11 agosto 2013

bertolt brecht / há homens que lutam um dia



Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis

  

bertolt brecht



10 agosto 2013

gil t. sousa / amarração


20

todos os dias te amarro numa palavra
e quando me olho na esgotante loucura dos dias

leio-te
o infinito passo
que me transporta aos desertos maiores

mas
fico tão pobre
de já nem me chegar o infinito dos verbos!…




gil t. sousa
água forte
2005



09 agosto 2013

william carlos williams / flores à beira do mar



Quando sobre a nítida, florida orla da
pastagem, o oceano invisível e salgado

ergue a sua forma - chicória e margaridas
atadas, soltas, quase não parecem flores

mas somente cor e movimento - ou talvez a
forma - do desassossego, enquanto

fechado em círculo o mar se move tranquilamente
como uma planta sobre o caule



william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993



08 agosto 2013

alexandre o'neill / doceiras de amarante



Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

  
alexandre o'neill
feira cabisbaixa



07 agosto 2013

edmundo de bettencourt / horas




Gelava o tempo branco do relógio.
Fundiu-se um dia o mostrador
aberto para dentro
num foco por onde as horas negras fugiram enlouqueci-
                                 das!
Lá para longe na faixa rósea da distância
recuaram ante o incessante alarido dos sinos
e logo regressaram
desesperadamente procurando em vão
o maquinismo do relógio.

Via-se o dia fechado de silêncio
num quadrado de luz amarelada
 e de novo preso o pé do jovem
quando ia para sair.


   
edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981


06 agosto 2013

armando silva carvalho / metal e nuvens



E aqui com grande choro começo.
Porque ando à caça entre brenhas
de metal e nuvens?
Outrora os pastores lembravam-se do tempo
em que a vereda da vontade viam
e límpidos, no chão, adormeciam rústicos.
Agora sou um ser traído pela vergonha
e amanso ovelhas ruivas, retalhadas por máquinas
que a boca dos dizeres coagulou no tempo.
Estou só entre estas bestas que me chegam do espaço
e que lambem no frio as minhas mãos inertes.



armando silva carvalho
técnicas de engate 1979
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



05 agosto 2013

andre breton / poema




Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
Cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.

Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
E os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflecte
para moldar o serviço de café da beladona.

O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.

Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador
do amor que é nosso.



andre breton
(frança, 1896-1966)
luz da terra
tradução de nicolau saião



04 agosto 2013

josé agostinho baptista / conheci-te



conheci-te
quando eras apenas o viajante sem nome
a rapariga admirável de veracruz.

devagar
toquei a tua fronte escura — t e acuerdas?
o rosto,            a nuca húmida,            os ombros,

descendo
descendo sempre
até ao cálido refúgio,       ao centro
onde me perdi.

revejo-te na solidão de uma pátria febril,
nestas mãos de peregrino da meia idade,
no furor do meu sangue estrangeiro,
na inteligível voz de uma alma devastada.

amei-te quanto pude
sobre a terra dos antepassados,
sob o olhar ferido da águia azteca,
sobrevoando
o tempo alto e azul,
atenta sobretudo à loucura de jeremias,
o homem que sou.

tudo aconteceu assim,
invariavelmente na planície sufocante e na pura
neve dos sonhos,
na penumbra das tardes do Pacífico e no Golfo
onde renunciámos à paixão e à vida.

conheci-te
quando eras apenas o viajante sem nome
a rapariga admirável de veracruz.



josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



03 agosto 2013

josé tolentino mendonça / esplanadas



Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria



josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998


02 agosto 2013

egito gonçalves / sobre os poemas


1

Há poetas que constróem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amassam
- lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.


2

Tal a "Cadeia de Santo Onofre:
Copie o texto: envie a cinco amigos"...
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.


3

Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
ténue tinta azul no papel claro...

Os poetas têm
como os peles-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.


4

Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegramas do medo.

Enquanto bebem o café um histrião nocturno
arenga; executa o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.




egito gonçalves


01 agosto 2013

vicente aleixandre / pensamentos finais



Nasceu e não soube. Respondeu e não falou

As almas surpreendidas olham-te
quando não passas. O vento não cumpre nunca.
Teu pensamento a sós cai lentamente.
Como as fenecidas folhas caem e voltam
a cair, se o vento as dispersar.
Enquanto as espera a sóbria terra,
aberta. Calado o coração, mudos os olhos,
teu pensamento desfaz-se vagaroso
no ar. Movido suavemente. Um som de ramos
finais, um esvaído sonho de ouros vivos
se esparge…  as folhas vão caindo.



vicente aleixandre
poemas de la consumación
antologia de vicente aleixandre
trad. josé bento
editorial inova
1977


31 julho 2013

inês dias / vento garrôa


{Parque Eduardo VII, 1954]


Ouve-me tu, desta vez.
Nem cercos precários,
desvios que nunca se encontram
ou compromissos com o absoluto:
não quero mais coincidir
com o tempo,
agora que deixei de coincidir
com a minha língua.

Quero um amor que tenha
a lealdade de um cancro,
que alastre apenas dentro de mim
e me escolha os ossos
com dedos ligeiros mas demorados
de nódoa negra.

Diz-me o sentido
e seguir-te-ei,
de palavras levantadas contra o frio,
até chegar o som da espinha
quebrada como um livro
que se cansou de ser aberto.


inês dias
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



30 julho 2013

carlos poças falcão / fragmento (narrativa)



                                        ao Laureano, in memoriam


«A democracia manda-nos falar e eu murmuro
excita-nos ao grito e silencio. Depois a tirania
obriga a segredar. Então eu falo.
Impõe-nos o silêncio. É quando grito».
Assim ele ia, nestas lucubrações, em grande perigo
de estranhamento e dor sob o céu baixo
das nuvens suburbanas. «De mim sai o silêncio
como um grito». E caminhava. Nomes bárbaros
de indústrias e comércios seguiam-lhe o andar
são nomes de demónios?, de gigantes?») e as fachadas
irradiavam luzes de obscuros interiores.
Assim ele ia atento, regressando, em grande perigo.

«Não falo a vossa língua, não pertenço a esse código
por todo o lado oculto, o Livro não escrito
de onde saem ordens e discursos criminais».
Assim ia em combate, contrapondo voz humana
a seduções difusas e palavras-talismã.
E entretanto Outono, o fim da tarde. «A inteligência
comove-se a olhar seu próprio tempo». Alteou-se-lhe
de súbito o esterno, um arco tenso
sobre a democracia. «Não seja nunca o sonho
a comandar a vida. Que a voz que em mim compõe
me seja dura». E apressando-se
assim ele ia orando, de regresso, em grande perigo.



carlos poças falcão
telhados de vidro n.º 11
novembro 2008
averno