21 abril 2025

john freeman / do amor



 

 
Se o vento se fizesse rogado
talvez pudéssemos ficar e ouvir
como se a noite pausasse a sua cortina
azul e o trigo se curvasse sem dissipar
a esperança no que se passa no escuro,
e só por acaso se passa.
 
 
john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019
 




 

20 abril 2025

josé augusto mourão / das coisas peregrinas




 

 

que ousemos o entusiasmo
da luz de cada dia,
a agilidade dos vindimadores
socalco acima
 
mantém-nos, Deus, ao rés da terra,
e altos, de inquietos, vigilantes voos
 
não se esgotem as cisternas
da paciência para a vida,
nem os agapantos azuis
nos encharquem de clandestina morte
 
dá-nos o paladar das coisas peregrinas,
o lugar do vento que não sabe donde,
o sítio dos comboios nos apeadeiros breves
 
que no rodopio das horas
a tua mão nos mostre o pino do sol
e o cheiro a mosto e a pão de milho
anuncie a ceia, a mesa da justiça, do bem e da beleza
 
 
 
josé augusto mourão
o nome e a forma
poesia reunida
pedra angular
2009
 
 

 

19 abril 2025

rui costa / branco

 
 
 
queremos eternidade
e o mais que cabemos
é rodar nesta corola.
ser imortal dentro de cada mão
pois que perder os dedos
é uma súbita maneira
de caminhar no silêncio.
Mas foi isto tudo que eu sei
que não existe quem me ensinou:
o teu rosto é um laranjal ao sol
que nunca principia
nem acaba.
 
 
 
rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

18 abril 2025

jesús lizano / encontra-me, beleza




 

Encontra-me, Beleza, necessito
que me abraces, sinto-me despovoado,
vem ao meu sentimento descuidado,
que a tua ausência é o único delito.
 
Tu és inalcançável e eu o maldito,
idêntico latido desolado,
eu por fruto no tempo encarcerado
livre por sombra tu no infinito.
 
Encontra-me, Beleza, que outra coisa
pode desejar o meu coração cercado
que viver da tua essência, aurora minha.
 
E que podes, altiva e silenciosa,
desejar no teu frio descampado
senão a forma, fazer-te poesia.
 
 
 
jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019






 

17 abril 2025

gastão cruz / primavera

 
 
 
Tanto quanto é irregular ou excessiva, ora negando ora exagerando a sua imagem, a primavera de Lisboa, assim em Londres reencontro o filme límpido da mudança do tempo, o transitório aparentemente eterno.
A luz de um sol que sopra devagar por entre as pequenas vagas da manhã – e todavia divide e define as imagens do mundo em perfeitos perfis – fixa as cores, os parques, torna os tijolos brancos.
Na rua de colunas, quando a ondulação da manhã finda, as casas param por detrás da luz.
O cheiro que vem dos pubs com as portas abertas, como de um mundo interior que se revela e altera com o ar da tarde, faz-me subitamente conhecer a identidade de um tempo tão meu como o da face exacta de Lisboa ou o que nele resta, tempo dentro do tempo, da primavera revelada.
 
 
 
gastão cruz
o pianista
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009



16 abril 2025

nuno júdice / declaração

 
 
 
Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




 

15 abril 2025

maria do rosário pedreira / há pouco…




Há pouco quis ir lá acima para ver como estavas; se

ainda tinhas dores, ou febre – ou medo (porque já
estava a escurecer); se querias que te lesse o que vem
no jornal sobre as feridas do mundo (mesmo sabendo
que esse mundo já não vai ser o teu) ou que te levasse
para junto da janela, onde ao cair da noite o vento
deixa as dunas desgrenhadas e as aves são como lenços
rasgados sobre o mar. a meio da escada, o olhar órfão
 
da cadela e as flores secas no vaso lembraram-me
que era tarde de mais para tudo isso: nesta casa,
a partir de agora, os degraus só se podem descer.
 
 
 
maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001






 

14 abril 2025

margaret atwood / canções para irmãs assassinadas

 
 
 
6. Perdidas
 
Tantas irmãs perdemos
Tantas irmãs perdidas
 
Ao longo dos anos, milhares de anos
Tantas mandadas para longe
 
Demasiado cedo na noite
Por homens que pensavam ter o direito
 
Raiva e ódio
Ciúme e medo
 
Tantas irmãs mortas
Ao longo de anos, milhares de anos
 
Mortas por homens terríveis
Que queriam ser mais altos
 
Ao longo de anos, milhares de anos
Tantas irmãs perdidas
 
Tantas lágrimas…
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021



13 abril 2025

júlio dinis / não te amo

 



 

 

Amo as noites de luar.
Amo a lua, o sol, o céu.
Amo as estrelas e o mar;
Mas não amo o rosto teu.
 
Amo das aves o canto,
Dos bosques o sussurrar,
Na voz da brisa acho encanto;
Mas não amo o teu cantar.
 
Amo a cor da branca rosa
Entre as flores bela flor,
Da violeta a cor mimosa;
Mas não amo a tua cor.
 
Amo o brilho das estrelas
Que fulguram lá nos céus,
O da lua em noites belas
Mas não o dos olhos teus.
 
Amo toda a natureza,
Tudo nela me sorri,
Em tudo encontro beleza;
Mas não sinto amor por ti.
 
1857
 
 
 
júlio dinis
obras completas de julio dinis vol. II
poesias
círculo de leitores
1979
 



12 abril 2025

alberto caeiro / esta tarde a trovoada caiu

 
 
 
IV
 
 Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...
 
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
 
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
 
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
 
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente visível
Ou que julgará dela?)
 
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o Sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós…
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
 
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega...
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946



11 abril 2025

lawrence ferlinghetti / a rua comprida

 
 
A rua comprida
que é a rua do mundo
passa em volta do mundo
cheia de toda a gente do mundo
para não falar de todas as vozes
de todas as pessoas
que jamais existiram
Amantes e choramingas
virgens e dorminhocos
vendedores chulos e homens-sanduíche
leiteiros e oradores
banqueiros sem tusa
donas de casa friáveis
com snobs ligaduras de nylon
desertos de publicitários
rebanhos de poldras do ensino secundário
hordas de universitários
todos a falar pelos cotovelos
e a dar as suas voltas
ou a dependurar-se em janelas
para ver o que está a dar
lá fora no mundo
onde tudo acontece
mais tarde ou mais cedo
se é que acontece
E a rua comprida
que é a mais comprida
do mundo inteiro
mas não é tão comprida
como parece
vai passando
por todas as cidades e todas as cenas
descendo cada viela
subindo todas as avenidas
através de todos os cruzamentos
através de semáforos vermelhos e verdes
as cidades à luz do sol
os continentes à chuva
as esfomeadas Hong Kongs
as Tuscaloosas áridas
as Oaklands da alma
as Dublins da imaginação
E a rua comprida
desenrola-se por toda a parte
como um enorme comboio de brincar
apitando e baforando pelo mundo
com passageiros ao rubro
e bebés e cestas de piquenique
e cães e gatos
e todos eles a quererem saber
quem será que lá vai
à frente na cabine
a conduzir o comboio
se é que vai
o comboio que corre à volta do mundo
como um mundo às voltas
todos a quererem saber
o que haverá à frente
se houver
e há pessoas que se debruçam
e espreitam para longe
a ver se conseguem
vislumbrar o maquinista
na sua cabine de um só olho
a ver se conseguem vê-lo
relancear-lhe o rosto
deitar-lhe o olho
no giro de uma curva
mas nunca conseguem
embora de vez em quando
pareçam quase
E a rua segue a gingar
o comboio segue a disparar
com as suas janelas a subir
as suas janelas as janelas
de todos os prédios
de todas as ruas do mundo
a disparar
através da luz do mundo
através da noite do mundo
com luzinhas nos cruzamentos
luzes perdidas piscando
hordas nos carnavais
circos dos bosques da noite
bordéis e parlamentos
fontes esquecidas
portas para sótãos e portas por sitiar
silhuetas nos lampiões
pálidos ídolos bailando
enquanto segue o mundo a gingar
Mas chegamos agora
à parte solitária da rua
a parte da rua
que dá a volta
à parte solitária do mundo
E este é o sítio
onde se muda de comboio
para o expresso de Brighton Beach
Este não é o sítio
onde se faça alguma coisa
Esta é a parte do mundo
onde não acontece nada
onde ninguém faz nada
acontecer
onde não há ninguém em lado nenhum
ninguém em parte alguma
a não ser tu
nem sequer um espelho
para fazer dois de ti
nem vivalma
a não ser a tua
se calhar
e mesmo essa
não existe
se calhar
ou não te pertence
se calhar
porque tu estás o que se chama
morto
chegaste à tua estação
 
 
É favor descer



lawrence ferlinghetti
mensagens orais
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024
 


10 abril 2025

wislawa szymborska / tudo

 
 
 
Tudo –
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais
do que um farrapo do caos
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





09 abril 2025

primo levi / aos amigos

 
 
Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024