26 janeiro 2012

al berto / crepúsculo




(…)

Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.

Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.

Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.

(…)





al berto
lunário
assírio & alvim
1999




25 janeiro 2012

ted hughes / fidelidade




Era um lugar para viver. Andava
só a ver passar o tempo, a namorar-te,
a flutuar na maré da manhã com as confusas sensações
dos meus vinte e cinco anos. Esvaziada e redecorada
À la mode, a Alexandra House
tinha-se tomado a sopa dos pobres. Estes eram os dias
anteriores à moda vanguardista dos cafés.
A ruidosa cantina do Restaurante Britânico,
uma das marcas deixadas pela guerra,
era um lugar para retemperar noitadas com pequenos-almoços.
Mas a Alexandra House era o lugar onde se ia para ser visto.
As raparigas que recebiam viviam no andar de cima,
acompanhadas por um grupo de perdidos, pessoas que só
  dormiam de dia,
exaustos de andarem pela noite. Nem sei como
consegui um colchão ali, num quarto do andar de cima,
com vista para Petty Cury. Um colchão
sem mais, em cima de umas tábuas nuas, num quarto vazio.
Era tudo o que eu tinha, o meu caderno e aquele colchão.
Sob os pegajosos ouriços dos castanheiros que se abriam,
pelo mês de Junho, abandonei o emprego, preocupava-me
só contigo, esbanjando tudo o que tinha poupado.
Livre da Universidade perdia-me
nas suas liberdades. Todas as noites
dormia naquele colchão, debaixo de uma manta,
com uma rapariga encantadora, que acabava de se escapar
ao marido para aquela experiência limite
de servir na sopa dos pobres. Que
cavalheirismo se apoderou de mim? Penso nisto tudo
como se tivesse acontecido num tempo que nunca passou,
que nunca usei, e ainda está, portanto, em meu poder.
Essa rapariga e eu dormimos nos braços um do outro,
nus e tranquilos como amantes, todas as noites, durante um mês,
sem nunca termos feito amor. Uma qualquer lei sagrada
tinha sido inventada só para mim.
Mas também ela lhe obedecia, como uma sacerdotisa,
delicada e meiga e completamente nua a meu lado.
Seguia com o dedo os arranhões que tu tinhas acabado
  de inscrever
a toda a largura das minhas costas, e até parecia que se queria
  juntar a mim
na minha obsessão, na minha concentração,
para manter a minha preocupação intacta.
Nem uma única vez me convidou, nunca tentou nada.
E eu nunca movi um dedo para além
de um consolo fraterno. Eu era como uma irmã,
e aquilo nunca me pareceu antinatural. Estava absorto,
tão fechado em ti, de uma forma tão cega,
que tudo o que não fosses tu não existia para mim.
E ainda hoje medito — embora já tenha dúvidas
se é motivo para me orgulhar, ou para me lamentar. A sua amiga
tinha um quarto maior, e era mais selvagem.
Mudámo-nos e ficámos no quarto dela. Aquele quarto enorme
transformou-se em dormitório e em quartel-general
alternativo a St Botolph’s. Bonita e roliça,
com um desenvergonhado riso de dentes ralos, esta
  sua amiga
fez tudo o que pôde para me ter dentro dela.
E nunca saberás da batalha
que eu travei para manter o sentido às minhas palavras,
no mundo que nós estávamos a construir.
Eu tinha medo que, se perdesse aquela luta,
alguma coisa nos abandonasse. Erguendo do solo uma
daquelas raparigas nuas, enquanto elas me sorriam
nos seus vinte e poucos anos, coloquei-as
no limiar do nosso improvável futuro
como aqueles que, precisando de proteger a sua casa
tinham por hábito sepultar, no limiar da nova casa,
uma criança inocente.





ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000





24 janeiro 2012

leonardo chioda / um fausto




quanta vantagem
sobre o erro

tem o demônio
da certeza

no rolar do precipício
em carne





23 janeiro 2012

wislawa szymborska / o terrorista… olha




A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.

O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A esta distância ficará livre de perigo
e, quanto a vista, é como no cinema:

Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos escuros… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.

Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.

Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.

Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.

São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode.






wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





22 janeiro 2012

wallace stevens / o boneco de neve





Há que ter um espírito de Inverno
Para olhar a geada e os ramos
Dos pinheiros encrostados de neve;

E ter tido frio muito tempo
Para ver os zimbros encrespados com gelo,
Os abetos eriçados ao brilho distante

Do sol de Janeiro; e não pensar
Em qualquer desgraça no som do vento,
No som de algumas folhas,

Que é o som da terra
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo lugar deserto

Para o ouvinte, que ouve na neve,
E, ele mesmo nada, não vê
Nada que lá não está e sim o nada que vê.





wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991




21 janeiro 2012

franco loi /a tarde cai e nós aqui à espera.

   



A tarde cai e nós aqui à espera.
Estamos aqui á escuta. Mas que esperamos nós?
Que antigas são as casas! Como é distante
a cidade, esses rumores, a lua...
No desfazer da tarde o ar suspende-se
e como que se esconde no reflexo das nuvens
o que entre nós perpassa ao olhar as caras...
O poeta pensa e, débil, sua voz
fala de qualquer coisa que já foi.
Mas que esperamos nós? Porque estamos à escuta?
Redonda, a lua sobre Milão se mira
e grava memória o ar sobre as nossas faces.




franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993









20 janeiro 2012

sebastião alba / esplanada




Como o copo que se eleva lentamente,
glacial, numa tarde de remorso,
os teus beijos duma grande difusão clara,
e o fumo dum cigarro à procura
dum ponto no mar.




sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981




19 janeiro 2012

josé carlos barros / do que a vida poderia ter sido






Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de Abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta de vida que foi.




josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




18 janeiro 2012

angela figuera aymerich / s. poeta lavrador





Eu  era poeta lavrador.
Meu campo era amarelo e áspero.
Todos os dias eu suava,
para o abrandar, suor e lágrimas.
Atrás dos bois, lentos e firmes,
andava a reiha do meu arado.
Meus sulcos eram largos, fundos.
(Meus versos eram fundos, largos.)
Eu semeava pelo Outono,
ano atrás de ano, sem desânimo.
Por cada mão cheia de grão
ia um punhado de beleza
e um poucochinho  de verdade
(sob a indiferença de meu amo).
Ano atrás de ano eu ceifava
sob o ardente sol do Verão:
de fome e dor era tal ceifa;
de fome, dor e desengano.
No São Poeta Lavrador
aos meados do mês de Maio,
quando no altar da catedral
ardem as velas do milagre
ajoelhei-me sobre a pedra
antes do galo madrugar
e estive assim, reza que reza,
a  fronte humilde, em cruz os braços.
A Deus o Pai, a Deus o Filho
e a Deus — Espírito Santo,
com toda a urgência lhes pedi
que no prestassem um auxílio.
Pedi por mim e pelos bons,
pelos que dizem que são maus,
pelos surdos com bom ouvido
e pelos cegos de olhos vivos.
Pelos soldadinhos de chumbo
e pelo chumbo idos soldados.
Pelos de estômago vazio
e pelos curados do espanto.
Pelos meninos de cu ao léu
e as meninas de olhos pasmados.
Pelas mães  com os peitos secos
e pelos avós que se emborracham.
Pelos caídos sobre a neve,
pelos queimados pelo Verão,
pelos que dormem na cadeia
e os que giram ao desamparo,
pelos que ‘gritam contra o vento,
pelos que se calam assustados,
pelos que têm sede e  esperam
e pelos que estão desesperançados.
Ardentemente, largas horas,
estive assim, pedindo, orando.
Com os joelhos esfolados,
Gosto a incenso nos meus lábios,
eu, S. Poeta Lavrador,
quando já o sol andava alto,
saí em nome de Deus Pai,
do Filho e do Espírito Santo,
com os olhos cheios de esperança,
saí ao encontro do milagre:
(Anjos entregues à tarefa,
na minha terra arando, arando.
Sob a sombra das suas asas,
altas espigas, loiro grão...
Pão de justiça para todos.
Amor e paz desenterrados.)

Olhei! Olhei! Os anjos não estavam.
Os bois imóveis, solitário o campo.

Deixei secar o sangue dos joelhos.
Olhei de frente e empunhei o arado.






angela figuera aymerich
poesia espanhola do após-guerra
selecção e tradução de egito gonçalves
portugália
1962




17 janeiro 2012

luís miguel nava / um prego




Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002


16 janeiro 2012

albano martins / o nome da ausência




O sótão: era ali
que o mundo começava. Ainda
não sabias, então,
quantas letras te seriam
necessárias para soletrar
o alfabeto dos dias, para encher
a tua caixa
de música, a tua concha
de areia. E ainda
o não sabes hoje. Com cinza
nada se escreve a não ser
as vogais do silêncio. E este
é o nome que se dá à ausência,
quando a noite e a poeira
dos astros pousam
sobre a ranhura dos olhos.





albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




15 janeiro 2012

alberto pimenta / o desencantador



 (…)

eu
a minha história
começou há milhares de anos
e continua é claro
está agora a passar-se
como a tua
e vai continuar a passar-se
durante não sei quantos anos mais

transformar homens em animais
ou em escravos que é o mesmo
eu conheço isso melhor que ninguém
o tempo é uma burla
inventada pelos deuses
que tanto fazem de Lucius um burro
dizem eles aos poetas
como também depois dizem e mentem
“trabalha para o futuro” quer dizer
trabalha sempre para eles

e como perguntas
se é o silêncio
que nos permite existir
olha que é verdade
nunca houve um acto limpo
na história
eu sofri por isso
e dito isto
pôs  a máscara de burro
vês o que é um escravo
disse ele

Lucius disse eu
tu és Lucius

(…)


  

alberto pimenta
o desencantador
7 nós
2011


14 janeiro 2012

natália correia / queixa das almas jovens censuradas





Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.






natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999