01 junho 2024

edmundo de bettencourt / amor

 
 
Amas de mais, não possuis
o amor que a todos vem.
Quem ama tudo não pode
ser amado por alguém.
 
Amor de tudo! – ninguém,
mas coração mais fecundo
que, por beijar doutro modo,
só tarde vive no mundo!
 
De longe o sol nos aquece,
de longe nos abre focos.
– Ó cinco chagas de Cristo,
no espelho de misantropos!
 
Só chega ao Sol quem tem asas
para um voo longo e leve
– quem antes que a luz o cegue
chega lá desfeito em brasas!
 
 
 
edmundo bettencourt
o momento e a legenda (1917-1930)
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999
 




31 maio 2024

eduarda chiote / equívocos

 



 
Repetimo-nos.
E à força demolidora do quotidiano
vamos entregando a subtileza
da pele e o apagar dos astros: a servidão – esse
congénito equívoco.
 
E o gelado assombro das presenças
que nos colocam na fronte o tríplice sinal de
lucidez.
 
E nenhuma idade
a tal horror é poupada. Porque, e para além
do pó e o apodrecer das cinzas,
nem mesmo, acredita, a brutal invenção
do espírito.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001



30 maio 2024

sandra costa / manual da vida breve

 
 
8.
 
Desconheço o que vai para além
do cheiro das flores, o que vai para além
do sol abrindo as manhãs entre nuvens,
o que vai para além dos musgos crescendo
em telhados abandonados, o que vaia para
além das sombras que se encontram
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021





 

29 maio 2024

nuno guimarães / palavras que rebentam

 



 
Palavras que rebentam. Aflorando
a pedra, a solidão, deslizam, vagas,
gramaticais, roendo inconformadas
as arestas, o atrito, puras. Quando
 
nos líquidos, no éter, na distância,
diluem-se e morrem acabadas.
Não nos corpos, nas rugas, nas arcadas:
combatem, rumorosas, cal e cântico.
 
É difícil atarem corpo e vida
aos que vivem e morrem subjacentes
subjazendo, talhados para mina.
 
Mas despertadas, bem ou mal medidas,
rebentam em ogiva, funcionais
chamas supostamente adormecidas.
 
 
 
nuno guimarães
as palavras
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 
 
 

 


28 maio 2024

luís quintais / com o tempo




 
Compassos bem medidos desfazem-se.
Partículas radioactivas decaem.
 
Alguns medem forças
que se aniquilam reciprocamente.
 
Quando o frio os invade,
aquecem-se com gestos abrasivos.
 
As mãos fecham-se
sobre frondes e iluminações.
 
Aos que cultivaram desertos,
só lhes restaram desertos.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024



 

27 maio 2024

eugénio lisboa / inventário de perdas



 

 
Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava
 
força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,
 
ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!
 
Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.
 
19.03.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022




 

26 maio 2024

david mourão-ferreira / serenata do adolescente



 

 

Que doentia claridade
a que me invade e me obsidia,
durante a noite e à luz da tarde,
à luz da tarde, à luz do dia!
Que doentia aquela grade
de insone e ténue claridade,
sob a avançada gelosia!
 
Passo na rua e nada vejo
senão a luz, a luz e a grade.
Ó lamparina do desejo,
porque ardes tu até tão tarde?
E às vezes surge, entre a cortina,
aquela sombra vespertina
que me retém nesta ansiedade.
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971




 

25 maio 2024

anacreonte / fragmento




 
Deita-me água, rapaz, deita-me vinho;
e tece-me grinaldas de mil flores.
Meu coração arrisco, depois disto,
para lutar então com o próprio Amor.
 
Fragmento 396 Page
 
 
 
anacreonte
vozes da poesia europeia – I
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 163
janeiro - abril 2003
fundação calouste gulbenkian







 

24 maio 2024

francesco petrarca / soneto

 



 

Onde colheu Amor o ouro, e de que veio,
para tecer tais tranças assim louras?
E de que espinho as rosas? E as ondas
de que praia as torou pra suas veias?
 
Onde pérolas tais em que vicejam
doces palavras, puras, peregrinas?
Onde tanta beleza, e tão divina,
dessa fronte que ao céu provoca inveja?
 
De que arcanjos provém, e de que esfera,
seu celeste cantar que me consome
o que, não consumido, já é pouco?
 
E de que sol nasceu a luz eterna
dos olhos seus, que paz e guerra movem,
calcinando-me o peito em gelo e fogo?
 
 
«Onde tolse Amor l’oro, et di qual vena…»
 
 
 
francesco petrarca
vozes da poesia europeia – II
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 164
maio - agosto 2003
fundação calouste gulbenkian





23 maio 2024

gabriele d’ annunzio / meio-dia

 



 

 
No seu auge o dia.
Sobre o mar etrusco
paira um verde pálido
como o dessepulto
bronze das estátuas.
Tudo tão tranquilo
que à roda não vibra
nem da brisa o hálito;
sequer um arbusto
se move na áspera,
solitária praia.
 
Bonança, calor,
em tudo silêncio.
O Verão, maduro,
cobre-me a cabeça,
como sendo um fruto
que a mim me pertença,
e colher eu deva
com a minha mão,
e sugar eu deva
com a minha boca.
Nem um só vestígio
de humana presença.
Nada que se ouça,
se me ponho à escuta.
Longe a dor dos homens.
Nem já tenho nome.
Sinto que o meu rosto
se doura de um ouro
que é meridiano;
e que a minha loura
barba já reluz
como a própria areia.
Mesmo o delicado
desenho da onda
na orla da praia
me está no palato,
na palma da mão
regendo-me o tacto.
Toda a minha força
na areia se expande,
no mar se difunde:
minha veia, o rio;
minha fonte, o monte;
o bosque, o meu púbis;
meu suor, a nuvem.
E vivo na flor
de esteva das dunas,
nas pinhas, nos bagos
dos juncos; nas algas,
na flora marinha;
nas coisas exíguas,
nas coisas imensas;
na areia contínua,
de cumes longínquos.
Só ardo e rebrilho.
E nem tenho nome.
Montanhas e ilhas,
bosques e baías
perderam os nomes
que outrora lhes dei
ou tinham outrora
em lábios humanos.
E eu próprio sem nome
nem destino humano:
já só Meio-Dia
agora me chamo.
Vivo em tudo, tácito,
tal e qual a Morte.
 
Toda a minha vida
se tornou divina.
 
«Meriggio», vv. 1-10, 55-109
Alcyone (1904)
 
 
 
gabriele d’ annunzio
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003
fundação calouste gulbenkian





22 maio 2024

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 
 
 
11.
 
Foi no último verso que me perdi.
Nessa última nuvem onde a morte
já não é matéria nem sequer
possibilidade capaz de desarrumar
a ordem natural das coisas.
Nessa última nuvem onde todos
os vocábulos são exílios
e nem com pássaros
dobras as margens dos rios
ou as árvores em flor
construindo paisagens.
Nessa última nuvem onde te abeiras
do tempo derramado
sobre o leito
das aparências
e tudo quanto é distância
ou a inconveniência do amor
se compõe como um equívoco.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022



21 maio 2024

martín lópez-vega / relação de reparações efectuadas na igreja do bom jesus de braga em 1853 segundo consta da fatura do mestre de obras

 
 
 
Recolocar uma estrela caída.
Um galo novo para São Pedro e pintar a crista.
Pôr uma pedra na funda de David.
Dourar e pôr penas novas na asa esquerda do Anjo da Guarda.
Brincos novos para a filha de Abraão.
Adornar a Arca de Noé.
Correção dos dez mandamentos.
Renovar o céu e lavar a lua.
Retocar o purgatório e acrescentar almas novas.
Avivar as chamas do inferno e vários arranjos nos condenados.
Limar as unhas do diabo.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




20 maio 2024

luis alberto de cuenca / não vale a pena

 
 
 
Não vale a pena viver tanto e tão
heroicamente como ontem à noite.
Foi o vazio (com a mãe, a ansiedade)
quem desenhou as fronteiras que tivemos
de atravessar, as tórridas veredas
por onde fomos a nenhuma parte,
julgando que éramos os reis da festa.
Não vale a pena a dor que as luzes trazem
de manhã, se não é para nos salvar.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018