07 dezembro 2024

manuel resende / porto-cidade sem nome

 
 
 
Esse abismo despejado sobre nós,
Que foi azul e se enche do ser nocturno dos homens,
Vibrado de luz no espesso nevoeiro nocturno –
Esse abismo é um deserto aéreo onde não se vive,
Porque é pura a distância à nossa volta,
Com a sua presença enorme, sem palavras.
É tão grande, tão completamente tudo,
Que aqui pareço ser livre e grande como ele.
Mas onde está tudo? E que tudo? Tudo mais não é do que
Um futuro que se aproxima,
Uma coisa que não se sabe e perigosa.
Que ser é este que imprime figuras no ar?
É o longe e o perto, o antigo e o presente, tempo esmagado
         contra
Um ar mudado em parede volumosa e sólida.
Nele não há pátria, nem vida, nem minutos que se sucedam.
A máquina da cidade parou de respirar.
Um homem que passeie neste desdobrável d eprédios
Perde sem saber o seu nome,
Entre os cães que dormem na rua.
E nem o rio que corre corre, congelado.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



06 dezembro 2024

luís miguel nava / o tanque de bashô

 
 
 
          O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de Bashô.
          A água maravilha-se.
 
 
          Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono, o dia decom-
põe-se, o sangue explode contra a claridade.
 
          Um nó de leite a nudez cresce pela água



luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




05 dezembro 2024

manuel gusmão / conheci um jovem

 
 
Conheci um jovem que me dói às vezes,
um pouco, no futuro. e não tenho amigas.
perco-me nelas, desentendo-me ao ponto
de já não estar ali e de correr depois
pela coberta dos navios, pelas pontes,
pelas praias onde a neve cai.
 
Tenho o doce do teu sangue alastrando
Em pasta, nuvens pesadas no céu da
Boca. Se eu não te morresse como estarias tu
Crescendo, meu querido amigo,
                    e u é?
 
E essa que me chamas é ainda já
a outra, a escura floresta
                                     e selvagem
 
e áspera e forte
que conheço de se tocarem as pétalas
                    na paixão?
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
a rosa falante ou o amoroso palimpsesto (1972, 1982)
caminho
1990




04 dezembro 2024

luiza neto jorge / recanto 2

 
 
 
Viver, entretanto, é ver, ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça ou exclua
no interior dos sonhos.
 
Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios
quando, a passar, se retém a espessa
água do tempo, da tempestade.
 
Um comércio, apenas – desvio da moeda
da trajectória do ouro
para o papel.
 
Sempre viver inclui andar percorrer voar
de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos (1970)
poesia
assírio & alvim
1993
 



03 dezembro 2024

luís veiga leitão / filho do povo

 
 
 
Filho do povo criado nas alturas
com pinheirais em torno e um vento cru
rachando a solidão das fragas duras
que nos tratam por tu
 
 
Daí
esta sede saibrosa que nos cresta
(nem sei ó meu irmão como tu medras)
 
 
Daí
esta fome surda de giesta
comendo a terra das próprias pedras
 
 
Filha dos montes que não têm nome
e pastora de um corpo na verdura
que o rebanho do tempo breve come
 
 
– Um relâmpago a tua formosura
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





02 dezembro 2024

pedro homem de mello / carta a eugénio de andrade

 
 
 
Porto. Abril. Tantos de tal…
E contínuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão…
Vela pagada ou acesa?
– Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar…
 
 
 
pedro homem de mello
eu desci aos infernos (1972)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




01 dezembro 2024

manuel alegre / lusíada exilado

 
 
 
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.
 
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
 
Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.
 
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
 
Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
 
Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
 
Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.
 
Eu que matei roubei eu que não minto
se vos disser que fui pirata e ladrão.
Eu que fui como Fernão Mendes Pinto
o diabo e o deus da minha peregrinação.
 
Eu que só tive restos e migalhas
e vi cobiça onde diziam haver fé.
Eu que reguei de sangue os campos das batalhas
onde morria sem saber porquê.
 
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)
 
Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.
 
Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
 
Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão).
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.
 
Nem o Gama nem os doze de Inglaterra.
O herói sou eu: aqui sem pão nem glória.
Eu camponês no mar e marinheiro em terra
Todo-O-Mundo e Ninguém. Sou eu que faço a história.
 
Quem foi que fez de mim este estrangeiro
Este sem pátria a quem a Pátria dói?
Eu que fui camponês poeta e marinheiro
eu que fiz Portugal quero saber quem foi
 
Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974
 



30 novembro 2024

sebastião alba / ninguém meu amor

 
 
 
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obriga-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
 
 
 
sebastião alba
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



29 novembro 2024

jean genet / o condenado à morte




 

                                                          a Maurice Pilorge, assassino de vinte anos
 
 
O vento que rola um coração no pátio dos recreios, um anjo que soluça preso numa árvore, o pilar de céu que o mármore retorce, abrem portas de emergência à minha noite.
 
Um pobre pássaro que agoniza e o travo da cinza, a memória de um olho adormecido na parede e este doloroso punho que ameaça o firmamento, descem-me o teu rosto à palma da mão.
 
Mais duro e leve que uma máscara, o teu rosto tem na minha mão mais peso do que a jóia em dedos de um receptador quando a mete ao bolso; está afogado em pranto. É sombrio e feroz, coberto por um elmo de folhagem verde.
 
Tens o rosto severo: és um pastor grego. Sempre a fremir dentro das mãos que fechei. Com uma boca de morta onde os olhos são rosas e no nariz há o bico, talvez, de um arcanjo.
 
O gelo cintilante de um pudor maldoso que polvilhava o teu cabelo com um aço de astros claros, e te coroava a testa de espinheiros do canavial, que mal sagrado sabe desfazê-lo se o teu rosto canta?
 
Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero tão forte que uma dor bravia e desvairada aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso de luto?
 
Esta noite não cantes aos “Latagões da Lua”. Mais vale, ó garoto de ouro, seres princesa pensativa de uma torre, a sonhar com o nosso pobre amor; ou aquele grumete loiro que vigia no cesto da gávea,
 
Que à noite, entre marinheiros em cabelo caídos de joelhos, desce para cantar na ponte a “Ave Maris Stella”; todos a agarrar no membro que salta, já, em mãos de larápio.
 
 (...)
 
 
 
jean genet
o condenado à morte
genet, seguido de o condenado à morte
de jean genet
yukio mishima
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1986





 

28 novembro 2024

joaquim manuel magalhães / paremos nas aparências

 
 
Paremos nas aparências,
pareces dizer com os teus olhos
eivados de noite, sedentários.
Falta a este amor que força
Do amor? E o falcão
voa muito baixo, sob muros.
 
Estar sozinho é o preço
duma vida? Um horizonte
de mágoa nas estrelas.
O silêncio cruza tão distante
entre o teu desterro e a minha
exclusão. As ruas nocturnas
serão nossas alguma vez?
 
É a morte que nos faz viver?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990
 



27 novembro 2024

henrique risques pereira / há sempre um comboio que parte

 
 
 
Há sempre um comboio que parte
de algures em qualquer parte do mundo
 
Há sempre um cais com gente
ansiosa da viagem para parte incerta
 
Há sempre um futuro com destino
que a gente do cais não conhece
 
Dentro deste comboio louco
vou eu em viagem dentro de mim
 
No cais alguém fica à espera
de um comboio que já partiu
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




26 novembro 2024

antónio osório / não é a tristeza um dom


 

Não é a tristeza um dom,
e eu não a tinha.
 
Meus pais deram-me aquilo
que podiam, alma
da sua diversa.
 
Sou eu, neste almofariz,
que esmago sementes minhas
e procuro velhos remédios.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982
 



 

25 novembro 2024

elio pecora / a lua surgiu, redonda

 
 
 
A Lua surgiu, redonda, e distraiu-nos
(na janela sobre a magnólia),
estava quase a dizer: “Não és tu o amor.
Eu só quero agarrar-te, ter-te
por uma eternidade que não meço”.
Correram os dias, a Lua surgiu de novo
(no vento leve, sobre a magnólia)
e disseste-me: “Parto amanhã.”,
com a voz de quem não quer ferir,
enquanto afunda no ventre uma faca.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008