13 janeiro 2025

gastão cruz / de cada vez

  
 
Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas vida
 
prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias
 
 
 
gastão cruz
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 janeiro 2025

nina gorlanova / tercetos

 
 
 
As crianças não gastaram o seu dinheiro
Para os gelados
E deram-no ao pai para a cerveja.
 
A filha do meio
Desenvolveu o gosto pela leitura
Devido às minhas orações.
 
É só em sonhos que
Hoje em dia vejo
Pessoas que o conseguiram.
 
Tudo melhorou
Mesmo quando estávamos furiosos um com o outro
Nunca partimos um prato…
 
O meu filho mais novo
Lê como os Romanos antigos
Em voz alta e reclinado.
 
Ao ler a prosa de Brodsky
Descobri uma afinidade espiritual:
Uma intensa paixão pelo pó…
 
 
 
nina gorlanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 




11 janeiro 2025

fernando ortiz / outra divagação

 
 
 
Onde estão os que o silêncio oculta?
Pergunta ao silêncio, se for a tua hora,
e com seus lábios o silêncio te falará.
Ao silêncio não podes responder-lhe
se não for com o silêncio que tu sabes
onde encontrar. Aí o silêncio habita
e nele estão os que  ao silêncio ouviram.
 
 
 
fernando ortiz
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





10 janeiro 2025

louise glück / lago na cratera

 
 
 
Houve uma guerra entre o bem e o mal.
Decidimos que o corpo era o bem.
 
Isso fez da morte o mal.
E virou a alma
inteiramente contra a morte.
 
Como um soldado raso desejoso
de servir um poderoso guerreiro, a alma
desejou aliar-se ao corpo.
 
Virou-se contra as trevas,
contra as formas de morte
que reconhecia.
 
De onde provém a voz
que diz: e se a guerra
for o mal? Que diz:
 
e se foi o corpo que nos fez isto,
nos deixou com medo do amor?
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




09 janeiro 2025

emanuel jorge botelho / claro/escuro

 
 
 
faço o quê com a amargura?
guardo-a no bolso,
ou ponho sobre ela o peso de um dia aziago?
talvez o mar me salve, ou me converta,
talvez a terra seja o meu arado.
 
quando o tempo passar à minha frente,
peço-lhe uma folha de tília,
e um pedaço de céu.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022
 



08 janeiro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

 
 
 
XLI.
 
depois de um dia inteiro
a lutar individualmente pela sua sobrevivência
os pássaros reúnem-se para criarem
em conjunto
um momento de beleza.
 
é esse o sentido de comunidade –
 
de todas as teorias que conheço,
é esta a que prefiro.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024
 



07 janeiro 2025

pedro tamen / a água

 
 
1.
 
Agora muitos montes; e o rio
se levanta e corre nos intervalos
dos gestos. Saber sentir o frio
de todos os ribeiros é amá-los.
 
Agora é ir correndo os dedos
pela pele; abrir o peito
a todos os cuidados e segredos,
amar-me já refeito.
 
Agora perder tudo; ter aberta
a carne de aventura naufragada.
Agora receber e estar alerta,
 
agora ter razão na mão molhada.
Agora desnudar a lama certa
e esperar vê-la escorrida e bafejada.
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 


06 janeiro 2025

r. lino / outro círculo

 
 
 
1.
 
Certo é que outras palavras poderiam
transtornar estes dizeres
NAVIOS DE NEVOEIRO APONTADOS PARA O MAR
COM A TERRA NOS SEUS SONHOS.
Não se sabe para que olharam
ou do que viram o que contaram:
o esquecimento guiou alguns
para o futuro; de outros pouco mais sabemos
senão o peso que deixaram nas cidades,
apostas mais ou menos eficazes
e perversas sob o peso das nações.
Um fôlego enorme nasce com os dias
por notícias devastadas sobre a terra:
somos uns e somos outros
consoante as esquinas em que viramos.
De que modo nos apanha o corpo
o pensamento, este cheiro, aquela casa
uma tarde ou uma bala
é um tempo
marcado pelo ritmo de uma voz.
 
 
 
r. lino
paisagens de além tejo
políptico
companhia das ilhas
2016
 



05 janeiro 2025

jaime rocha / poema

 
 
 
Ao fundo, as nuvens chocam com as
casas. Os pássaros gritam e há homens
que se atiram das varandas como se
fossem vasos empurrados pelo vento.
Os carros esmagam os bichos que correm
pelo alcatrão. É quase Primavera, o frio
anuncia uma culpa antiga, a solidão
dos guerreiros. E há outro homem
que diz: gosto das árvores, do seu tronco
e das raízes que rasgam as calçadas. Esse
homem decidira viver porque pertencia
à humidade das paredes, aos telhados de
barro, às bétulas. Era dali que lhe vinha
a força dos braços, a claridade que se lhe
prendera à pele. Era esta a sua confissão.
Mas, após ter dito aquelas palavras lançou-se
para o espaço, seguindo a trajectória da chuva.
 
 
 
jaime rocha
resumo, a poesia em 2011
assírio & alvim
2012
 




04 janeiro 2025

Ifigenia doumi / impermeável

 
 
 
Sou impermeável às tuas palavras
escorregam por cima de mim, ora querendo
magoar-me ora querendo incitar-me.
Sou impermeável às tuas carícias;
pingam por cima da minha pele
a temperatura neutra.
 
Perguntas-te porque é que o chão se encheu de água.
Não tenho nada a dizer.
Não tenho nada a dizer.
 
[O céu estrelado é como as costas de um homem cheias de sinais.
Tu desejando mergulhar na escuridão,
e eles cravando-se nos teus olhos].
 
 
 
ifigenia doumi
tradução de nikos pratsinis
nervo/18
colectivo de poesia
maio/agosto 2023




 

03 janeiro 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCXCII
 
Tudo já se cumpriu e tudo é novo.
Tudo está por fazer, pois nada existe,
ainda. Não há mais estradas que as que
os teus pés vão abrindo, e o vento apaga
logo, farejador, cão do teu rasto.
Pelos marcos solenes que te apontam
os caminhos de qualquer fé que seja,
suspendem-se, enforcados, verdadeiros
enganos. Onde, alegre, te acene
nada, mas nada, é esse o teu caminho!
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021




 

02 janeiro 2025

rui diniz / gente invulgar

 
 
Contemplei a galeria negra dos outonos etruscos.
Eram telas meditadas no exílio, na sofreguidão
azul das ilhas negras, pequenos vasos, fragmentos
de poemas onde os pórticos celebravam. Lentamente
os processos de impiedade foram florescendo na
grécia. E vi Aspásia exilada, corroída por um
choro ancestral, as suas vestes manchadas pelo
sangue escuro da desolação. Eram estes seres de
azuladas mãos, manejavam à estranha luz
tranquilos manuscritos, compunham a dolorosa
condenação dos mundos loucamente. Esculpiam
os talentosos mármores, planeavam nos
cérebros uma leve ascensão. O sorriso de Fídias
era finalmente coberto por folhas amarelecidas,
pelo orvalho, pelo vestido dos invernos, a neve
negra do interior do país, em montanhosas
maldições. Fídias olhava longamente a noite
como se ela fosse a ágora de Rodes. E, na
triste vastidão das águas pálidas, permanecia
deitado sobre a estrada, numa atitude escura.
Recordo-me que tomei o caminho das antigas
Arenas e sobre o pensamento desses lugares
tinham pousado uma doce e vingativa máscara
de tragédia. Então lembrei Sófocles escrevendo
lentamente, ouvindo a voz branca do demónio
que o habitara, longe, nesse tempo, instante
envelhecendo as colunas de um pó breve, a
decadência rubra dos recortes da costa, dos
litorais onde se decompunham sob o sol as tessálicas
palavras.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
ossuário (ou: a vida de james whistler)
língua morta
2022





01 janeiro 2025

luís miguel nava / a preto e branco

 
 
 
Uma mulher encosta-se a um muro, encosta-se à memória. Veste duma maneira simples, uma blusa, uma saia cobrindo os joelhos, talvez uns tamancos. Tem ainda, amarrado à cabeça, um lenço negro, negros aliás e brancos todos os tons em que se veste, negros os tamancos, um casaco de lã sobre a blusa, negras ainda algumas das riscas da saia, brancas as outras, como a blusa. Encosta-se ao muro aonde cola as costas, os ombros e depois uma das faces, assim é mais fácil ver-lhe o rosto. As mãos encostá-las-ia também se não segurasse um lenço branco. Aperta-o entre os dedos, fá-lo passar entre eles, uma pequena serpente. Ou então amarrota-o, faz das palmas das mãos uma concha onde o esconde, o lenço assim desaparece totalmente, apenas as mãos se vêem projectadas para a frente, dir-se-ia que rezam. Depois, sempre ocultando o lenço, levam-no ao rosto novamente de perfil, tudo a preto e branco ainda, ou é o rosto que desce às mãos, mergulha no lenço, talvez este e a língua se procurem, uma língua pelo lenço adiante, uma língua é provável que vermelha, não, é tudo ainda muito a preto e branco, é tudo ainda demasiado a preto e branco para permitir um pormenor vermelho.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002