18 maio 2015

rui costa / os turistas



Estes são os turistas e vêm da Grécia
para me ver.
Não sabem que estou extinto
há um milhão de anos
e que me transplantei no vértice de uma
estrela perdida no futuro
luzindo à nossa imagem.
Eis os turistas, com suas rodas de fogo,
como eles chegam afoitos
e estacam diante das pedras
desta cidade que apodrece junto ao rio
porque não sabe distinta forma de amar.
São os turistas,
eles limpam as unhas às gaivotas
e comem pasta de atum
enquanto apertam as sandálias,
e olham para mim,
e levantam-se com o saco a tiracolo e
empunham o arpão
e perguntam se eu sou Herodes e eu
respondo-lhes que não,
nem Platão,
nem o seu vizinho acidental que
dominou a Lídia,
nem o cavalo que decidiu morrer para
ocultar a fuga do Mestre rumo a estâncias
balneares que não devem ser menosprezadas,
mas que posso carregar, sim,
no botão da máquina fotográfica,
e eu caminho os passos necessários e
diante dos séculos que o universo
não contempla
decepo-lhes a cabeça – e volto
para junto de mim
enquanto eles começam a escovar
o cabelo das gaivotas
e entrando num tubo que César
construiu caminham às cegas
para bem longe
da cidade que apodrece junto ao rio.


rui costa
mike tyson para principiantes
2012




17 maio 2015

luís miguel nava / a fome



Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002




16 maio 2015

alberto caeiro / última estrela



Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trémulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim;
Alegre pelo critério (?) que tenho em Poder ver-te
Sem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim está em existires
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.




alberto caeiro



15 maio 2015

eugénio de andrade / quase nada



O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.


eugénio de andrade
poemas
1966




14 maio 2015

yvette centeno / cantiga de amigo



Leva-me à catedral de Chartres
ver os Anjos de pedra

ver os arcos
lugar de mutação

abraça-me a um canto

ou deixa-me
sozinha

aprender a lição
que a pedra ensina

não a eternidade

a solidão.




yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998





13 maio 2015

carlos eurico da costa / primeiro poema da solenidade



A labareda ascendente superando as auroras desvendadas: um altar iluminado onde crepitam
sons leves, um rio correndo há milhares de anos para nós, alheios da nossa validade, mortificados, lúcidos, exaltados, extáticos, senhores dos melhores ácidos corrosivos, sábios do amanhecer nos arquipélagos, manipuladores das artes ocultas e raras, povoando ora os mais altos cumes ora o leito purificador das enseadas

exuberantes de todo o álcool das palavras, espectadores do próprio olhar nocturno, do ínfimo traço de vida que resta nos museus paleontológicos

Nisto consistirá a nossa tradição e tudo o que de nós for ausente bastará um calmo gesto para o petrificar

E bem dentro de nós um calor cósmico, opaco, tão íntimo que será o perfil arroxeado, pleno
e sombras das montanhas no Outono, as belas montanhas que nos centralizam como se fôssemos navios transparentes sem destino e sem ódios.

E o medo do desfilar de perfis adversos que nos afugentam da nossa verdadeira imagem como entes malditos

e toda esta prova de fogo, imutável, tão necessária a nós, errantes, esta meia-luz que cega mas também ilumina

Hoje, decorrido o tempo sobre a sucessão de múltiplos actos, esquecidos da profética lucidez
das visões, soerguemo-nos num último alento como as maiores aves aquáticas que, feridas, vão morrer silenciosamente nas planícies

Mas nunca será tarde para obter a dureza que cria o hábito de elevarmos em grandes gestos as nossas mãos tão pobres, tão despovoadas que nos queimam a carne

Estará bem longe de nós o quarto acto da purificação. Cedo será para distinguirmos as
silhuetas das sombras, o ponto médio dos precipícios, a água e a noite

Esperemos conforme os verdadeiros mantendo este mundo interior que nos define até que vejamos outra luz mais quente, até que ante os nossos olhos se descerre todo o conjunto de vendas espessas, todo o duplo movimento inverso da definição

A hora capital surgirá aparatosamente com todas as dependências inerentes à sua qualidade,
polarizando e enfrentando toda a substância – o pacto sinistro, misterioso, a fúria que nos qualifica

Os nossos dedos alongados e penetrantes terão o dinamismo da sua potência primária; os nossos actos serão como longos cabos aéreos, elásticos e transportadores; a palavra será leve, insuportável para os mortos, de som agudo, penetrante e insuspeito

O nosso gesto terminará quando se estiolar a última luz e após a queda no mar dum animal ainda não existente, belo e translúcido, para os olhos conseguirem um brilho extraordinário idêntico ao que se avista no centro das mais belas tempestades

Os habitantes das grandes cidades deslocar-se-ão lentamente na direcção assinalada
 inquirindo temerosamente, uns dos outros, qual o planeta escolhido




carlos eurico da costa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992




12 maio 2015

jorge de sousa braga / na corrente



Há quem diga que a noite é um rio - subterrâneo - que
nasce e desagua em pleno dia. Ou será o dia um rio  que
nasce e desagua em plena noite? Ou talvez a noite e o
dia sejam o mesmo rio que não nasce nem desagua.
Corre apenas. Através de nós.



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991







11 maio 2015

fernando luís / num café de bolonha


2
Desceu a ponte
e caminhou pela fria margem.
As infiguráveis alegrias
da sua vida, os amigos,
a amargura.
A cruel sedução dos corpos
roubara-lhe repouso
e juventude.

Ao sorriso seguiu-se
o esgar: à esperança
o trajecto

entre o café, a cama
e a afeiçoada ponte do jardim.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



10 maio 2015

antónio franco alexandre / todos os pecados hoje, nenhum falta



todos os pecados hoje, nenhum falta
ao seu orgulho de água e alavanca. assim
é fácil sob a cortina
o ouvido confessional;

paisagens tão marítimas que um dia
será tarde e nunca os automóveis
passam sem o leve
assobio dos pinhais;

vantagens conseguidas palmo a palmo,
vinhas, o trigo, lã, comércio
de pimentas absortas,

e não obedecer. assim desejo
o seu olhar retido nas imagens,
a sua fonte de lazer, pecados.

  
antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



09 maio 2015

miguel de unamuno / portugal



Do mar Atlântico na margem pura
se senta uma matrona desgrenhada
ao pé da serrania coroada
de triste pinheiral. Nos joelhos dura

os cotovelos pousa, e o rosto na mão,
e crava ansiosos olhos de leoa
no sol poente, e o mar em frente entoa
de maravilhas a fatal canção.

Diz-lhe de longes terras e de azares,
enquanto ela os pés banha nas espumas,
sonhando absorta o trágico império

que se abismou nos tenebrosos mares,
e fita que entre as agoureiras brumas
se alça D. Sebastião, rei do mistério.




miguel de unamuno
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978




08 maio 2015

carlos de oliveira / visão de josé gomes ferreira no vanderman



Nos cimos,
Onde a água esperava o momento de vir lavar os homens,
Você viu
por um súbito rasgão da insónia
os animais miúdos comidos pelos maiores, os maiores comidos pelos homens,
          os homens roídos pela antropofagia e pelos dentes amarelos das estrelas.
Desde então,
o seu remorso brota de cada gota-recordação do Vanderman
e o tempo, devorando as estrelas, engorda mais com as grandes patas fulvas
          atoladas em nossos corações,
essa lama de sangue.



carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985





07 maio 2015

fernando pessoa / o amor é que é essencial



O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
  


fernando pessoa



06 maio 2015

györgy somlyó / jogo, gato 7



Põe o mesmo ardor para brincar
com o rato e com a folha de prata
e quer com a folha quer com o rato
o seu combate é caso de vida ou morte
trata das suas necessidades
e da sua limpeza em busca de vitaminas
segundo o mesmo ritual exacto
do mesmo modo faz cair da mesa
com leves toques o maço de cigarros
não executa nada que não seja importante
e nada que não constitua um prazer
nada que não seja necessário
e nada que não seja belo
ele é o felix catus ludens
que faz desaparecer pela sua simples essência
o grande dilema
da história da cultura e da genética
desde há centenas de milénios
é brincando que ele reproduz
as regras estritas do seu jogo existencial.


györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves