29 setembro 2014

josé alberto oliveira / a gata de beethoven



Entrada a noite,
a gata Electra
esquece vinganças
e senta-se
ao meu lado.
Ouvimos os trios de cordas,
eu bebo whisky
a bem da morte sóbria
ou, pelo menos,
de um sono conforme;
a via parece suave,
a pulsação
quase perfeita
e a gata pensa
que não há direito
que alguém sofra.



josé alberto oliveira
resumo a poesia em 2011
assírio & alvim
2012




28 setembro 2014

charles simic / a cadeira



Em tempos esta cadeira estudou Euclides.

No assento estava o livro dele.
As janelas da escola abertas!
De modo que o vento ia passando as páginas
Sussurrando as gloriosas demonstrações.

O sol pôs-se por trás dos telhados dourados.
Por toda a parte as sombras iam-se alongando.
Mas sobre isso Euclides não disse nada.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2




27 setembro 2014

josé de almada negreiros / nós e as palavras



Nós não somos do século de inventar as palavras.
As palavras já foram inventadas .Nós somos do século
de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.



josé de almada negreiros




26 setembro 2014

ted hughes / um sonho




O teu pior sonho
tornou-se realidade: aquele toque à campainha ─
não um simples acaso num milhão
mas o meteorito, caído pela nossa chaminé abaixo,
com o nosso nome gravado.

Não são os sonhos, disse eu, mas as estrelas fixas
que governam a nossa vida. A ânsia do ser inteiro,
inexorável, como uma pessoa a dormir absorvendo
ar para dentro dos pulmões. Tiveste de erguer
a tampa do caixão uma polegada.
No teu sonho ou no meu? Estranha caixa de correio.
Retiraste o envelope. Era
uma carta do teu pai. «Cheguei.
Posso ficar contigo?» Eu não disse nada.
Para mim, um pedido era uma ordem.

Depois veio a Catedral.
Chartres. Seja como for tínhamos chegado a Chartres.
Não era a primeira vez que lá ias.
Recordo pouco mais
que um jarro bretão. Encheste-o
com tudo o que tínhamos. Até ao último franco.
Disseste que era para a tua mãe.
Esvaziaste o nosso oxigénio
para dentro daquele jarro. Chartres
(isto consegui salvar)
ficou suspensa no teu rosto, uma mantilha,
escurecida, um rendilhado carbonizado ─
como depois de um incêndio. Como uma enfermeira,
cuidaste do que restava do teu pai.
Vertendo as nossas vidas para fora daquele jarro
no seu pequeno-almoço. Depois partiste-o,
fizeste-o em bocados, estrelas grosseiras,
e deste-os à tua mãe.

«Quanto a ti», disseste-me, «dou-te autorização
para te lembrares deste sonho. E para pensares nele.»



ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000




25 setembro 2014

bénédicte houart / conduzi para vale de canas




conduzi para vale de canas
com uma corda
no lugar do morto
bem sei que parece tolice, mas
enquanto escolhia a árvore
recordei-me da araucária
que há anos ardeu
sentei-me onde as suas cinzas
foram sepultadas e chorei

foi assim, juro, que
por este dia me salvei



bénédicte houart  
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012




24 setembro 2014

telo de morais / free-jazz


"jazz foi sempre tão free
Ornette não tem razão
Armstrong em New Orleans
depois em Chicago
tocava gravava a liberdade do som
improvisava o que muito bem queria e lhe apetecia
improvisar é ser livre"



FREE-JAZZ

O perfume das palavras em brasa:
tições no turíbulo da excitação.

O incenso no diálogo do amor:
o som estridente da trompete
com a voz rouca e quente
de Louis Armstrong.

New Orleans
velhas casas do vieux carré
noites de cálido afago
blues e spirituals
que estremecem o corpo
colados na alma.

Brilham as ruas,
a pele das mulheres,
os cetins de homem de gestos acetinados.

Terra antiga
escrava negreira
onde foi parido o jazz
para ser baptizado nas águas do Mississipi
e cantar a liberdade.



telo de morais
poezz
almedina
2004



23 setembro 2014

fernando guimarães / verona



Olhamos os caminhos da cidade,
os mais secretos, os que não existem,
ladeados por casas, muros, grades
que não passam de imagens, puros símiles
 
daqueles que nós sempre conhecemos.
Eram como um limite, agora imersos
na súbita memória de outro tempo
onde se encontram finalmente os mesmos
 

vultos que a cada instante se perdiam
para serem apenas a suspeita
se alguém que ao despertar já descobrira

quanto maior se torna ou mais intensa
a imagem dos lugares que principiam
nessa cidade que só foi ausência.
   


fernando guimarães



22 setembro 2014

cesare pavese / antepassados




Estupefacto com o mundo, aconteceu-me uma idade
em que desferia murros no ar e chorava sozinho.
Ouvir discorrer os homens e as mulheres
sem saber que responder dá pouca alegria.
Mas também essa idade se foi: já não estou só
e, se não sei responder, passo bem sem isso.
Encontrei companheiros ao encontrar-me a mim mesmo.

Descobri que, antes de nascer, vivi
sempre em homens sólidos, senhores de si,
e nenhum deles sabia as respostas e não perdiam a calma.
Dois cunhados abriram uma loja — a primeira fortuna
da nossa família — e o de fora era sério,
calculista, sem piedade, mesquinho: uma mulher.
O outro, o nosso, na loja lia romances
— para uma aldeia isso era muito — e os clientes que entravam
ouviam declararem-lhes, em frases concisas,
que não havia açúcar e sulfato também não,
que estava tudo esgotado. Aconteceu mais tarde
que este último deu uma mão ao cunhado falido.
Ao pensar nesta gente sinto-me mais forte
do que a olhar para o espelho enchendo o peito de ar
e os lábios forçados num sorriso solene.
Houve um avô meu, em tempos remotos,
que se deixou enganar por um dos seus homens da lavoura
e então sachou ele próprio as vinhas — no Verão —
para ver um trabalho bem feito. Assim
vivi sempre e sempre tive
uma cara honrada e paguei tudo a pronto.


E na família as mulheres não contam.
Quero dizer, as nossas mulheres estão em casa
e dão-nos à luz e não dizem nada
e não contam para nada e não as recordamos.
Cada mulher infunde-nos no sangue uma coisa nova,
mas todas elas se anulam nesse trabalho e nós,
assim renovados, somos os únicos que perduram.
Somos cheios de vícios, de tiques e de horrores
— nós, os homens, os pais — houve um que se matou,
mas uma só vergonha há que nunca nos tocou,
jamais seremos mulheres, jamais sombra de ninguém.

Encontrei uma terra ao encontrar os companheiros,
uma terra má, onde é um privilégio
não fazer nada, a pensar no futuro.
Porque o trabalho só não nos basta, a mim e aos meus;
sabemos rebentar-nos a trabalhar, mas o grande sonho
dos meus pais foi sempre um nada fazer de machos.
Nascemos para vaguear por aqueles cerros,
sem mulheres, e as mãos cruzá-las atrás das costas.



cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite               
edições sempre em pé
1996





21 setembro 2014

natércia freire / poema da rebeldia



- Nenhum de vós! Seja qual for o céu
que vos encobre! Seja qual for a Idade
que vos deu! Já nenhum me fascina,
ó seres de pedra e mármore e cristal!
Não estremeço de espanto ou de beleza.
Se tudo o que me coube foi morrer,
espero da Esperança a glória do irreal.

Se vos amo, não sei se vos cantei.
Se vos deifiquei, já vos esqueço.
Se vos medi para além do que vos meço,
para aquém vos deixei.


Como erguer-vos acima dos infernos
de pó e cinza que a paixão criou?
E chamei-lhes eternos!
Que rio de miséria os afogou?

Nenhum de vós! Se estive de joelhos,
hoje levanto o olhar. O que de vós rasteja
sobre a Terra, a podridão do instante,
a perdição dos vícios, a razão de cantar,
está nas palavras presas, nas cadeias
que os séculos soluçam, a arrastar...

Nenhum de vós agora me escraviza.
Tão pequenos, pequenos almocreves!
Crianças das extáticas, divisas
e de infinitos breves!

Nenhum de vós! Não sei que epopeias
e astros e mansões
vos erguestes acima das areias!

Arrepiem-se as trevas e o silêncio
Do desprezo que alargo,
dos nomes que soterro, do amargo
anel de ferro que os recolhe.

Nenhum de vós, nenhum merece
que vos olhe!

Quero os cânticos só para além de mim,
de além dos cataclismos.
De além morte, de além caudais
de mundos em fusão.

Quero ver Deus criar de novo a vida;
uma nova manhã, um sabor novo a relva,
a maresia, à primeira canção...
Os passos do amor na noite fresca,
a primeira e imprecisa solidão.

Quero ver Deus, terrível, frente a frente.
Ver os primeiros lagos, ver os primeiros monstros,
ver-me de onde é que eu vinha.

Quero ver Deus criar de novo a Morte
e que a primeira morte seja a minha.



natércia freire
liberta em pedra
1967




20 setembro 2014

o blogue poesia e o facebook



Caros amigos,

Esta página foi censurada pelo Facebook. Certamente por denúncia de um imbecil, mas apenas porque do lado de lá há um imbecil maior que lhe deu ouvidos.
Esta página começou em 2010. Reúne no seu arquivo milhares de páginas da melhor Poesia do Mundo e milhares de fotografias que reproduzem Obras Primas da Pintura, da Fotografia e da Arte Universal.
A partir de hoje mais nenhum conteúdo será adicionado e serão apagados diariamente todos os posts  à razão de um mês por dia, até à eliminação total da página.
É a minha forma de protestar contra a censura. É a minha maneira de não ser conivente com uma estrutura que atenta contra uma liberdade fundamental dos estados democráticos: a Liberdade de Expressão.
Todo o acervo literário continuará disponível na plataforma da Blogger onde o blogue Poesia está alojado e tentarei continuar o que aqui fazia nas plataformas da Google e Tumblr.


gil t. sousa



19 setembro 2014

armando silva carvalho / aqui




Aqui o inferno mata as profissões
Que têm acesso ao ar.
Diz-se que deus se absteve
De criar servidores para os condenados
Ao tédio.

Morre-se no emprego
Com a garganta apertada por uma mão
Sem ossos.

Aqui os anos crescem pouco ou nada.
Os dias e dias secam na raiz.
Não há horas felizes.

O sol sempre se deu bem com gente como esta
Que salpica de chuva os seus pequenos
Afazeres
Para ficar em casa.

Gente com plenos poderes
Para desmanchar a festa que se alonga
Para lá da cabeça.

Diz um: eu sou o sábio de domingo.
Agora não me ocupo de dias úteis, de remendos d’alma,
De fragilidades.
Esperem por mim mas só depois
Da missa.

Diz outro: a ética é grega de nascença
Movemo-nos por números, já sentenciava Pitágoras.
Não cunhamos moeda, não sujamos as mãos
Nos improvisados remos do naufrágio.
O nosso destino é perguntar.

Parece que deus quis que não nascesse a obra.
Nascer que nasça o sol
E é bastante.
Quem pergunta ao sonho pelo homem
De serviço?

Nos campos vicejam novamente as urtigas
São restauros agrícolas,
Exemplos a seguir, ordens vindas de cima,
Ao ouvido,
Na sala dos banquetes.

O mar faz de cão velho e deixa-se ficar
À espera no patamar dos mitos.
Ninguém o suporta
Nem ao seu uivar aos pés
Da história.

Comovidos estamos, com um não sei quê,
Um quanto, um como, uma dor
Que levanta asas
E vai do vale à montanha
Como vão os monges cavaleiros
À televisão.

Aqui a cidade abre-se para lá da noite
E é sempre belo ver a madrugada
A chorar os seus ídolos.

Aqui os que têm coração
Têm desconto.


armando silva carvalho
sol a sol 2005
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007





18 setembro 2014

ary dos santos / o cachecol



A paisagem escocesa no pescoço esgalgado
Um quadro de vento
                               um quadro de frio
uma franja de medo
                              um sorriso coçado
e o silêncio traçado em desafio.
O rosto passajado pendurado num gito
a alma cinzelada num museu moderno.
Ter a palavra exacta
o talento prescrito
e uma écharpe de imagens num postal escrito
duma lua-de-mel nos desportos de inverno.



ary dos santos
vinte anos de poesia
adereços, endereços 1965
círculo de leitores
1983





17 setembro 2014

manuel de freitas / 5 000329 002209




Conheço-lhe a tromba da televisão,
com a barba rude, intelectual, tão preta
- mas a dela também, loura e
desfocada. Acho que é dos jornais.
São esquisitos, nunca falam
(entre eles, ou comigo).
Não me agrada assim tanto
dizer "boa tarde" a Deus, enquanto
vou passando vinhos caros, gin
e produtos bizarros cuja serventia
desconheço. Se a esquerda é isto,
bem posso ir esperando subsídios,
aumentos, um funeral mais em conta.




manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001