18 fevereiro 2017

álvaro feijó / porque viste chegar


Porque viste chegar
em carros que custaram
quantias fabulosas
ladies loiras,
signoras encantadoras
e os seus inseparáveis cães de luxo,
porque as viste chegar cheias do pó da estrada
e com ar de quem
teve perto de si o sofrimento,
choraste.
Valeu a pena? Não!
Valia a pena chorar por aqueles
que vinham
a pé.

Novembro de 1940



álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961



17 fevereiro 2017

harold pinter / naquele tempo



Bom, não havia problema.
Todas as democracias
(todas as democracias)

estavam connosco.

Por isso tínhamos de matar umas pessoas.
E então?
Os das esquerdas às vezes são mortos.

Era o que costumávamos dizer
Lá naquele tempo:

A tua filha é das esquerdas

Vou meter-lhe este aríete
Por ali acima acima acima
Mesmo por dentro e até lá acima
Mesmo por dentro do seu imundo corpo das esquerdas.

E isso parou os das esquerdas.

Pode ter sido naquele tempo
Mas  digo-te que esse é que foi um bom tempo.

De qualquer forma todas as democracias
(todas as democracias)
Estavam connosco.

Diziam: só não
(só não)
Digam a ninguém que estamos convosco.

Só isso.
Só não digam a ninguém
(só não)
só não digam a ninguém
Que estamos convosco.

Matem-nos só.

Bem, a minha mulher queria paz.
E os meus filhos pequenos também.
Por isso matámos todos os das esquerdas.
Para darmos paz aos nossos filhos pequenos.

De qualquer forma não havia problema.
De qualquer forma estão todos mortos de qualquer forma.

1996


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




16 fevereiro 2017

fernando echevarría / as janelas dão sempre para estarmos



As janelas dão sempre para estarmos
a ver por elas o que não se vê
 – o ponto onde o fenómeno é epifania de acto,
a palpitar por trás no tempo só de ser.

E deitam a crescer de forma tal que quando
vêem melhor, crescer
é, sobretudo, emudecer seu quadro
no pulso imperceptível que toda a ausência tem.


fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




15 fevereiro 2017

sophia de mello breyner andresen / corpo a corpo



Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
poesia I
caminho
1999




14 fevereiro 2017

eugénio de andrade / frente a frente



Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
– e é tão pouco!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




13 fevereiro 2017

josé gomes ferreira / a morte para nós, a turbamulta


XIII

A morte para nós, a turbamulta,
nada descerra
nem oculta…

É apenas este ritmo entre nós e a Terra.


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971




12 fevereiro 2017

jorge de sena / aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males


Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) -
- tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes,
ou sejam todos quantos pavoneam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.

Porque não há ninguém por mais que te ame,
Ou por mais que seja teu amigo (e,
Com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
Fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
Que te perdoe que tu não tenhas estourado,
No momento em que se soube que estouravas.
É uma "partida"(ou um "regresso" sem piada nenhuma)
Absolutamente e aterradoramente inaceitável,
Humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás como se diz,
Com língua de palmo. Se és um pobretano,
Solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas,
Que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito,
Uma tontura, um como que silêncio negro,
Podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante,
Está livre de ocupações permentes para te acudiar.
Uma que outra vez apenas, para alívio,
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
Irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
E quando em desespero tu reclamas.

Não contes com mais nada senão morte,
Se tens família, amando-te sem dúvida,
Inteiramente dedicada a ti que seja ou é,
Não penses que não és constante imagem
Sem desculpa alguma de andar pela casa,
Um pouco vacilante, às vezes suplicando,
Uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te,
A fazer referências tidas de mau gosto
À espada que para onde vás segue suspensa
Sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém
Até contraditoriamente porque te amam,
Suportam que não sejas quem tu eras,
Mas só a morte adiada, o que é diverso,
Do horror de um cancro que não se sabe
Quando matará mas é criatura de respeito,
Crescendo em ti como se estiveras grávida.
Assim, meu caro, com coração desfeito
Sem metáfora alguma, és apenas uma
Indecorosa e miserável chatice.

Portanto, irmãos humanos, se estourais,
Estourai, por uma vez aliviando
Quem vos quer ou não quer por uma vez.


jorge de sena
40 anos de servidão
moraes
1979



11 fevereiro 2017

herberto helder / o poema



     VI

     Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina
     a harpa e a loucura desperta a pura espada
     em pleno sangue. Ó vasto,
     amargo e límpido mês interior onde a graça
     se toca do fogo e o corpo se torna o cândido
     e longo varão de música. Escada de seiva
     entre arbustos de estrelas
     e cubos de sal perpetuamente ardendo.
     — Por ti, mês feliz de confusão e génio,
     eu levanto minha húmida boca
     até ao ar e ao vinho, levanto
     minha obscura pedra por vias de tormento
     e instinto até
     ao barro vermelho do céu, ao espasmo
     violento e sagrado das palavras.

     Mês por onde subo fundamente agitado
     em meu coração de argila, em minhas veias
     de pequena infância espantada e grata.
     E subindo me incendeio e consumo.
     Mês das mãos purificadas.
     Delicado mês para uma corola
     de nuvem, um vivo transporte
     entre coxas e mamas.
     Em lama e areia se descobre
     o pensamento, se perde a memória, se possui
     uma estreita palavra virgem
     e extrema.

     Arde, mesa. Arde, instrumento de profunda
     música. Arde, vinho. Carne,
     ave, grande mar, grande estátua fria,
     grande sorriso desfeito na face da solidão.
     Mês de onde nascem os bichos ébrios e a voz
     das catedrais de resina e o flanco
     terrível e doce das montanhas
     e o amor irmão da morte e da alegria.
     Mês do poema, substância de Deus servida
     como ceia e primeira pedra no espaço
     da minha angústia,
     do meu encanto.
     Mês da aliança, tempo
     tremendo da inocência onde a lua desce
     suas raízes ferozes
     e a morte anuncia seus primeiros sinais
     de glória.

     — E eu dormia. O sangue atravessava a noite
     como cantando baixo.
     Tecedeiras deixavam mãos sobre a atenção, flores começavam
     no linho com o tremor comprido das veias.
     Mês, mês. Um beijo pensava-se em palavra, recolhia-se, renascia,
     vibrava na testa como o beijo da loucura.
     — Pela terra adiante aumentava o trigo insensato do canto,
     o perdão nascia das formas,
     e por todas as coisas corria o sopro alucinado
     e redentor
     de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra.




     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996



10 fevereiro 2017

josé tolentino mendonça / os amigos




Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura


Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001




09 fevereiro 2017

pedro tamen / tu que fumas



Adiro ao grande segredo da pedra, ao
prumo inteiro da sua própria sombra.
Brando, revejo a solar rotunda dos teus ombros
e (repito) há pedra sobre pedra, inicialmente.
És tu, portanto. Tu que dizes. Tu
que sopras as coisas, tu que fumas.

A todos direi que já sabia, mas é sempre
a remodelar lembrança a dar-me sangue.
Só que nem sempre, é isto, de algo serve:
pois que veias, mais do que intenção?
e que largura imensa só nos olhos?
Fumo sem fogo, amor? Sinais?


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982




08 fevereiro 2017

nuno júdice / projecto




O objectivo é fugir. Atravessar as ruas
do tamanho de uma vida – para encontrar
do outro lado, o quê?, que mãos estendidas
até à parede em fogo do teu corpo? que
deus fugido dos pântanos de almas em
que ambos perdemos? Fugir, sim, até
onde não conseguimos mais do que estar
um com o outro, e os olhos se encontrem
– os meus com os teus olhos cuja cor
esqueci – e esse encontro, perfeito facto,
cresça de dentro do hemisfério que sobrou
de uma colheita estival (mas de rosas de
todo o ano, as mais efémeras).
  

nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




07 fevereiro 2017

silvia ugidos / traçado urbanístico


Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.
A nós
também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho – primoroso e com laço –
dos remorsos.
Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios a nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam – como vulgares comerciantes –
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.


silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



06 fevereiro 2017

antónio franco alexandre / os animais que escrevem




Os animais que escrevem, é sempre interessante, fez notar
o sensível destino dos nossos chacinados
companheiros. removemos a terra
de norte a sul, à procura de maravilhosas tocas,
o mar entrava pelo quarto do segundo andar,
dormíamos dentro um do um, acordados
pela manhã tracejada de néon,
no céu e terra do soalho.

cabe-me agora a descrição cuidada
do mundo incomodado em que vivemos: secretários
sentados à secretária, ídolos
das nove às onze,
civilidades de médio centro urbano, parque incluído,
a leve bomba que cai na cabeça dos outros,
e o grande buraco nocturno do mar
a sorver loas.

é um país, não há que errar, talhado
para a aventura de queimar
papéis ou gente,
tão desigual aos outros.
os primeiros autocarros passam,
a manhã levanta devagar a cabeça,
os pássaros, não esqueçamos os pássaros,
pousam, de viagem.


antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996