14 janeiro 2024

paul celan / tübingen, janeiro

 
 
Olhos con-
vertidos à cegueira.
A sua - «um
enigma é puro
brotar» –, a sua
memória de
torres de Hölderlin à tona de água, no esvoaçar
de gaivotas.
 
Visitas de marceneiros afogados com
estas
palavras a afundarem-se:
 
Se viesse
se viesse um homem,
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre, sempre,
só só.
 
 
 
paul celan
trad. joão barrento
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




13 janeiro 2024

alex susanna / minotauro

 



 

 

Sobre nós cai a noite
e nada podemos fazer para nos determos
um ao outro:
tudo desliza suavemente, em silêncio
– mãos, vestidos, palavras –
e abraçamo-nos profusamente
nunca sabendo, no entanto,
quem é a praia e quem a onda,
quem é o vento e quem a casa,
quem é o ramos e quem a neve,
quando precisamente é o momento
em que tudo somos ao mesmo tempo.
 
 
àlex susanna
les anelles dels anys
tradução egito gonçalves
hífen 9 stembro 1995
cadernos semestrais de poesia
poesia hispânica
1995
 




12 janeiro 2024

nicanor parra / recordações da juventude

 
 
O certo é que eu ia de um lado para o outro,
Às vezes chocava com as árvores,
Chocava com os mendigos,
Abria passagem através dum bosque de cadeiras e mesas,
Com a alma num fio via cair as grandes folhas.
Mas tudo era inútil,
Cada vez me afundava mais numa espécie de geleia;
As pessoas riam-se dos meus arrebatamentos,
Os indivíduos agitavam-se nas suas poltronas como algas movidas
                                                                                                 pelas ondas
E as mulheres dirigiam-me olhares de ódio
Fazendo-me subir, fazendo-me descer,
Fazendo-me chorar e rir contra a minha vontade.
 
De tudo isto resultou um sentimento de asco,
Resultou uma tempestade de frases incoerentes,
Ameaças, insultos, juramentos que não vinham ao caso,
Resultaram uns movimentos desgostantes de ancas,
Aqueles bailes fúnebres
Que me deixavam sem respiração
E me impediam de levantar a cabeça durante dias,
Durante noites.
 
Eu ia de um lado para o outro, é verdade,
A minha alma flutuava nas ruas
Pedindo socorro, pedindo um pouco de ternura;
Com uma folha de papel e um lápis entrava nos cemitérios
Disposto a não me deixar enganar.
Dava voltas e voltas em torno do mesmo assunto,
Observava de perto as coisas
Ou num ataque de cólera arrancava os cabelos.
 
Desse modo fiz a minha estreia nas salas de aula,
Como um ferido por uma bala arrastei-me pelos ateneus,
Transpus o limiar das casas particulares,
Com o fio da língua procurei comunicar com os espectadores:
Eles liam o jornal
Ou desapareciam atrás de um táxi.
 
Para onde ir então?
Àquela hora o comércio estava fechado;
Eu pensava num pedaço de cebola que vira ao jantar
E no abismo que nos separa dos outros abismos.
 
 
 
nicanor parra
a tradução de poesia
relâmpago, revista de poesia nº 17
trad. albano martins
outubro 2005





 

11 janeiro 2024

christoph wilhelm aigner / scardanelli 1989

 
 
Um gato preto dorme no jardim
Fechado inacessível enrolado
A Torre afasta de si o tronco de um salgueiro
Os seus cabelos colam-se ao pescoço do Nécar
As nuvens correm por trás do sol
Holder o gato preto volta-se num esgar e troça
Lá dentro já não há quem resmungue atenciosamente
Aguardo devorar uma alma-alimento
 
 
 
christoph wilhelm aigner
três frases
salzburg. otto müller verlag, 1991
trad. maria teresa dias furtado
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005
 



10 janeiro 2024

josé mário silva / a minha janela, aos 19 anos

 
 
 
Eu espreitava o limoeiro, a sua copa
larga ocupando o quintal que a minha
avó fechava à chave quando saía (por
causa das galinhas). Para trás do muro,
só havia telhados de zinco, portões com
ferrugem, traseiras de prédios com roupa
estendida, armazéns, carros ao abandono
e gritos no crepúsculo, das mães aflitas
chamando os filhos para jantar. Eu via
tudo aquilo, sentado à mesa com uma
folha de papel em branco, esperando
o que chega quando não se espera.
Às vezes apareciam versos sem norte,
palavras vagabundas, para murcharem
logo ali – ecos de ecos. E eu olhava o
céu, as nuvens perfeitas, o vento em
turbilhão através do quintal, aquele
limoeiro com melros nos ramos e
frutos acesos na tarde como sóis.
 
É tão difícil de esquecer, a melancolia.
 
 
 
josé mário silva
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




09 janeiro 2024

mário cesariny / estação

 




 

 
Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
 
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
 
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




08 janeiro 2024

r. lino / mapas

 
 
1.
 
Esta terra.
Mostrar tempos que o tempo tem.
Que silêncio rasgou
quem não calou o que disse?
A espécie ao sabor dos climas,
e dos valores. Milhares de anos
recobriram as grandes forças
e, depois, os homens,
e as mulheres, e as crianças,
os seus animais de luta e os de guarida,
o nome dos seus deuses
o rasto das suas mortes
o sopro das suas crenças.
Festas, medos, raptos,
raivas, guerras, cânticos inteiros.
Um crescimento… É o que dizemos,
– nos fios da memória
As feridas abrem os destinos que criamos –
 
 
 
r. lino
mapas
políptico
companhia das ilhas
2016
 



07 janeiro 2024

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 



 

II
 
Pobre como um gato do Coliseu
vivia num bairro feito de cal
e poeira, longe da cidade
 
e do campo, diariamente sufocado
num autocarro desconjuntado:
e cada ida, cada regresso
 
era um calvário de suor e ansiedade.
Longos passeios numa névoa quente,
longos crepúsculos diante dos papéis
 
empilhados sobre a mesa, entre ruas de lama,
muros baixos, tugúrios caiados
sem caixilhos nas janelas e cortinas a servir de portas…
 
Passava o vendedor de azeitonas, o trapeiro,
vindos de qualquer outro bairro,
com a empoeirada mercadoria que parecia
 
fruto de furto, e rostos cruéis
de jovens envelhecidos no meio dos vícios
de quem tem mãe dura e esfomeada.
 
Renovado pelo mundo novo,
livre, um ardor, um hálito
que não sei descrever dava à realidade
 
humilde e suja, confusa e imensa,
que fervilhava nessa periferia do sul,
um sentimento de serena piedade.
 
Uma alma, em mim, não apenas minha,
uma alma pequena naquele imenso mundo,
crescia, revigorada pela alegria
 
de quem amava, não sendo embora amado.
E a esse amor talvez ainda de rapaz,
tudo se iluminava, heroicamente,
 
mas amadurecido já pela experiência
que nascia aos pés da história.
Estava no centro do mundo, naquele mundo
 
de bairros tristes, beduínos,
de planícies amarelas polidas
por um vento que nunca se cansava,
 
vindo do mar quente de Fiumicino,
ou do campo, onde a cidade se perdia
no meio dos tugúrios; naquele mundo
 
sobre o qual só podia reinar,
espectro quadrado e amarelento
na amarelenta bruma,
 
trespassado por mil fiadas iguais
de janelas com grades, a Penitenciária,
entre campos antigos e adormecidos lugarejos.
 
Os papéis e o pó que a brisa
como cega arrastava aqui e ali,
as pobres vozes sem eco
 
de mulheres humildes vindas dos montes
Sabinos, do Adriático, e ali
acampadas, com catervas
 
de filhos enfezados e duros,
gritando, de camisetas esfarrapadas,
calções desbotados e queimados,
 
os sóis africanos, as chuvas violentas
que transformavam as ruas em torrentes
de lama, os autocarros nos finais de linha
 
enterrados no seu canto
entre um último rasto de erva branca
e alguma lixeira ácida e ardente…
 
era o entro do mundo, e o meu amor
por tudo isso estava
no centro da história: e nessa
 
maturidade que nascia
e era portanto ainda amor, tudo estava
prestes a tornar-se claro – tudo era
 
claro! Aquele bairro nu ao vento
já não era romano, nem meridional,
nem operário, era a vida
 
na sua luz mais actual:
vida, e luz da vida, cheia
do caos não ainda proletário,
 
como pretende o obsceno jornal
da célula, o último
panfleto que se agita: osso
 
da existência quotidiana,
pura, por estar demasiado
próxima, absoluta, por ser
 
por demais miseramente humana.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




06 janeiro 2024

cesare pavese / revelação

 
 
 
O homem só volta a ver o rapaz do magro
coração, absorto a espreitar a mulher que se ria.
O rapaz erguia o olhar para aqueles olhos,
onde os rápidos olhares estremeciam nus
e estranhos. O rapaz recolhia um segredo
naqueles olhos, um segredo como o regaço escondido.
 
O homem só estreita no coração a recordação.
Os olhos desconhecidos queimavam como queima a carne,
vivos de húmida vida. A doçura do regaço
palpitante de cálida ansiedade transparecia
naqueles olhos. Brotava angustiado o segredo
como sangue. Tornavam tremendas as coisas
na luz tranquila das árvores e do céu.
 
O rapaz chorava na noite submissa
ralas lágrimas mudas, como se já fosse homem.
O homem só reencontra sob o céu distante
Aquele olhar recatado que a mulher depõe
no rapaz. E volta a ver aqueles olhos e aquele rosto
recomporem-se submissos ao sorriso habitual.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


05 janeiro 2024

maria gabriela llansol / I. curso de silêncio

 




 

 
a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sinto a copa da árvore verdejante, à entrada de um ramo; vindo de um ponto movimentado da vila próxima,
um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de cristal. Está centrado sobre um objecto que deixou ______ o estudo do texto em que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?)                 o estatuto de nómada. Sem situação social no conhecimento. As folhas adoram vagamundos. A vagueação. E as daquele plátano, e árvores limítrofes, não são excepção à regra. assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuando, por impulso do ar. É um homem quotidiano, sem nenhum sinal de ilustração nas mãos e/ou no roso. Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio.
 
Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto,
que se desfaz na espuma do texto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006
 




04 janeiro 2024

leonard cohen / metade do mundo perfeito

 



 

Ela vinha ter comigo todas as noites
E eu cozinhava, servia-lhe chá
Devia ter então mais de trinta anos
Ganhara dinheiro, vivera com homens
 
Deitávamo-nos para dar e receber
Debaixo do mosquiteiro branco
E como não começámos a contar
Vivemos mil anos num só
 
As velas ardiam
A lua descia
A colina polida
A cidade leitosa
Transparente, ligeira, luminosa
Revelando-nos a nós os dois
Nesse plano fundamental
Em que o amor não tem vontade, controlo,
Limites
E se encontra metade do mundo perfeito
 
 
 
leonard cohen
a chama
alerta azul
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




03 janeiro 2024

luís miguel nava / a roupa

 
 
Entre o meu corpo e a roupa que o reveste há uma distância enorme. Dir-se-ia que a roupa está nas insondáveis profundezas dum abismo em torno de cuja protecção os meus órgãos se expusessem aos caprichos do céu. Bloqueiam-me as vértebras palavras de cujo sentido o próprio sol precisa para brilhar. Sai-me do corpo o tempo num só vómito, o que torna transparente todos os meus órgãos. A roupa é uma incógnita, esmagada assim entre a esperança e as torrentes.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020
 



02 janeiro 2024

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCLXXXIX
 
Não procures o encontro com a verdade
porque cercá-la é já nega-la um pouco.
A verdade é vivê-la, não pensá-la
como se te soubesses já de fora.
Se a verdade procuras como gamo
a caçar, com as armas que o costume
te deu, sabe que voltarás sem caça.
Que sabes tu dos usos da verdade?
É fêmea? É macho? Em que fojo dorme?
Onde bebe? Onde pasce? Onde procria?
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021