22 junho 2024

adília lopes / arte poética

 



 

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
os nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo d enão chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
 
 
adilia lopes
um jogo bastante perigoso (1985)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004



21 junho 2024

adam zagajewski / na beleza criada pelos outros

 
 
Só na beleza criada pelos outros
existe consolação, na música
e nos poemas dos outros
Só os outros nos podem salvar,
mesmo que a solidão tenha o sabor
do ópio. Não são o inferno, os outros,
se os espreitarmos de manhã, quando
têm a testa limpa, lavada pelos sonhos.
Por isso cismo muito sobre a palavra
que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»
é uma traição a qualquer «tu», mas,
em troca, um poema de alguém fielmente
oferece uma fresca, moderada conversa.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017



20 junho 2024

jean cocteau / situação de mallarmé

 



 
Uma juventude presa do maravilhoso e do cinismo prefere não importa que médium de feira, não importa que escroque, a este modelo de homem honesto, de burguês íntegro, de aristocrata consumado, de operário fervoroso, de joalheiro: Mallarmé. Humano, demasiado humano. Confesso, pela minha parte, desaparecida a sombra que o nimbava, não ver nele senão o modern-style da joalharia.
 
Se Mallarnmé lapida pedras preciosas, são, em vez de diamante, uma ametista, uma opala, uma gema da tiara de Herodíades no Museu Gustave Moreau.
 
Rimbaud roubou os seus adiamantes: mas onde? É esse o enigma.
 
Mallarmé, o sábio, fatiga-nos. Merece a dedicatória suspeita das Fleurs du Mal, que Gautier não merece. Rimbaud conserva o prestígio da receptação, do sangue; nele, o diamante é talhado em vista de uma efracção, com o único fim de cortar um vidro, uma montra.
 
Os verdadeiros mestres da juventude entre 1912 e 1930 foram Rimbaud, Ducasse, Nerval, Sade.
 
Mallarmé influencia mais o estilo do jornalismo.
 
Baudelaire vai ganhando rugas, mas conserva uma juventude surpreendente.
 
Cada um dos versos de Mallarmé foi, desde o nascimento, uma bela ruga fina, estudiosa, nobre, profunda. Esse ar mais de velhice que de eternidade impede a sua obra de envelhecer aqui ou ali e confere-lhe uma aparência de conjunto enrugada, análoga à das linhas das mãos, linhas que fossem, porém, decorativas, em vez de proféticas.
 
 
 
jean cocteau
ópio
trad. miguel serras pereira
difel
1984





19 junho 2024

steve klepetar / futuro

 



 
A minha mãe lia
o futuro enquanto limpava,
 
vendo as nossas vidas
todas desenrolar-se
 
reflectidas em poças de água
escorregadias no chão da cozinha.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




18 junho 2024

roland barthes / incidentes

 
 
 
 
 
Velho cego, mendigo de «djellaba» e de barba branca: imponente, impassível, antigo, sofocleano, odeonesco, enquanto o adolescente que mendiga para ele projecta no rosto toda a carga expressiva que uma situação assim justifica: a expressão torturada, repuxada por um esgar descendente, ostenta a dor, a miséria, a injustiça, a fatalidade: Vejam! Vejam!, diz a cara da criança, vejam aquele que já não pode ver.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 


17 junho 2024

roger wolfe / a avaria

 
 
Dar amor, já sei.
Mas não funciona.
 
Mostrar piedade, já sei.
Mas não funciona.
 
Eliminar o Eu, já sei.
Mas não funciona.
 
Acabar com a cobiça,
já sei.
Mas não funciona.
 
Dar
a outra face,
já sei.
Mas não funciona.
 
Viver o presente (e não o futuro
nem o passado), já sei.
Mas não funciona.
 
Que fazer, então?
Não sei.
E não funciona.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 


16 junho 2024

jacques prévert / tantas florestas

 
 
 
Tantas florestas arrancadas à terra
e massacradas
devastadas
devoradas pelas rotativas
Tantas florestas sacrificadas com vista ao fabrico de
                                                     pasta de papel
de milhares de jornais que chamam anualmente a
                                           atenção dos leitores
para os perigos da desflorestação dos bosques e das florestas
 
 
 
jacques prévert
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





15 junho 2024

hans-ulrich treichel / estação abandonada

 
 
O caminho pedregoso,
onde os autocarros azuis
moem os eixos, desde que o comboio
já não passa.
 
O braço negro de uma bomba
que deita uma sombra de forca.
 
Cardos de um cinza prateado
crescem como flores mágicas entre os
carris; o depósito de água
engole pó.
 
Que despedidas
poderia haver aqui,
que abraços.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
 



14 junho 2024

antónio franco alexandre / duende

 
 
5.
Lambe-te o fogo cada ruga e pêlo,
e a água onde mergulhas logo encerra
em fresca e fina luva o corpo inteiro
e sem pudor algum te abraça e beija.
Mesmo o vulgar sabão, no tanque absorto,
pela nudez da carne se insinua
e entre as coxas flutua, como um peixe
mais branco, que outra sombra continua.
Mas eu, quando me cubro do teu rosto
e sou somente de água e fogo feito,
melhor ainda te conheço e quero,
e nada no teu corpo me é alheio:
em cada grão de pele te desejo,
em cada ruga leio o meu destino.
 
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002
 



13 junho 2024

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
1
 
Podias ensinar à mão
outra arte,
essa de atravessar o vidro;
 
podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;
 
ou então a ser água,
onde de tanto olhá-las
as estrelas caíam.
 
 
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 




12 junho 2024

manuel antónio pina / [uma casa]

 




 
Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
na ausência das palavras calar-se.
 
Não, com nenhuma palavra abrirás a porta,
nem com o silêncio, nem com nenhuma chave,
a porta está fechada na palavra porta
para sempre.
 
O azul é uma refracção na boca, nunca o tocarás,
nem sob ele te deitarás nas longas tardes de Verão
como quando eras música apenas
sem uma casa guardando-te do mundo.
 
 
 
manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012




11 junho 2024

vasco graça moura / picasso visto do porto

 
 
1
 
musa, quando você se despe no meu quarto
e à meia-luz o seu olhar faísca atrás de um ombro
e muito de costas nuas o cigarro vicioso desponta a um canto da pintura
                                                                                          [agressiva
e as suas pernas se arqueiam antecipando a música,
 
o movimento do colar faz-me lembrar Baudelaire
mas você cita t. s. eliot e outros cerebrais
e a sua roupa esvoaça em mariposas lânguidas
e ritmos a camisas despregadas
 
e você, rapsoda, ainda há pouco
semitaconeando insinuava projectos
do alto desses saltos que transmitem
esguia vibração aos seus artelhos.
 
partilharei consigo ocupações pontuais,
tenho agora de escrever sobre picasso
visto do porto, encomenda tão óbvia
que até se corre o risco de cair no melancólico.
 
 
 
vasco graça moura
os rostos comunicantes
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 



10 junho 2024

ruy belo / nau dos corvos

 




 
Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea do cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras
 
 
 
ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004