24 setembro 2024

paul celan / cristal

 



 

 
Não busques nos meus lábios a tua boca,
nem diante do portão o forasteiro,
nem no olho a lágrima.
 
Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho,
sete corações mais fundo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. João barrento e y. k. Centeno
relógio d´água
2023








23 setembro 2024

mário cesariny / hoje, dia de todos os demónios

 
 
 
hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros
 
 
ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir
 
 
preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado
 
 
Sem Jeito Para o Negócio
 
 
 
mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



22 setembro 2024

joão cardoso vilhena / regresso aos mistérios

 



 

 
A memória de não ser amado
ascende no calor do verão
como escapar ao laço do outro?
 
As aves por exemplo será
que aprendem a sua forma alada
na angústia do embate na rede?
 
 
 
joão cardoso vilhena
um dia serei humano
editora urutau
2024
 




21 setembro 2024

carolina amaral / um colo ficou vazio

 



 

 

Um colo ficou vazio,
intacto na noite,
quando te foste em direção a outras noites,
e o silêncio ficou a arejar-me o peito
que já não tem o teu contorno,
 
que é só escândalo escuro.
 
 
 
carolina amaral
escândalo escuro
editora urutau
2024



20 setembro 2024

faiha abdulhadi / no meu país

 



 

 
Num país que não é o meu
O vento continua a soprar
As árvores dão frutos
O sol nasce
O rio corre
O mar ruge
A chuva cai
As pessoas continuam a rir
As pessoas continuam a errar
 
No meu país
O vento espera pela licença de soprar
O rio espera pelo direito de se derramar
O galo espera pela permissão de cantar
A chuva espera a regalia de chorar
 
No meu país
Só o coração bate sem autorização
Só a liberdade paira sem pré-aviso.
 
 
 
faiha abdulhadi
(palestina)
trad. regina guimarães
nervo/22
colectivo de poesia
setembro / dezembro 2024
 
 
 

 


19 setembro 2024

herberto helder / ode do desesperado

 
 
 
A morte está agora diante de mim
como a saúde diante do inválido,
como abandonar um quarto após a doença.
 
A morte está agora diante de mim
como o odor da mirra,
como sentar-se sob uma tenda num dia de vento.
 
A morte está agora diante de mim
como o perfume do lótus,
como sentar-se à beira da embriaguez.
 
A morte está agora diante de mim
como o fim da chuva,
como o regresso de um homem
que um dia partiu para além-mar.
 
A morte está agora diante de mim
como o instante em que o céu se torna puro,
como o desejo de um homem de rever a pátria
depois de longos, longos anos de cativeiro.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996




18 setembro 2024

gastão cruz / on melancholy




 

 
A beleza protege-te destrói-te
A ela te submetes dela vives
Ama-la sobre tudo Queres vê-la
nos corpos e nos versos dela filhos
 
Para que te proteja tu proteges
a pele em que se expõe húmida e íntima
e se te acorda acordas e repetes
os símbolos perdidos da poesia
 
Vês os versos Protege as cicatrizes
e as glórias da pele entristecida
Por elas vives e por elas vive
a beleza que crias e te cria
 
 
 
gastão cruz
campânula
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009



 

17 setembro 2024

armando silva carvalho / armas brancas

 
 
 
4.
 
Ouve os pigmentos bíblicos. Acorda
nas entradas da recriação estilística.
Númen – a ave de ouro que lambuza o bico
nos altares altíssimos entorna sobre ti
a grossa baba.
Teus périplos felizes debaixo da canção
recebes da condensação polifónica.
Saem do fogo as figuras da escrita
raízes de metal absorvem-te os sintomas.
A febre sopra sobre a tua carne
o linho para sempre inexpressivo.
Debruças-te no rebordo inflamado
e as vozes irrompem do tecido aberto.
És um gume sonoro sob o céu da boca
e escutas os irmãos que gritam da Colina
o Pai está morto alcançámos a Mãe
na encosta do Texto.
Óperas vocalizos o lavar dos dentes
árvores que sobem de feridas doidas
com o sabor dos trinos e a guerras dos dissídios.
À beira de um riacho serás o ancião que se ocupa das
sílabas. Sinecura sem cura os brilhos mitigados
afagam-te os artelhos
e gerações cansadas pesam nos teus ombros.
 
 
 
armando silva carvalho
armas brancas 1977
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



16 setembro 2024

josé carlos ary dos santos / nocturno

 



 

 
Como se fosses noite e me atirasses
Uma corda de músculos e rosas.
Como se fosses noite e me deixasses
Deslumbrado com todas as sombras,
Com todos os silêncios,
Com todos os passeios de mãos dadas com o
                                               [impossível,
Com todos os minutos,
Os lentos, os belos, os terríveis minutos
Que se escoam com a angústia nas escadas.
Como se fosses noite e acordasses
Todos os olhares furtivos aos bancos vazios,
Todos os passos hesitantes que ninguém segue
Mas que deixam na rua deserta,
Na cidade ausente,
O arabesco triunfal dum arcanjo que passa,
O rasto vitorioso dum condenado que dança,
Rindo dos deuses que o julgaram.
 
Como se fosses noite e arrastasses
O tule hierático e vermelho da cauda de todas as
                                                      [prostitutas
Que desafiam o mistério, roçagando,
A ganga de todos os operários
Que sofrem o mistério, fumando,
O cabeção ingénuo de todos os marujos
Que sonham o mistério, ondulando,
A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos
                                                         [os invertidos
Que inventam o mistério, desesperando,
E a carne, o sangue,
O cheiro a suor e o sono de todos os vadios,
De todo os ladrões que dormem nas esquadras
E têm o mistério, ousando!
 
Ah! Se tu fosses noite e me atirasses
A um poço de membros e de raiva
Onde plantas carnívoras crescessem
E onde Deus – se existisse – talvez me abrisse os
                                                           [braços!
 
 
 
ary dos santos
a liturgia do sangue (1963)
ary, obra poética
edições avante!
2017




15 setembro 2024

judite canha fernandes / abril



 

 
já estivemos apaixonados
por tua longa cabeça de orquídea
e pelo banho de gozo
de tuas construções aéreas.
 
abril
acho que nos esquecemos
das ruas sem vigia
da tua coragem.
dos corpos loucos               invencíveis
de astronautas apavorados com a carta astral da libertação.
 
entre nossas mãos de areia,
o pequeno umbigo de mareantes
que por um breve dia                fez corar de vergonha
todas as espingardas do mundo.
 
 
 
judite canha fernandes
carta de amor ao pesadelo
editora urutau
2023
 



 

14 setembro 2024

wladimir vaz mourão / galo branco

 



 

 
existia,
depois do mar,
das cidades poluídas e dos morros verdes,
um homem que me disse que não morreria.
 
lembro,
através das lembranças
que não são feitas de dias e anos,
mas de constelações,
desse homem
com um boné manchado de suor
e os olhos pequenos atrás dos óculos de sol.
ele me falava de nomes raros,
do prazer de beber a cachaça envelhecida
e dos desenhos que fazia –
gostei da cachaça, todavia não dos traços.
 
hoje,
aqui onde o negro e o branco
só se mesclam no céu –
recebo a notícia que
o corpo desse homem
aduba as canas-de-açúcar.
 
 
(para e., amigo que desenhou o rótulo da cachaça galo branco)
 
 
 
wladimir vaz mourão
para quem está se afogando, crocodilo é tronco
urutau
2023
 



13 setembro 2024

juan vicente piqueras / lembrança de amanhã

 



 

Ficámos nas fotografias todos juntos
(vivos, mortos, tanto faz, sim, todos juntos)
com caras de turistas já cansados
de percorrer cidades invisíveis
à procura das mães. O turismo
é uma forma alegre de orfandade.
Pagar para sofrer, perder países.
 
Fartos de tirar fotografias, epitáfios
a cores, e felizes por nada compreendermos,
regressamos a casa, já era tempo,
carregados de recordações e desejos
de não voltar a sair,
de nos deixarmos de viagens e histórias,
de não termos de percorrer o mundo
perguntando ao mundo,
com um mapa na mão,
onde estamos, quem falta, aonde vamos.
 
O caos tem um calendário rigoroso
e o nada, festas para guardar.
 
Trouxe-te estas fotografias, vê-as.
 
São uma estranha lembrança da morte.
 
 
 
juan vicente piqueras
o quarto vazio
trad. manuel alberto valente
assírio & alvim
2024




12 setembro 2024

cesário verde / deslumbramentos

 




 
 
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
 
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
 
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
 
Ah! Como m’estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
 
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
 
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
 
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d´Áustria mostrava aos cortesãos.
 
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
 
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
 
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024