14 outubro 2021

amadeu baptista / taxa de juro

 
 
 
Vigio estas ruínas, roubador de secretas implosões
                que tecem os segredos da noite. De longe observo
os que dulcificam e pervertem este rumor nocturno, a visão
incendiária de um lenço suspenso sobre miríades de insectos
                agonizantes. Esses animais empolgam-me, são
insondáveis ruídos dentro da minha boca, o meu sangue perscruta-os,
                excede-os na lucidez da maldição, desejo-lhes
                o visco que soltam na irrealidade da passagem, amo-os
como se fossem voláteis transparências de um universo voraz
que secretamente reúne a profetização e as vítimas
                em torno do abismo. Tudo é sagrado,
a destroçante imagem desses corpos que o esquecimento ilude,
                a fragrância de todas as substâncias lancinantes
que pulsam sob a terra, esse imperceptível murmúrio de escuridão
                que nas têmporas se esconde, consumindo
a imóvel opacidade que percorre a loucura. Com as mãos
                escavo este lugar sagrado de claridade e torpor,
                o deserto imperturbável das órbitas silenciosas
destes mortos, a película de impaciência e luz que os nossos
                dedos tocam,
                devastadoramente.
 

 

amadeu baptista
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991




13 outubro 2021

rui caeiro / do amor

 
 
Do amor não conhecemos os espaços
largos, manhãs, luares, jardins
 
Espeluncas de aluguer (serve assim?)
e lá dentro o esplendor dos corpos nus
 
– Está aqui a chave, é ao fundo
do corredor, à esquerda
 
(E lá dentro o esplendor dos
corpos nus)
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





12 outubro 2021

jack gilbert / tentar ter algo de sobra

 
 
 
Havia uma grande ternura na tristeza
quando lá ia. Ela sabia o quanto
amava a minha mulher e que não tínhamos futuro.
Éramos como feridos a ajudarem-se mutuamente
enquanto esperávamos pelo fim. Agora, pergunto-me
se percebíamos quão felizes eram essas
tardes dinamarquesas. Não falávamos a maior parte do tempo.
Costumava tomar conta do bebé enquanto ela tratava da
casa. Mudava-lhe a fralda e fazia-o rir.
Dizia sempre Pittsburgh suavemente antes
de o atirar ao ar. Sussurrava Pittsburgh com
a minha boca contra a orelhinha e atirava-o
mais alto. Pittsburgh e a felicidade lá no alto.
A única maneira de deixar o mais pequeno dos rastos.
Para que toda a vida o seu filho sentisse uma
alegria inesperada quando alguém falasse da arruinada
cidade de aço na América. Relembrando de cada vez
algo porventura importante que se perdeu.
 
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020





11 outubro 2021

styliános kharkianákis / o cidadão de hoje

 
 
As relações com os semelhantes
Tornaram-se tão complicadas
Que as únicas actividades que não exigem
conselho jurídico
São os desmaios, o enjoo e as lágrimas.
 
 

 
styliános kharkianákis
hinos modais, 1984
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução de manuel resende
língua morta
2021






10 outubro 2021

bernardo soares / não o amor, mas os arredores é que vale a pena...

 
 
Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...
 
A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.
 
s.d.
 


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






09 outubro 2021

jorge figueira / premeditação do tempo frio

 
 
o chão este tarzan
é vosso este reino
ministros
Vim com um fumo de outrora
afinal era uma páscoa de
cigarros
e eu já não era
inquilino ou
Sábio.
Vejo agora o animal cacto
a árvore verde
a fruta medieval
a chuva sincopada
de culpa
que dilui
 
As envolventes
são a sinistra assinatura
da vossa permanência
o pequeno silêncio
os braços pesados
as incumbências do destino
central.
Eu por aqui usarei sempre
a túnica mais suave
letras mortas e
garrafais.
Sempre que eu estiver a bordo
de uma despedida
lembrar-me-ei desta retícula
de azar-chão-cimento
intranquilo
 
E pasmarei sempre com a
desenvoltura em
espiral fechada
do animal-cacto
(carnaval inútil
olhos mortos
de riso).
 
 


jorge figueira
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 




08 outubro 2021

alain bosquet / três poemas

 
 
2
Deus diz: «Entre mim e eu
sinto que me falta
uma espécie de doçura;
por isso improviso um colibri,
algum orvalho,
uma ilha muito leve,
um canto de amor, um sonhar intermitente
onde um outro deus se passeia.»
 
 

alain bosquet
trad. de eugénio de andrade
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





07 outubro 2021

françois jacqmin / o outono

 
 
Os pássaros arrancaram
as portas do espaço
 
Aboliram a perspectiva
do frio.
 
O êxodo faz-lhes as vezes de pensamento.
Já avistam o mar.
 
A rosa já nada espera
da sua época
 
Os amantes já não assombram
os lugares suscitados
pelo seu perfume
 
O infinito está sem forças
 
A paixão da morte
é sem análogo
nos seres que amaram.
 
 
 
 
françois jacqmin
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021

 
 
 
 
 
 

06 outubro 2021

konstantinos kaváfis / as almas dos velhos

 
 
Dentro dos velhos corpos estragados
quedam-se as almas dos velhos.
Que tristes estão as pobres
e como aborrecem a mísera vida que arrastam.
Como a temem perder e como a amam
essas almas confusas e contraditórias
que – tragicómicas – se acolhem
à velha pele gasta.
 
 
1901
 
 

 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017




05 outubro 2021

mary oliver / sei de alguém

 
 
Sei de alguém que beija como
uma flor a abrir, mas mais fugazmente.
As flores são doces. Têm vidas
curtas, beatíficas. Oferecem
muito prazer. Não há
nada no mundo que se possa dizer
contra elas.
Triste, não é, que tudo o que possam beijar
seja o ar.
 
 
Sim, sim! Nós somos os afortunados.
 
 
 
 
 
mary oliver
felicidade
tradução luís matos
flâneur
2021
 





 
 

04 outubro 2021

mar becker / o fim de uma estação

 




*
 
o fim de uma estação
 
as janelas semiabertas, as casas, a chuva, que parou há pouco
 
o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma
poça d’água, na calçada
 
os espelhos
 
a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma
cidade ou um deserto
 
os rostos, os rastros
 
as cinzas dos nossos mortos espargidas
o pó que se ergue no voo da mariposa
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




 

 


03 outubro 2021

miguel serras pereira / a que se cala

 
 
Entre dois dias tu és a que se cala
no silêncio das mãos sonhando a minha voz
e a distância do tempo enquanto o tempo
transborda o mundo e o mundo fica só
 
Viver é morrer sem fim enquanto nasces
Mas o regresso encontra intacta a despedida
e intacta e branca o tempo enquanto passa
a noite que o transborda entre dois dias.
 
 
 
 
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993




 

02 outubro 2021

catarina nunes de almeida / cântico vagaroso

 

 
Os amigos são assim fazem grandes viagens
fazem músicas que já passam na rádio
fazem filhos e sopas de pacote
fazem filas nas repartições de finanças
fazem pequenas hortas no terraço
fazem trinta anos
mas no fundo estão ainda de giz na mão
a separar as palavras graves das palavras esdrúxulas
estão ainda nalgum canto escuro do varandim
de caderno pousado no colo
a aprender a travar o primeiro cigarro
 
 
 
catarina nunes de almeida
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015