06 julho 2016

graça videira lopes / m.lle de gallais reza



1
A lua desapareceu há dois dias
e o sentimento colectivo esvoaça
chove sobre as obras do metro
e a lama é um cenário em viés
no coração.

2
O meu chapéu de chuva abriga-me
da chuva e das quedas astrais
figura primitiva do teu amor
ausente e grande.

3
Colectivo de árvores e praça
atravessado pelo mês de setembro
e pelos que dormem nas grades
do metro e são enormes
figuras de ti.

4
A felicidade então
bate as asas e cai.

5
Dias alegóricos luas que passam
em casas respeitáveis onde
se bebe gin e o sentimento
colectivo esvoaça.

6
Soluções marítimas finais
com imagens de portos ao contrário
líquidas figuras sobre um rosto branco.

7
Há dois dias que me sento
na cadeira e observo o universo
disponível. A chuva inunda-me
de um humano sentimento de alegria.

8
Protege-me da chuva e do terror.


graça videira lopes
horácio e as bonecas (1983)
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987


05 julho 2016

octavio paz / madrugada



Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
                          Ainda
estou vivo
                    No centro
de uma ferida ainda fresca.


octavio paz
tradução de josé bento
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



04 julho 2016

carlos poças falcão / a diferença



De modo diferente, com estranheza intensa,
a paixão deslumbra-se como uma passagem
sobre as criaturas. Vento em estendais de roupa,
luzes que se acendem nas rotundas, danças nupciais
de insectos nos arbustos – assim se atravessa
a expansão do mundo. Uma atenção não prende
quando se respira com este esplendor. A solidão
sossega-nos: fica-se sagrado por um olhar facílimo
e o pensamento move-se para conhecer estames,
corolas, pares de asas. O amor nada perturba:
toca-se num corpo e não se quebra, desce-se a um nome
e a voz brilha. O tempo oferece-nos presentes.


carlos poças falcão
movimento e repouso
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012



03 julho 2016

miguel esteves cardoso / devíamos viver todos sozinhos


                              Para a Susana


               1.

Devíamos viver todos sozinhos. Perto um dos outros, mas separados.
Começou assim.
Devíamos ter todos uma porta onde mais ninguém pudesse entrar, um televisor só para nós, uma casa de banho particular, um sítio onde receber visitas.
Pensou assim.
Uma pessoa tem o direito de ouvir apenas o seu próprio barulho, a dispor de luz e de escuridão conforme apetecer, a ligar ou desligar o aquecimento.
E só assim.
Devíamos viver todos sozinhos, dizia ele, em casas pequenas e próximas, insonorizadas, com persianas perfeitas.
Cada pessoa tem direito à tristeza pequena de encontrar as coisas como as deixou. Os livros no mesmo sítio, na mesma página, no mesmo lençol em que não mexeu. A tampa da pasta de dentes, a tampa da caneta, a tampa da lata de bolachas, com as mesmas bolachas lá dentro.
Mas é raro ser assim.
As pessoas deviam viver sozinhas em casas parecidas umas com as outras. Ninguém merece encontrar ninguém num corredor, numa casa de banho, ou na cama.
Devia ser assim, dizia ele, danado. Não tinha nada a ver com a idade. Nem com a família. Dizia ele, deitado na sua cama estreita, com a irmã pequena a dormir ao lado.
Só vivendo sozinhas é que as pessoas podiam fazer, umas com as outras, durante toda a vida, as combinações bonitas e bem pensadas com que sonham. Combinações de amor e sem ser de amor.
Tudo devia poder ser falado de antemão. «Posso passar aqui à noite?» Não. As pessoas precisam de casas próprias para onde possam regressar. Para estarem perfeitamente à vontade quando pedem licença para vadiar. Moradas sólidas. Casas bem definidas. De onde possam sair no dia seguinte. E perguntar «E hoje, posso?» Hoje sim. As pessoas precisam de casas que fiquem vazias enquanto vadiam.
Senão tem-se a impressão que as pessoas ficam umas com as outras porque não têm para onde ir. Senão tem-se a impressão que só pensam em ir-se embora. Mesmo nos momentos bons. Numa família é assim. Era assim na família dele. A família falava e ria, mas ao primeiro sinal de silêncio ficava-se com a impressão de se ouvirem passos, os passos pequenos e mentais de quem já está a imaginar-se a milhas dali.
Não devia ser assim. Noite após noite, ano após ano, deitado na cama, a ouvir a família a falar na sala, a mexer-se na casa de banho, à procura dum copo limpo na cozinha. A olhar para as estrelas que se viam, ansioso por aquela altura.
Tem de haver um território. Tem de haver trespasse. Cada chão tem de ser, potencialmente, um local de invasão. Tem de haver propriedade. Tem de ser possível distinguir entre uma visita e uma ocupação. Tem de se poder imaginar um inimigo à porta, a bater num belo dia do ano.
Um inimigo a sério e não este. Como quando ouvia a família a discutir em voz baixa, como se estivesse a zangar-se ainda mais por não poder gritar como lhe apetecia. Deitado na cama, com a irmã a dormir ao lado, pensando em como devia ser.
Todo o processo de pedir e dar licença tem de ser instituído e encorajado. Em casas mais pequenas, devia ser proibido haver mais do que uma chave.
As pessoas precisam de perceber que não podem mandar muito. Para cada centímetro do chão em que as pessoas mandam, tem de haver pelo menos mil milhões de quilómetros quadrados em que não.
É escusado dar ordens quando não há ninguém que queira obedecer. As pessoas têm de aprender a pedir como deve ser, e a pensar muito bem antes de dar uma resposta.
Para as pessoas serem boas umas para as outras não podem ter muitas certezas. Tudo tem de ser muito bem combinado. Frequentemente. Tendo o cuidado de deixar sempre uma dúvida, que fica para a próxima vez.
Para a próxima noite, deitado ao comprido, do outro lado da parede onde a família se juntava. Desejando fugir sem ser descoberto, fugir sem magoar ninguém, levando consigo qualquer lembrança que ele pudesse deixar. Mas mais nada.
Devíamos viver todos um pouco tristes. Ter manhãs. E outras manhãs diferentes. E às vezes não haver maneira nenhuma de outra pessoa nos perceber.
Uma pessoa precisa de poder sair sem mais nem menos para a rua e passar dia e noite sem noção de tempo ou de espaço, passeando diante das portas das outras pessoas sem parar à frente de nenhuma, à procura do que pense ter perdido. Uma pessoa precisa de vagabundear sem tino, e levar grande parte do coração atrás.
Acordado na sua cama de rapaz, com a roupa entalada e os braços corridos ao longo do corpo, navegando as estrelas. O único a não dormir.

Devíamos poder estar acordados a noite inteira sem que ninguém se incomodasse por causa disso, ou passar uma semana inteira a dormir sem ninguém vir a saber. As campainhas e os telefones deviam poder ligar-se e desligar-se como despertadores. Nem sequer deveria ser forçoso o calendário continuar.
As pessoas precisam muito de não se sentirem requeridas, ou pressentidas, ou culpadas.

Deitado sem dormir, a passear nas casas da cidade que construiu. Assim usou o sono que a família lhe tirou ao longo dos anos. A pôr pedra sobre pedra, a passear e a ver.
Se houvesse varandas perfeitas, dariam umas para as outras, abrindo e fechando como os olhos de duas pessoas com vergonha de olharem uma para a outra, abrindo e fechando, deixando entrar a luz que as outras vão deixando.
Devíamos ter todos uma pequena varanda para um mundo. Para que pudéssemos sair para o mundo, mas por onde o mundo não pudesse entrar.
As pessoas precisam de casas próprias onde a vida de cada um se possa tratar. Sem mais.

É necessário um reduto onde os nossos últimos dias se possam imaginar facilmente. Não se podem correr riscos. As pessoas têm de estar preparadas para o dom e para a estranheza de outras pessoas, de alguém que nos venha a fazer companhia. Deixando uma casa vazia à espera dela.
As pessoas têm de estar sozinhas quando começam. Enquanto vivem e não vivem.


2.

Não é assim que as coisas se passam. A economia do mundo vai contra.
Onde coexiste uma família de solidões, nasce a solidão da família.
Os filhos só estão bem quando são pequenos. Os pais só estão prontos quando ficam velhos.
Entretanto, a vida faz-se do que vai ficando. O sangue assenta. As vozes levantam-se, doces ou furiosas, mas sempre fora de vez. Os filhos são muito pequenos. É a única altura em que os pais podem ser grandes.
Fala-se em voz alta de quem há-de ser. De quem há-de pagar. Como, e a que horas, e porquê. De quem há-de ir fechar a porta, desligar a luz, buscar o leite.

A parte de vida que uma família pode partilhar é pequena. Não há vontade de repartir o que não é de ninguém. E os filhos não podem desistir. E os pais não conseguem sossegar.
A solidão das famílias vem desta estranha companhia em que metade dela é fácil e metade é forçada, em que metade é por acaso e a outra metade é amor.
Numa família as pessoas haviam de arranjar salas e maneiras de se poderem convidar, expulsar, e eventualmente perder.
As famílias só funcionariam em casas muito grandes com alas e anexos, onde nem pai nem mãe mandassem e tudo se resolvesse através de recados, papéis deixados debaixo das portas um dos outros, planos para expedições, jogos de escondidas, e governantas.
As famílias mostram o que as pessoas têm de bruto. De besta e de bom. Nos corações que expõem e que todos à sua maneira lêem e treslêem, vêem-se os sonhos mais bonitos que o mundo tem e outras vontades que nunca hão-de conhecer descanso. Restos. Restos de carinhos antigos que ficaram por completar. Promessas incumpridas, ameaças cruéis, as traições inconsequentes de quem ama sem cuidar do seu amor, sabendo que nunca o irá perder. De quem ama com um amor que se atira contra outro.
Uma família está condenada. Dura um certo tempo, destrói-se num instante, e só finalmente se muda para onde nunca mais acaba.

As pessoas ficam sozinhas, tal como começaram, mas pesam mais. Fogem umas das outras, mas vão devagar. Uma família, depois de feita, não se desfaz. As pessoas deixam-se envolver e ficar. E de um dia a dia de peúgas e cascas de laranja, de folhas de papel e cartas de jogar, acabam por apanhar a doença incurável da acomodação e da familiaridade.
Uma família presta para ensinar duas coisas às pessoas: a dificuldade do amor e o desejo da liberdade. O resto vem tarde de mais. Vem um dia, muito tarde, quando se está sozinho e o mundo parece mais contrário do que é costume, e os conhecidos parecem estranhos, e a vida parece ter parado aos nossos pés. Só num dia, muito tarde, é que a família nos deixa a sua última e única flor, uma rosa suja, mas viva, em memória do sangue e da sua lealdade.

Se calhar estes sacrifícios somam-se para que percam todas as partes e seja só a soma a ganhar.


3.

Devíamos viver todos sozinhos segundo uma ficção comum de semelhança e de liberdade. Cada um em sua casa, de pés plantados em seu próprio chão. Deitados à sua janela, sob o efeito do álcool e da luz, a cantar como crianças da mesma escola.

Cada um em casa de outro, com o coração entregue, mãos dadas, medo de tudo.

A tristeza torna-nos vizinhos. O nosso trabalho é não entristecer.

A alma feliz guarda o segredo de se deixar enganar.
Sempre que pode, separa-se um pouco da vida.
Em casas mornas as pessoas dormem, acordam e cantam. Cantam para que outras pessoas ouçam. Alguém à janela. A uma hora bonita. Para que outras casas saibam como.
As pessoas saem. Sabem, por muito que demorem, que o sítio de onde se veio é o único onde se pode sempre voltar.


4.

Os olhos enganam-se uns aos outros. As coisas não são bem ditas. As estações demoram. As pessoas fogem das famílias. Para casas. Casas só deles. E depois fogem de si mesmas. Para outras pessoas. Que fazem felizes. Ou tornam tristes. A quem dão amor verdadeiro. E o que podem de liberdade. Sem dar valor nem a uma coisa nem outra. Como fazem as pessoas que se amam.

As casas ficam. Não deveriam passar de mãos.

E depois é assim.

«Na minha casa», diz ele, «ficou a minha alma vazia, as coisas de que pensei precisar, a vista alta sobre o rio de que eu não me consigo lembrar desde o dia em que te vi…»
E fala da sua casa vazia, do livro aberto no lençol, do risco de lápis nas paredes, no quarto onde dormia.
Fala na casa que deixou vazia, na poeira nas páginas limpas, no vidro partido, na pedra fria da varanda.
O amor limpa-lhe os olhos e a voz. Fala como se nunca tivesse feito outra coisa senão falar. O amor protege-o. Não há nada que não possa dizer. Nada que possa enganar. Nada que magoe. Nada que não se compreenda.
Fala exactamente como se estivesse a respirar. Como se fosse ele que estivesse calado, deitado ao lado do seu amor, muito quieto.
Fala; mas fala de si como se falasse de outra pessoa. De alguém que um dia fugiu para ali, feito em fúria, sozinho pela primeira vez na vida, feliz por se ver livre de um fardo de coisas que não eram dele.
Fala; mas fala de si como se falasse de outra pessoa. Sobre alguém que encontra a paz, o prazer de nada, depois de uma vida inteira. Numa casa vazia, na primeira noite que lá passa, caído um canto, fecha os olhos e adormece imediatamente, levado por um fio de sono, para dentro de uma casa feliz.
Fala, mas fala de si como se falasse de outra pessoa, de alguém que lá deixou. Na casa vazia, onde ele tinha sido tão feliz. Vivo ou morto. Na casa ao pé das outras casas, à espera de nunca mais ser descoberto. Mas à espera dele. Mas à espera dele, mesmo assim.



miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





02 julho 2016

r. lino / ter-se-à narrado então a ventura da travessia


2.
ter-se-à narrado então a ventura da travessia
pelos vários modos havidos nessa altura.
acercaram-se desconhecidos os dedos pelos mapas
cujas cidades designassem a esmo
o nome de quem pelas ficções
houvera permanência: santos e escravos,
poetas, putas e astrólogos.
no minucioso detalhar de cada rua
se fez geográfico continente para visitar:
quotidiano rodeado de ficções por todo o lado
menos por um a que se chama isto.


r. lino
atlas paralelo
plural
gota de água / imprensa nacional-casa da moeda
1984


01 julho 2016

rui diniz / a propósito da revolta nos países do sul



Talvez em Avignon no Outono a frivolidade
a bebêssemos num café por tempo escuro.
Esquecia-me de ann radcliffe que conhecera
no verão em san sebastian. Aí o mar inclinava
as ondas até ao seu corpo frágil, separava-lhe
os cabelos, quentes do sol e da adoração.
Ouvia Alice moderno recitar enquanto bebia
várias cervejas e fumava tabaco inglês. Na
holanda eu escrevera cartas aos amigos que
lutavam longe no país, à beira de um rio
que a noite fascista enegrecia. Dessa brasserie
as emoções partiam embrulhadas em álcool,
eu falava-lhes da estratégia, dos mortos e
sobretudo da respiração sufocada em hannover,
na praça das mil lanternas. Eu tinha então
o costume de escrever sobre as cartas, sobre
os filmes e os salões de jogo, onde bebia
por vezes até que me expulsavam. Nessa altura,
nas ruas frias e desertas, reparava em como
me fora fácil chegar à miséria, à fome
imensa dos exilados, à roxa degradação.
Vivi dois meses com uma prostituta suíça, perseguido
pelas suas pestanas trágicas, pelos seus longos
monólogos cheios de palavrões e pragas, insultando
os poetas que eu lia já possuído de indiferença.
Com o tempo fui-me esquecendo. As frases eram
compostas por um balbuciar vago e doloroso, como
se eu fosse apenas um alcoólico amnésico
incapaz de amaldiçoar. Talvez por isto, quando
uma manhã dei por mim sentado numa
esplanada em Avignon, a beber lentamente
a frivolidade de todos os outonos,
não me surpreendi.


rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977



30 junho 2016

jorge melícias / à beira das salinas os homens declinam,



À beira das salinas os homens declinam,
as cabeças como cometas fulminantes.

De longe a longe vêm os filhos,
trazem a solidão como um metal aceso nas costas,
trazem um enxame de dardos.
E a memória é um pulso atravessado.

Quando partem fecham atrás de si as portas,
e os homens voltam a sentar-se sobre as estacas
e brilham.


jorge melícias
a luz nos pulmões
quasi
2000



29 junho 2016

josé luís peixoto / no tempo em que éramos felizes



no tempo em que éramos felizes não chovia.
levantávamo-nos  juntos, abraçados ao sol.
as manhãs eram um céu infinito. o nosso amor
era as manhãs. no tempo em que éramos felizes
o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
as marés traziam o fim da tarde e não víamos
mais do que o olhar um do outro. brincávamos
e éramos crianças felizes. às vezes ainda
te espero como te esperava quando tu chegavas
com o uniforme lindo da tua inocência. há muito
tempo que te espero. há muito tempo que não vens.


josé luís peixoto
a criança em ruínas
quasi
2002



28 junho 2016

jorge reis-sá / as portas



Estão abertas, as portas. Aquela que segurava a casa
está demasiado exposta, tudo permite.
E os ratos do campo entram silentes por entre
as folhas que o último Outono imprimiu.

Escondem-se sobre o soalho,
trazem aos filhos as bolotas de uma árvore distante.

  

jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008




27 junho 2016

claudia roquette-pinto / em sarajevo



Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
– quem sabe, no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para as suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.


claudia roquette-pinto
relâmpago
revista de poesia nº. 14
abril de 2004



26 junho 2016

jean racine / fala de tito



Sei que só eu, por fim, me posso destruir;
mas pude já viver, deixar-me seduzir.
Meu coração nem qu´ria indagar no futuro
aquilo que pudesse, entre nós, ser um muro.
Agradava-me crer que nada era invencível:
sem nada examinar, eu esperava o impossível.
Ou esperava, talvez, perante vós morrer,
sem este adeus cruel haver de vos fazer.
De obstáculos até me incendiava outrora.
Que importavam razões? Mas a glória, Senhora,
inda eu a não ouvira, em meu foro interior,
no tom em que ela fala a um Imperador.
Conheço bem de mais tormentos que irei ter;
sinto bem que sem vós nem saberei viver.
Meu coração de mim começa a se afastar:
nem de viver se trata: apenas de reinar.

bérénice, acto IV, cena V



jean racine
vozes da poesia europeia II
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras nr. 164
fundação calouste gulbenkian
maio-agosto 2003



25 junho 2016

jorge luís borges / ausência



Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



24 junho 2016

jorge de sena / cidade






Imensa, troglodita, ambiciosa,
vai a cidade até à praia;
perdeu no campo as rochas cor-de-rosa,
e o mar, se a busca, evita-a, não desmaia,
antes se ergue negro contra o desconforto.

O rio leva casas debruçadas
que já, com o tempo, foi cavando em arcos
de perfil sem cl, inclinado e morto…
e leva também barcos.

No céu, as nuvens correm desviadas,
Enquanto o Sol, em dardos, sobre o mar se crava.


jorge de sena
daqui houve nome portugal
eugénio de andrade
editorial inova
1968