01 janeiro 2017

herberto helder / o poema



     V

     Existia alguma coisa para denominar no alto desta sombria
     masculinidade. Era talvez um cego escorrer
     de sangue pelos anéis e flores do corpo.
     Sei unicamente que era a força da tristeza, ou a força
     da alegria da minha vida.

     Havia também outra coisa a que se deveria dar
     um nome belo e lento. Algo que se cercava de lágrimas
     como uma árvore se vai cercando de folhas
     inúmeras. Tudo isso começava
     a aparecer nas vozes e inspirações como uma ardente
     confusão. Era primeiro uma virtude.
     Depois, este vagaroso acender
     da noite. O sangue despenhava-se
     nas lagoas e grutas da carne. Hoje eu sabia
     que era a tristeza, a tristeza — um poder
     mais jovem que os demais. Esquecia de novo os nomes,
     e todo me circundava de uma torrente
     silenciosa, de uma cítara fortemente anunciadora.

     Nunca se deve dizer que um rosto perde
     as suas brasas quando se inclina sobre a penumbra
     de uma fonte, sobre um instrumento rápido.
     Porque o rumor ressalta na noite parada, e pode-se
     enlouquecer eternamente. Ou porque a colher
     pode ligar a terra à violência do espírito.
     — Lá estariam sempre as grandes arcadas de fogo,
     as portas, a loucura das pontes celestes
     aonde a invenção chega como um frio arrebatamento.
     Havia essa espécie de vocação implorativa, a doçura
     do corpo subtilmente preso por crateras e picos
     ao tumulto das sombras.

     Eu abaixava-me e tomava como nos braços
     essa criança ignota.
     E porões enchiam-se de água, eu seria em breve
     um afogado. Tudo me inspirava
     nessa noite abrupta, entre o começo e o fim
     do mundo. Como pode um coração absorver
     tanta matéria, tanta inocência da terra?
     Se era uma criança, sua vida circulava
     indecisamente; se eram os mortos,
     a distância tornava-se infinita. Apenas
     a minha força se dobrava um pouco, e um novo calor
     corria nas palavras adormecidas
     e degelava as mãos que se cobriam
     de um sentido impenetrável,

     — Essa forma amparava-se no sexo repleto
     de espinhos e espelhos,
     e era uma espécie de retrato sem névoas, um eixo, um grito,
     uma louca morte
     onde começassem a girar as inspirações misteriosas.




     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996





31 dezembro 2016

jean genet / por que dançar esta noite?



Por que dançar esta noite? Saltar,
pular no arame debaixo dos projectores a oito metros do tapete?
Razão, terás tu que encontrá-la. Ao mesmo tempo caça e cata dor,
esta noite saíste do covil, foges de ti próprio
e andas à tua procura.
Onde estavas antes de apareceres na pista?
Tristemente disperso nos teus gestos quotidianos,
não existias. À luz experimentas a necessidade de te reconstituíres.
Todas as noites vais correr só para ti,
ficar contorcido no arame e retorcido numa busca do ser harmonioso,
disperso e extraviado num matagal de gestos familiares:
atar o sapato, assoar, coçar, comprar sabão...
Um só instante vais aproximar-te de ti e deitar a mão a ti próprio.
Na mesma solidão mortal e branca, sempre.

Mas o teu arame — e lá volto eu –
não esqueças nunca que às virtudes dele deves a graça.
Por certo a que tens, mas para descobrir e exibir as dele.
O jogo nem um nem outro favorece: brinca tu com o arame,
irrita-o com o tornozelo, surpreende-o com o calcanhar.
Não temas a crueldade que há entre os dois: cortante,
que vai fazer-te cintilar. E vê lá bem,
não abdiques nunca da mais requintada cortesia.
Faz-te consciente daqueles contra quem triunfarás,
contra nós, sim, mas... através de uma odiosa dança.
Não se é artista sem uma grande infelicidade de permeio.
De ódio contra qual deus? E vencê-lo para quê?
A caça no arame, a perseguição à tua imagem e
essas flechas que lhe espetas sem chegar a tocar-lhe e
a ferem e fazem cintilar, é realmente uma festa.
E será a Festa se acertares na imagem.

          (...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984




30 dezembro 2016

franco loi / eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,



Eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,
o mercador de maravilhas e dos caroços de pêssego,
o que compra a amargura dos humildes
e doce a espalha limpa como um pássaro voando...
Eu vi dos pobres a cidade dos mortos,
os plátanos ali, especados, com os homens sós
que gritavam com os pés e cuja cabeça à banda
cortava oscilando a corda nos nós do tronco,
vi os campos de erva, onde os braços calcavam
com fúria a terra, como se catarrentos
quisessem soterrar-se, ou desesperados
pôr-se de cu para aquele céu... Oh, escarpas
de fuzilados, exangues, ar de tragédia,
freixos selvagens que já não tendes céu, mendigos de que sopros!
Vi gente gotejando, em fuga em ofegante,
e aquelas sirenes, atrás, com as mãos a gritar:
foge, foge, corre!, vem por aí abaixo
uma porradeira de bombas, que metralham e ceifam,
e os rapazes que escarvam, cães como bandos de rapazes,
e mães que berram - Meninos, quem pode fugir do vento?...
Ah, se eu venho de longe... Péssima raça!
Quando penso que morrer não é nada,
que temos medos de uma sombra, que louca
é esta nossa vida, e que os homens parecem caminhar...
Caminhar? Ou é este empurrão do ar que os colhe
e os arrasta pra onde quer, para onde vão finar-se?


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993







29 dezembro 2016

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999





28 dezembro 2016

antónio pedro / poema inicial



I
A espuma do mar
Arrenda-me a sombra
Na areia molhada.
Ecoa nos gritos
Dos pássaros soltos
A voz que afogaram.
Quem mede os segredos
Da mata em que dói
Nasceram-me os ramos
No corpo que a é?

Assim porque sou
Princípio do mundo
Na tábua do barco
No seixo da roda
Na pedra do barro
No ovo da angústia
No parto dos peixes
Vivíparos e ainda
Na primeira mamada
Do cabrito ali

A minha sede antiga
É como se fosse
Pela primeira vez.


antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998



27 dezembro 2016

luís miguel nava / o tímpano e a pupila



Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos

se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002




26 dezembro 2016

antónio ramos rosa / não sei se respondo ou se pergunto



Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


antónio ramos rosa








25 dezembro 2016

rui knopfli / a pedra no caminho



Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra. Segurando-a
com amor e raiva.


rui knopfly
reino submarino
1962



24 dezembro 2016

alberto caeiro / quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois


XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




23 dezembro 2016

gabriel celaya / aviso



A cidade é de borracha lisa e negra,
mas tem vielas com odor a estábulo,
a armazéns de cereais, a madeira molhada,
a selaria, a chicória, a esparto.

Há chilreios que mordem, ruídos inumanos,
há bruscas buzinadas que desincham
meu absurdo coração hipertrofiado.

Alugo-me por horas; rio e choro com todos;
mas escreveria um poema perfeito
se não fosse indecente fazê-lo nestes tempos.



gabriel celaya
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



22 dezembro 2016

blas de otero / fidelidade



Creio no homem. Já vi
dorsos despedaçados a chicote,
almas cegas avançando aos saltos
(espanhas a cavalo
de fome e sofrimento). E acreditei.

Creio na paz. Já vi
altas estrelas, recintos chamejantes
a amanhecentes, incendiando rios
fundos, caudal humano
para outra luz: vi e acreditei.

Creio em ti, pátria. Digo
o que já vi: relâmpagos
de raiva, amor em frio e uma faca
chiando, fazendo-se em pedaços
de pão: embora hoje só haja sombra, vi
e acreditei.


blas de otero
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





21 dezembro 2016

rené char / partilha formal


LI

Certas épocas da condição do homem sujeitam-se ao ataque de um mal que se apoia nos pontos mais desonrosos da natureza humana. No centro desse furacão, o poeta completará
Pela auto-renúncia o sentido da sua mensagem, posto o que se aliará ao partido daqueles que, tendo retirado ao sofrimento a sua máscara de legitimidade, garantem o eterno retorno do teimoso estafeta, traficante de justiça.



         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000





20 dezembro 2016

carlos de oliveira / árvore


VII

é então que vejo
no halo mais antigo
a árvore desolada,
os ramos em que poisam
as aves
doutros livros,
e pressinto
as raízes
através da sílica
onde a família dorme
com os ossos dispostos
nessa arquitectura
duvidosa
de símbolos


carlos de oliveira
micropaisagem
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998