23 agosto 2012

felipe benitez reyes / esboço na água





Sabes bem que estes anos passarão,
que tudo acabará em literatura:
a imagem das noites, a lenda
da triunfante juventude e as cidades
vividas como corpos.


Que estes anos
passarão já o sabes, pois são teus
como posse de neve e neblina,
como do oceano é a bruma, ou é do ar
a cor fugitiva da tarde,
coisas de ninguém e do nada
surgidas, que ao nada vão:
nem o oceano, nem o ar, nem essa bruma,
nem um crepúsculo igual verão os teus olhos.


A memória é um desenho na água
e nas suas ondas revela-se o cadáver do tempo.

Farás esse desenho.

E de súbito
terás a sombra morta
do tempo junto de ti.





felipe benitez reyes
espanha
tradução de manuel rodrigues


22 agosto 2012

heinrich heine / ein jüngling...





Um jovem ama uma jovem
Que a um outro jovem cobiça.
Mas este outro a uma outra quer,
E, casando, sai da liça.

Despeitada, a jovem casa
Com outro, seja quem for.
E o primeiro enamorado
Sofre desgostos de amor.

Por ser 'stória muito antiga,
Não é menos nova, não:
E quando a alguém acontece
Quebra sempre o coração.






heinrich heine
poesia de 26 séculos
segundo volume
de bashô a Nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972
            

21 agosto 2012

henri michaux / paisagens


  


Paisagens tranquilas ou desoladas.
Paisagens da estrada da vida mais do que da superfície da
Terra.

Paisagens do Tempo que se escoa lentamente, quase imó-
vel e às vezes como que de marcha atrás.

Paisagens de retalhos, de nervos lacerados, de «sauda-
des».

Paisagens para tapar as feridas, o aço, o estoiro, o mal, a
época, a corda ao pescoço, a mobilização.

Paisagens para abolir os gritos.
Paisagens como um lençol puxado até à cabeça.





henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



20 agosto 2012

josé agudo / ne me quitte pas





Entro num bar
e ouve-se o Ne me quitte pas
de um Jacques Brel
nostálgico e distante.

Peço uma cerveja,
acendo um cigarro
e penso mais uma vez
que deveria largá-lo.

Sem saber por quê
recordo-me de sessenta e oito
e da Paris de então.
Eu era todavia muito jovem
e não estive em Paris
em maio de sessenta e oito.
Não estive em Paris.
Ne me quitte pas...

Acendo outro cigarro
e lembro-me que a minha filha
anda pelos quinze
ou tem dezasseis, não sei.

Irrita-me esta cerveja quente,
o fumo, a luz tísica das lâmpadas,
os gritos desses miúdos,
o murmurinho das conversas,
o cheiro a cozinha e a fritos.
- Barman,
que a música não se oiça!

Este lugar deprime-me
e no entanto aguento.




josé agudo
por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003)
organização de mnuel rico, prólogo de manuel vásquez montálban
bartleby, madrid
2003

versão de luís filipe parrado



18 agosto 2012

gil t. sousa / lentidão das facas





6

cheia
da lentidão das facas

a tua sombra
a cortar o tempo.



gil t. sousa
água forte
2005



17 agosto 2012

amadeu baptista / a noite de pavese






Raras vezes me franquearam a porta  
e me deixaram entrar. A febre  
sitia-me a alma e quem me vê  
assusta-se do aspecto do meu rosto,  
esta barba por fazer onde um rouxinol  
se esconde. E mais ainda assusta  
a minha altura, este lugar de vertigem  
e palavras poderosas, a presença  
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,  
o estremecimento que corre nos meus ombros.  
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.  
E quando entro nas casas os meus gestos  
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática  
que contorna o pavor e o entrega  
por não se saber que espécie de vida ou de morte  
vem comigo. Obviamente, eu abençoo  
quem me deixa entrar, dou a entender  
que alguma coisa brilha nas minhas mãos  
e posso matar a fome com uma ou outra palavra  
próxima do amor, um dedo nos cabelos  
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa  
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem  
com as inefáveis sombras que vejo nos outros  
e tento decifrar para meu contentamento.  
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.  
Esse álcool reconfortou-me a alma.  
E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo  
e nítido, observando a mulher nesse sem fim  
das coisas, onde todos os mistérios avançam  
para uma explicação que a qualquer momento  
pode irromper do espírito como uma explosão.  
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas  
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar  
se recuar à infância e subitamente perceber  
que também pertenci ao exercício desta árvore   
que nesta sala se levanta. Em frente,  
na fotografia que o meu olhar alcança  
porque me alcança o olhar que dela se desprende,  
inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,  
mais que um rumor ou um fio ténue  
com o nome de todas as coisas inesperadas  
que me aconteceram na vida, sempre  
que me franquearam a porta e me deixaram entrar.  
Agora, com a memória de ter estado em tua casa  
e ter recebido a graça de alguma atenção,  
eu, que sou pedinte embora nada peça,  
entrego-te este sulco da desordem  
sobre a página em branco e agradeço-te  
com o conhecimento de um outro mundo  
ainda mais inexplicável.  
Não tendo havido despedida, sabe que permaneço  
e na encruzilhada das dores que me couberam viver  
não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido  
e mais nenhuma luz houver além daquela  
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.  
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.  
Que me seja a alba a tua tolerância. 




amadeu baptista


16 agosto 2012

josé alberto oliveira / lema





Depois alguém morreu;
a estada tornou-se penosa,
o verão parecia não ter fim.
Era tempo de fazer malas
e projectos, de trocar
pautas por desacertos,
como, no último trimestre
do liceu, quem se apaixona
e arrepende da solidão que perdeu.
Assim chegou o outono
─  depois alguém morreu.




josé alberto oliveira
resumo a poesia em 2011
assírio & alvim
2012





15 agosto 2012

jean genet / paro esta ferida —






     Paro esta ferida —
     incurável porque ele próprio, em pessoa —
     e nesta solidão,
     é que ele deve morrer;

     pode aí desencantar a força,
     a audácia e a destreza necessárias à sua arte.


     Vou pedir-te um pouco de atenção.
     E vê lá bem: para te entregares melhor à Morte,
     fazer que more em ti com a mais rigorosa exactidão,
     tens de estar sempre de boa saúde.
     A doença mais insignificante iria devolver-te à nossa vida.
     Partir esse bloco de ausência que vais ser.
     Uma espécie de humidade com bolores
     haveria de invadir-te. Vigia a saúde.


     (Se o aconselho a evitar luxos na vida privada,
     se o aconselho a andar meio sujo, usar roupa desleixada,
     sapatos cambados,
     é para ter menos à-vontade de noite,
     toda a esperança do dia se exaltar na aproximação da festa,
     a distância de uma miséria aparente
     à mais esplendorosa das aparições
     dimanar tensão tamanha
     que a dança funcione como a descarga de um grito,
     para a realidade do Circo se preservar
     nesta metamorfose em poeira de ouro,
     mas sobretudo aquele que deve suscitar imagem tão admirável
     ser morto ou, se preferirmos, arrastado pelo chão
     como o derradeiro e mais desprezível homem.

     Chego ao ponto de o aconselhar a ser manco,
     cobrir-se de andrajos, piolhos, e a cheirar mal.
     Que o seu corpo cada ‘vez se apague mais para deixar cintilar,
     ser cada vez mais brilhante,
     a imagem a que me refiro, habitada por um morto.

     Que acabe por existir só na sua aparição.)

     (...)




jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984


14 agosto 2012

rui baião / um homem duplo cego





Um homem duplo cego
aposta o limite. Um homem que se preze
presume uns degraus abaixo
do limiar da pobreza. Um homem
a ver gente vencida pelo silêncio,
a morrer aos bocados.
Um homem à beira
do fim.





rui baião
ladrador
averno
2012



13 agosto 2012

emilio adolfo westphalen / poema






Amarrado à sua sombra o bosque
Abria caminho às pegadas ardentes
Os faunos carreavam os regatos
E nos cornos da Lua uma flauta trilava
A ninfa na encosta sobre o braço descansava
Estios de florais prestígios
Entreteciam desenredavam as brisas
Nas têmporas da bela adormecida
Como se dois meninos com ele folgassem
Tantas voltas dava o mundo
De mão em mão se via percorrido
De vermes com chapéu de copa e dignidade
Os rios não se atreviam
A tocar a orla das cidades
De longe as cantavam e em surdina
Para não quebrar a quietação das muralhas
Ou turvar no recinto
A clara canção dos menestréis
Ali aparecia a bela adormecida coberta de sóis
Os seus ardentes passos tanto mediam o solo
Como o firmamento
Uma sombra de oliveiras sob os olhos
Murmúrios de água para as mãos
No mar esses olhos flutuavam sempre
E esta rama de loureiro de horizonte a horizonte
Adorno dos sonhos pendentes do céu
Não viste um sorriso fiar uma paisagem
A moçoila rindo com o céu gotejando de suas mãos
Mais sombra me davam as pestanas dela
Que uma alameda sob o triplo peso
De folhas ventos e céus
Não viste entreabrir-se a alvorada
Sobre as neves como uma fronte
Alumiando o sol e as estrelas
E a mão mais clara que a água com seu rumor
Assim me atravessaram desde a manhã à noite
As músicas geladas os dedos de aço
Com cercaduras novas seu rosto não descansava
Já sobre a dália ou sobre a nevada
Já na brisa ou no próprio coração do inverno
E na outra mão o ceptro do estio
E no outro pé o sol do outono
Os olhares carregados de resplendores de oceanos ensolarados
Cruzando o Mediterrâneo os golfinhos saltavam
Nos ares quedavam-se as tartarugas
A moçoila não despertara ainda
A flor era a plenitude dos espaços.



  


emilio adolfo westphalen
abolición de la muerte
1935
tradução de nicolau saião



11 agosto 2012

stéphane mallarmé / brisa marinha




Triste carne, ai de mim! Já li os livros todos.
Fugir! Longe fugir! As aves sinto a modos
De ser ébrias de espuma entre o mistério e os céus!
Nada, nem os jardins espelhados nos meus
Olhos, o coração retém quase afogado,
Ó noites! nem da lâmpada a ausente claridade
No branco do papel que o vazio rejeita
E nem a jovem mãe que ao peito o filho aleita.
Hei-de partir! Veleiro a mastrear, tu, larga
As amarras, demanda outra exótica plaga!
Um Tédio, desolado por esperanças cruéis,
Crê ainda nos lenços molhados dos adeus!
E talvez que esses mastros atraindo os presságios
Sejam dos que o tufão verga sobre os naufrágios
Perdidos, já sem mastros, em estéreis ilhéus...
Mas os marujos cantam, ouve, coração meu!




stéphane mallarmé
(1842-1898)
poemas de mallarmé, lidos por fernando pessoa
tradução de josé augusto seabra
poemário
assírio & alvim
2000


10 agosto 2012

enrique garcía-máiquez / as armas e as letras





Aqui onde me vêem
contar a minha experiência
sou um poeta compro-
metido até às sobrancelhas
na campanha audaz
de melhorar a terra.
E, diligente, meto
─  com vontade de luta ─
mãos à obra
no que encontro ao pé.
A batalha mais dura
trava-se-me na cabeça,
e tenho que esforçar-me
─  forçar-me ─  nesta guerra
onde o que perde, ganha
e o que ganha se rende.
A luta é sem quartel,
sem mortos, sem violência,
sem inimigos, sem
armas além das letras…





enrique garcía-máiquez
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



09 agosto 2012

joan-ives casanova / que dizem as mãos erguidas…





que dizem as mãos erguidas como para sair para as ruas
onde se nos torna difícil caminhar no côncavo da história
sem território sem paz e sem pátria porque assim o queremos
para rasgar com tristeza as cores do vento e do desejo

vejo-me reflectido em outras mãos erguidas na claridade do tempo
através da sombra negra que já não pode enegrecer sem segredo
sem atalho sem cortar o pão que se come fresco
o pão pousado na mesa azul horas docemente concedidas
 
não se pensa em escrever a história muito menos falar dela
apenas deixar-se levar ao signo pela chave do tempo
e à conversão poderosa que faz do dia o sentido possível
e pode-se não acreditar em nada salvo na nudez das palmas descobertas
quando se olha a luz das nossas mãos  à beira-mar




joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga