 julho 2017

wystan hugh auden / blues fúnebres




Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas
     da cidade,
Que os policias de trânsito usem luvas pretas de algodão

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha
      canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol:
Despejem o oceano e varram o bosque;
Porque agora tudo é inútil.


w. h. auden
diz-me a verdade acerca do amor
dez poemas
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
1994




17 julho 2017

pedro oom / autoficção amorosa




Construí-a
irreal
transparente
lúcida     esguia     um mar
                            interior na barriga
   correias de transmissão nos cabelos


Os anéis de Saturno são a força centrí-
      fuga centrípeta que lhe agita os braços
      no espasmo amoroso

Halley o metropolitano

75 milhões de anos-luz atravessam-na da cabeça
                                                      à cauda

deito-me com ela todas as noites na via láctea



pedro oom
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




16 julho 2017

bernardo soares / encolher de ombros



Damos commumente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.

Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que não lhe compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro. Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua sendo a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém, não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é, com efeito, já outro sentimento.

Não sei que efeito subtil de luz, ou ruído vago, ou memória de perfume ou música, ou tangida por não sei que influência externa, me trouxe de repente, em pleno ir pela rua, estas divagações que registo sem pressa, ao sentar-me no café, distraidamente. Não sei onde ia conduzir os pensamentos, ou onde preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro húmido e quente, triste sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo — que não tenho sentimentalidade para aparar —, o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito. Reclino-me. A tarde cai monótona e sem chuva, num tom de luz desalentado e incerto... E deixo de escrever porque deixo de escrever.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982







15 julho 2017

herberto helder / fonte



V
Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa,
formusura inclinada sobre a descerrada cinza
e o frio dos retratos.
E espero que a seiva ascenda a um puro gosto
de reaver tua grave cabeça de mãe
com platina entre a aragem, seiva que inspire
o vermelho de uma face entre vivos
que adormecem no vinho e acordam
para o pomposo início dos destinos. Rogo
apenas que meus dedos não esqueçam o pão e a tristeza,
e a boca vibre como um pensamento
na substância de um seu instante –
carnal, irremovível.

E se morrer é a alta vocação das manhãs marcadas
pelas uvas – peço-te, mãe um dia
composta sobre a veemente confusão
das forças e dos números, que resguardes
entre as descuidadas dobras de pedra
o fulgor subtil de onde plátanos e aves recebiam
uma vida de quase dolorosa
beleza.

Partem-se, rente à primavera que nos cobria
de previsão e de silêncio,
os sentidos que havia sobre o teu rosto manchado.
E então é para ti, pequena e imensa coisa
engastada no alto das águas, no fundo de
desmemoriadas sementes – para ti só,
mãe engolfada no próprio leite renascente, que
se elevam uns lábios como feridos, tocados
pelo sumo incompleto, pelo podre sono da próxima
incontida primavera.

O que se diga está sagrado na frescura de um novo
coração. Por isso o ouro, como o inseguro passo
de um dia que traz a morte em sua intensa
juventude, roça a forma do espírito
em que tu mesma te buscavas – rápida e quente
em nós, no equilibrado idioma
de fomes e sorrisos que nunca
se decifram.

Num lugar onde a sombra é gémea
de um fogo irrevelado, jamais
se fazem mortes que se não destinem a um escarlate
de rosa. Jamais se adormece,
que não seja para ler um estuante anúncio
nas pálpebras que se apagam.

Por isso, como um instinto, nasces
da tristeza e te arrebatas, nasces como os bichos
da matéria dos seus dias, ou os frutos
que vacilam no bojo das auroras,
e em seu signo se embebem – até que o tempo os faz
violentos,
                   sagrados,
                                    impalpáveis.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996




14 julho 2017

pedro tamen / e agora: a tua pele




E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
no côncavo da mão o sol nascia.


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982