Pássaros. Atravessam
chuvas e países no erro dos ímanes e dos
ventos, pássaros que voavam entre a ira e a luz. Voltam incompreensíveis
sob leis de vertigem e de esquecimento. antonio gamoneda livro do frio trad. de josé
bento assírio &
alvim 1999
paciência gaudência nem sempre o céu tem clemência e se a violência da cheia levou a aldeia lembra-te de pompeia e escuta a melopeia das ondas batendo na areia e de futuro seja escuro ou haja lua-cheia vai com o nascituro para o monturo celebrar a última ceia e cantar com a sereia:
O outono é,
sobretudo, esse limite que, esquecido
do corpo dos seus frutos, e até da luz,
retém somente o timbre que do palato
deduziu o uso da
inteligência. A fim de ficar um travo
a reformar o luto e a analisá-lo.
Para instituir-se luz dessa luz.
ou sapiência, culto de estações a
mover-se. Nunca tristes, mas
transparências a irisar-se ao fundo. O outono aí,
declina sempre. Insiste na inteligência
desse timbre arguto. fernando echevarría geórgicas afrontamento 1998
Do teu
esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói, sai dele apenas
quando puderes dar algo aos outros. Antes, é cedo
demais, muito depois, é excessivo egoísmo. Mas mesmo esta
convicção não ajuda, não sei Como viver, não
sei o que é mais moral, mais ético, Onde intervir,
para onde olhar, ouvir o quê? Há tantas
coisas que falam ao mesmo tempo. gonçalo m. tavares 1 poesia relógio d´água 2004
1 Não há mais céu se ele não cai humilde acaso no seu lugar. Não há melhor nem som mais
puro que o natural dos nossos
olhos. Não vale a pena fazer brinquedos se as nossas
mãos são de criança. pedro tamen os dias tábua das matérias poesia 1956/1991 círculo de
leitores 1995
X GREEN GOD Trazia consigo
a graça das fontes
quando anoitece. Era o corpo
como um rio em sereno
desafio com as margens
quando desce. Andava como
quem passa sem ter tempo
de parar. Ervas nasciam
dos passos cresciam
troncos dos braços quando os
erguia no ar. Sorria como
quem dança. E desfolhava ao
dançar o corpo, que
lhe tremia num ritmo que
ele sabia que os deuses
devem usar. E seguia o seu
caminho, porque era um
deus que passava. Alheio a tudo o
que via, enleado na
melodia duma flauta que
tocava.
eugénio de andrade as mãos e os frutos poesia fundação
eugénio de andrade 2000
5 eu a morrer
debaixo do sol e eles sentados apreciando
coxas e mármores pendentes no verão seco
ao fim de nenhuma tarde, eu desalinhavado
pelo vento, crescido no meio das chamas, correndo pelas
ruas paralelas e sórdidas da antiguidade clássica, eu também eu de
guia e asno e cabriola na duna encardida de sol e a agreste
sabedoria das mãos cortadas rente eu e eles apreçando o
remate dormir dormidos
nas esteiras, a corda presa nos
dentes, que surpresa quando me tomaste, pela primeira
vez era uma noite de algum vento e das esquias
chaminés subia a chuva como uma nuvem caída na
memória e para nunca mais então
acaricio-te as orelhas distraidamente como quem está duvidoso
de comprar e sabe que não deve apressar o
remate eu a morrer
como se fosse coisa nenhuma cheia de pressa esmorecida pelo
sol eu e eles sentados como se fosse uma pressa
vazia de coisas uma opressão às portas do grande
mercado demasiadamente silencioso e atento acaricio-te as
mãos bem cortadas, o reflexo do melhor mármore
antigo, eu a morrer
como se fosse o menor preço e eles sentados com os
olhos na cara a boiar! antónio franco alexandre dos jogos de inverno poemas assírio &
alvim 1996
A poesia dá-se
bem com este mês, cuja medida se
assemelha à do verso – dias partidos ao
meio, deixando a alma indecisa numa evocação
de gastos sentimentos. Mas é no campo, ao
poente, saboreando o cheiro doce dos frutos que
apodrecem na terra, como algas mortas, que uma
voz insistente chama – poe- sia? Quem, por
detrás do seu rosto sonoro e abstracto? Memória
que a noite depressa apaga… nuno júdice 50 anos de poesia antologia pessoal (1972-2022) dom quixote 2024
De algumas pedras também às vezes necessitas. Boleadas, como os seixos,
são elas que dão consistência à arquitectura do poema. Porque nelas, como no
solfejo das algas, resiste ainda, ou é somente o seu resíduo, a música das
águas.
6 hoje é o sexto
dia, sexta morada de
silêncio anotar os nomes
das flores e suas significações
emblemáticas absintio / amargura, tristeza asfódelo / coração abandonado cinerária / dor de coração glicínia / ternura junquilho / melancolia silindra / recordações anotar os nomes
das areias e das argilas mais profundas os nomes dos
insectos e dos minerais as marcas
discretas das coisas cortantes e recopiar
algumas palavras de Amers: … Tol que j'ai vu dormir dans ma tièdeur
de femme, comme un nomade roulé dans son
étroite laine, qu'il te souvienne, ô mon
amant, de toutes chambres ouvertes sur la mer où nous
avons aimé. manter a
imobilidade absoluta dos rochedos recear as
falésias onde a lua abriu um sulco tactear teu
rosto disperso pelos ventos recolher a dor
na penumbra do entardecer anunciar a
noite com a ponta dum punhal de veludo espiar o
frémito súbito das estrelas… reler tudo mantendo o
corpo em surdina al berto doze moradas de silêncio 1978/1979 o medo assírio &
alvim 1997
Recebo a mão
sobre o ombro que aqui me vem prender como a
mão de um amigo. Seque a
figueira e o fruto prometido, estaque o vento
para todo o sempre, não seja nunca
mais o mar o mar. Recebo a mão
sobre o ombro que aqui me vem Prender como a
mão de um amigo. amadeu baptista paixão 2003 caudal de relâmpagos antologia pessoal 1982-2017 edições
esgotadas 2017
Tu guiaste-nos
através do inexplorado como uma
estrela cadente na escuridão. Foste a
amargura e a mentira. Nunca o
consolo.
* A fama nadou
como um cisne através da
neblina dourada e tu, meu amor,
foste sempre o meu desespero. anna akhmatova é por isso que a alegria é mais alta poemas russos dos séculos vinte e vinte um versões de luís
filipe parrado contracapa 2022