24 outubro 2024

natércia freire / canção do verdadeiro abandono

 
 
 
Podem todos rir de mim,
Podem correr-me à pedrada
Podem espreitar-me à janela
E ter a porta fechada.
 
Com palavras de ilusão
Não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
Não tem vislumbres de além.
 
Não sou irmã das estrelas,
Nem das pombas, nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
De bicho que sofre as pedras
E se desloca de rastros.
 
 
 
natércia freire
rio infindável (1947)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 




23 outubro 2024

pablo neruda / esquecido no outono

 
 
Eram sete e meia
do Outono
e eu esperava
não interessa quem.
O tempo
cansado de estar ali comigo
a pouco e pouco desandou
e deixou-me ali sozinho.
Fiquei então com a areia
do dia, com a água,
sedimentos
duma semana triste, assassinada.
 
– Que foi? – perguntaram-me
as folhas de Paris. – Quem é que esperas?
 
E assim fui várias vezes humilhado
primeiro pela luz que se apagava
depois por cães, por gatos e gendarmes.
 
Fiquei só
como um cavalo só
quando no pasto não há noite nem dia,
apenas sal do Inverno.
Fiquei
tão sem ninguém, tão vazio
que choravam as folhas,
as últimas, e depois
caíam como lágrimas.
 
Nunca antes
nem depois
fiquei tão de repente só.
E foi à espera de quem,
não me recordo,
foi tolamente,
passageiramente,
mas aquilo
foi a instantânea solidão,
a mesma
que se tinha perdido no caminho
e num instante como a própria sombra
desenrolou o seu infinito estandarte.
 
Então saí daquela
esquina louca
com os passos mais rápidos que tive,
foi como se fugisse
da noite
ou duma pedra escura e roladora.
Não é isto que eu conto
mas passou-se quando estava à espera
de não sei quem um dia.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




22 outubro 2024

julio martínez mesanza / a torre no descampado

 
 
Só à ordem aspiro, e à beleza
que em mulher não cabe. Só aspiro
à vida que não duvida, que cumpre
sem sombras os desígnios, sem intriga.
Eu quero a claridade das espadas,
a claridade de potentes formas.
No descampado a torre me deslumbra,
para a torre vou. Mesmo que me aguarde
a desdentada boca do escárnio,
a fraude da palavra do sofista,
a machadada dupla que o traidor ergue
um corpo de mulher ou só um corpo,
da torre avistarei a ignomínia.
 
 
 
julio martínez mesanza
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



21 outubro 2024

rui caeiro / apanhar as palavras mesmo do chão

 
 
 
Apanhar as palavras mesmo do chão
já pobres esvaídas maltratadas
 
e reuni-las no poema para que entre si
façam calor e companhia como os velhos
 
aqueles da casa de repouso de Camarate
em volta da mesa a beber a laranjada
 
aos golinhos – e a morte e a morte
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





20 outubro 2024

josé gomes ferreira / nos muros adolescentes

 
 
XV
 
Nos muros adolescentes
apareciam na cal
iniciações sagradas,
riscos, traços, curvas,
sóis estreitos de Vénus
– toda a geometria suja
dos alfabetos obscenos.
 
Sinais que nos guiavam
de muro em muro
para os lençóis de lama secreta
nas catacumbas.
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
memória-I 1957-1958
portugália
1973



19 outubro 2024

al berto / doze moradas de silêncio

 
 
5
 
hortelã bravia esmagada contra o rosto
seiva morna sobre o ventre emaranhado nas trepadeiras
secas latas de conserva detritos de comida
um fio de azeite escorre da boca
 
louras flores murchas girassóis ladeando a estrada
jasmins de leite germinando no estrume
animais irreconhecíveis atravessam as veredas da noite
com um estrondo de lume que estilhaça
 
talvez seja uma hora da manhã em todos os relógios
longe daqui… preparam-se fogueiras pelas praias
silhuetas de corpos separam-se das chamas
caminham à procura doutros fogos segredados
 
alvéolos de sémen ardem… os sexos
em combustão no seio molhado de nocturnas conchas
rostos incendiados flutuam na frágil espessura da alba
regressam lentos à outra margem diluída na bruma
inacessível
 
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

18 outubro 2024

josé carlos barros / vilar de perdizes

  
 
Vinhas do outro lado da fronteira com a navalha de cortar o pão de centeio atada a uma corrente de prata, um lenço de algodão com cheiro a raparigas
 
e urzes,
  
meia-onça de tabaco, uma guitarra, dois embrulhos com rebuçados para quatro namoradas, um livro de poemas com as folhas por abrir, apenas
  
contrabando de luz e de mundo, como dizias.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020



17 outubro 2024

joaquim cardoso dias / a casa






 

 

nesses dias
havia tanta roupa branca
a secar às janelas
que a criança saía nua
de casa e ia sentar-se
no muro alto
e grosso do quintal
 
contente por estar alta
fazendo bolas de sabão
 
e ria ria alto
porque a sua alegria
era maior do que a dos próprios
dentes
entre o cheiro
da roupa branca
a secar nas janelas
 
 
 
joaquim cardoso dias
o preço das casas
de uma porta à outra
gótica
2002
 


 

16 outubro 2024

victor oliveira mateus / viagem

  
 
acolho a primeira palavra
as primeiras frases
os verbos irregulares
 
desperto-te para as traições
para as esperanças
tantas vezes misturadas
 
ouço-te as dúvidas os recomeços
dou-te instrumentos
para o resto do caminho
 
e invoco por fim
o tudo que m’envolve
ó sopro ordenador do mundo
– energia que sempre permaneces –
podes levar-me quando quiseres
estou pronto
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




15 outubro 2024

pedro de queirós tavares / comparsas

 
 
Comparsas, lá teremos de nos conformar a esta dimensão.
Importa que nos lembremos do pacto: também deste lado da
sarjeta não cobiçaremos as cerejeiras. Além de cerejas, muitas dão
granadas. Algumas com a cavilha encravada – nos dirão – mas
todas prontíssimas para nos rebentarem na boca.
 
Aqui, tal como de onde viemos, rebentam-nos com a boca para
que nos doa falar.
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





14 outubro 2024

tomás sottomayor / do seio da noite arqueada

 
 
 
Do seio da noite arqueada
Taciturno sorvo o leite negro
De tudo o que se perdeu.
Ajoelho-me sob o peso da tua mão
E aguardo o sinal para que a minha
Se mova sem hesitação
Para arquear um novo céu.
Tenho um desejo insular
Por mundos invisíveis.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021
 



13 outubro 2024

luís filipe parrado / a chuva, os trabalhos, os dias

 
 
 
Foi tudo o que aprendi: límpida e generosa é a chuva.
Molha a delicada cambraia dos senhores e os andrajos do camponês,
inunda os lábios gretados dos amantes,
lava as mãos impunes dos cobardes,
a folha caduca da perene não distingue.
Poupa ao lavrador o trabalho e a despesa de regar os pomares.
Com um pouco de sorte e de espanto
também este ano
abundarão as sacas de laranjas e de romãs
na tua arrecadação.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 




12 outubro 2024

klaus merz / a minha aposta

 
 
não coloco as minhas esperanças
no vermelho luminoso
do zarcão.
os pintores
são para mim demasiado buliçosos,
as suas cores demasiado escandalosas.
 
eu confio
nos valores eternos,
ponho as minhas esperanças na ferrugem
que actua subterraneamente,
no seu vermelho terroso e quente,
na sua substância granulada
que certamente
nos sobreviverá.
 
 
 
klaus merz
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021