08 maio 2021

ana paula tavares / somos aquelas antiquíssimas pessoas

 
 
Somos aquelas antiquíssimas pessoas
que ainda movem os lábios em latim
não só para dizer ave maria mas canis canis
ou carpe diem mais desejo que processo
sabemos os tempos dos verbos
 
 
 
ana paula tavares
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019





07 maio 2021

joan margarit / não há milagres

 
 
Chovia desleixadamente.
Dezanove de Outubro, nove da noite.
A Joana chegava assustada à cirurgia
por nós cercada, que ficámos
na sala mal iluminada junto aos elevadores.
Dizem que ela, numa desesperada tentativa
de salvar-se, disse amo-te ao cirurgião.
Esperávamos a fada que nos devolvesse
a Joana tranquila, como sempre,
os seus olhos cintilantes de confiança.
Às onze horas, olhando pela janela,
as gotas da chuva resvalavam
pelo vidro como se fosse pela noite.
A noite era uma lâmina de gadanha.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




06 maio 2021

david lehman / objectivo

 
 
“Qual é o objectivo dos seus poemas?”
Fico contente por me terem perguntado isso
aqui de pé na aula de Inglês do décimo primeiro ano de Mr. Ferry
na Lake Forest High School
tenho pensado muito sobre “objectivo”
Caminhar com ar determinado em Nova Iorque
tem vantagens óbvias no frio da noite ventosa
e é ainda melhor quando não se trata de fingimento
sabe-se para onde se está a ir
de dia para dia
e sabe-se quando termina
é pois como uma história com princípio meio e fim
não podiam contudo dizer-me o objectivo
da humilhação no ensino secundário e eu não podia dizer-lhes
a finalidade deste sonho em que nos levantamos destas carteiras,
vamos para a universidade de onde saímos advogados, fracassos ou
                                                                                               [donas de casa
e quando acordamos não temos recordação alguma
deste encontro às escuras mas todavia persistirá
e trará repouso à nossa alma
 
 
david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




05 maio 2021

maria f. roldão / pequeno sangue

 


Dou sangue ao vestido.
Abro-o com o coração desabotoado
e enfio-me na primeira trégua do linho.
 
Desço o vestido pela cabeça, ombros,
abro-o nas ancas onde fica a levitar
com a pele das fibras e beijar a pele.
 
Fotografo o vestido
e tu transforma-lo em fumo de catarse
e oferece-lo aos deuses do silêncio.
 
Desenhas uma casa com
o meu corpo. Dispo-me.
 
Engomas o sangue que despi.
 
 
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021




 




04 maio 2021

sophia de mello breyner andresen / sequência

 
 
I
 
Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade de coisas como Ponge diz
Não constrói
 
 
II
 
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas tomar em minha voz a veemência das coisas
Fazer do mundo exterior substância da minha mente
Semelhante ao que devora o coração do leão
 
Vê o que viste
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
 
 
III
 
Mimesis
E vós Musas filhas da memória
De leves passos no cimo do Parnaso
Suave a brisa a fonte impetuosa
– Princípio fundamento rosto-início
Espelho para sempre os olhos verdes
As longas mãos as azuladas veias
 
1989
  
 
 
sophia de mello breyner andresen
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





03 maio 2021

vicente valero / de um diário de bordo

 
 
Durante muitos anos viajei.
A minha juventude foi o mar, as ilhas
estrangeiras, a noite, os álcoois
amigos na coberta, as lembranças.
Fugia. E encontrava-me no vaivém
cativo dos dias e dos anos.
Conheço o suor frio nas manhãs
nubladas do outono, no naufrágio
perpétuo do desejo e das palavras.
Mas também aquele outro mais frio
na humildade de um porto, ao chegarem
lentamente os barcos e descobrirem,
ao sol, qual uma chaga na memória,
a pátria quebrada, o coração cansado
de povos milenários que não acabam
nunca de derrotar o implacável
monstro da paixão e da pobreza,
senhor das lendas mais antigas.
Depois este mar – ah, quem poderá esgotá-lo –,
lenta herança de sal, de impuros sonhos,
sempre este mar, o mesmo sempre, o único,
abraçando tudo com suas fábulas
belas de facas, fome e deuses.
Fugia. E encontrava-me sempre em cada porto.
Durante muitos anos viajei
e não saí nunca de mim mesmo.
 
 
 
 
vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

 





02 maio 2021

herberto helder / lugar

 
 
VII

Pequenas estrelas que mudam de cor, frias
pêras ao alto
de raízes queimadas, ainda doces, profundamente
cor de turquesa — eu tudo sei.
Como a época leve que entra,
como as crianças que despertam e sorriem
lapidarmente, e morrem
sem que se note, na própria clareira viva
do seu sorriso.
A onda que envolve os peixes, e dos peixes
absorve o rápido estremecimento — eu tudo sei.
Porque mudo, queimo-me.
Porque as ondas me batem na boca.
 
Pequenas estrelas passadas de cor para cor, pêras
que rolam de um degrau
para outro degrau de amadurecimento. Enquanto
estou deitado sob o céu brutal, e a noite
avança terrivelmente plácida.
E por baixo a terra vive, abstracta
e espalhada.
Quero dizer: eu tudo sei.
Junto aos ossos em gelo bate uma veia
que sobe, quente; que em silêncio ascende
e bate na língua: — Eu amo o pão que amadurece
no fogo.
Amo a ideia que a morte alimenta
agora na noite. Cinza sobre pepitas encarnadas.
O açafrão nas pedras.
 
Cerro os olhos para ouvir durante toda a noite,
e todo o mês, e recomeçando no interior
da minha vida — o sangue.
Amarga e difusa loucura do sangue
cercado pelo mundo — eu tudo sei.
Humildade e esgotamento e, quando
a boca estremece, tarefa e depois solidão.
Sei como se pensa obscuramente.
Vejo que a luz se encurva nos campos de urtigas,
e a mão se encurva na luz.
A mão que retém a faca e desliza
sobre a mesa ao encontro do pão maduro.
Porque eu amo a fome.
 
E eis que todo esse puro tempo passado
se levanta, enquanto respiro debaixo da luz.
Com a dor dentro, levanta-se; com
um forte delírio e a luz imensa — e eu sei.
Ouçam: é neste país onde cheiro
um ramo de sal, a terra pútrida.
Amo a penumbra de uma cara, a brancura
parada de um sorriso no meio da água
profundamente esquecida — sei
tudo, tudo.
Que nada existe e as coisas nascem no tocar
de minha mão inundada.
E é preciso esperar enquanto se morre,
e fica o campo sob o céu que se queima
preciosamente.
Tenho agora a idade — e sei tudo.
Digo: minha alegria é tenebrosa.
 
E eu desejaria levantar-me levemente
sobre as paisagens que se enchem de chuva
apaixonada.
Desejaria estar em cima, no meio da alegria.
e abrir os dedos tão devagar que ninguém sentisse
a melancolia da minha inocência.
Tanto desejaria ser destruído
por um lento milagre interior.
 
Cegar com o rosto contra um ramo abrupto
de relâmpagos.
Eu sei. Quero dizer: eu amo
essa morte no meio da luz, entre crisálidas e gotas,
à noite, de dia —
quando o mês se extingue num supremo amadurecimento
 
 
 
herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996




01 maio 2021

luís veiga leitão / nós que viemos dos cárceres da noite

 
 
Nós que viemos dos cárceres da noite
Aljube, Peniche, Caxias
Noite de pedra, roupa de pedra vestidos
 
Nós que fomos as estátuas da tortura
golpeados a fogo, mortos a frio
Nós que roemos meio século de exílio
Nós, forçados mineiros dos poços do silêncio
Silêncio sulfúreo, asfixia da voz
 
Tivemos, à flor rubra desse dia,
a primeira respiração
a primeira água da alegria
 
 
 
luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012





30 abril 2021

josé gomes ferreira / a morte de d. quixote

 
 
III
 
Pobres, gritai comigo:
 
Abaixo o D. Quixote
com cabeça de nuvens
e espada de papelão!
– E viva o Chicote
no silêncio da nossa Mão!
 
Pobres, gritai comigo:
 
Abaixo o D. Quixote
que só nos emperra
de neblina!
– E viva o Archote
que incendeia a terra,
mas ilumina!
 
Pobres, gritai comigo:
 
Abaixo o cavaleiro
de lança de soluços
e bola de sabão
no elmo de barbeiro!
– E vivam os nossos Pulsos
que, num repelão,
hão-de rasgar o nevoeiro!
 
 
 
josé gomes ferreira
a morte de d. quixote 1935-1936
poesia I
portugália
1972





29 abril 2021

vladimir maiakóvski / nós outros

 
 
Nós deslizamos sob as palmeiras, cílios da terra,
para perfurar as fronhas dos desertos,
para apanhar os sorrisos dos couraçados –
nos lábios ressequidos dos canais.
Alto aí, cólera!
Para a pira das constelações inflamadas
não permitirei que façam subir a minha velha mãe enfurecida.
Caminho – corno do inferno – embriaga os roncos dos condutores
       de camiões!
Que a embriaguez dilate as narinas fumegantes dos vulcões!
Vamos atirar-nos às nossas amadas para colocar nos seus chapéus as
       plumas descoloradas dos anjos,
cortar a cauda dos cometas para que delas façam jiboias.
 
 
vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019

 




28 abril 2021

abelardo linares / como foi curta a noite

 
 
Cheiram a ti os lençóis, meu amor, e ainda
está aberto em cima da mesa o teu livro
e há roupa pelo chão e discos e tabaco.
 
Embora já não estejas aqui, os meu braços ainda te procuram.
E neste fingimento de abraçar-te na almofada
persigo a tua lembrança, a tua cintura, os teus ombros.
 
O teu corpo não foi um sonho e talvez na casa de banho
a minha escova me espere, molhada pela tua boca,
ou húmidas toalhas que secaram o teu cabelo.
 
Cheiram a ti os lençóis. O quarteirão desperta.
Há vozes na rua e luz detrás da persiana.
Deve ir alto o sol. Como foi curta a noite.
 
 
 
 
abelardo linares
trípticos espanhóis 1º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998





 

27 abril 2021

r. lino / livro de rigor

 
 
um
 
o tempo é manso e não escorre
enquanto um homem
segue pelo caminho dos homens
aguçada como o vento
no rigor de quem se vê
cai a morte
entre a dor e a certeza
 
 
 
r. lino
livro de rigor
políptico
companhia das ilhas
2016





26 abril 2021

joaquim manuel magalhães / pedra em negativo

 
Enquanto ia o dia escurecia
foi de noite que te encontrei.
A ti, passarinheiro. No cinzento
entre cabos de tensão e guindaste
e o fantasma em arco-íris
das vigas a cinzel.
 
Na cadeira de pau negro e alto espaldar
estava o teu casaco. Subia sobre os móveis
o seu aroma de febre
onde tantas vezes antes que chegasses
escondi a cara que me parecia inchar de castração.
 
Voltando-me para a despedida
encontrei as lágrimas que mudavam em areia
as pálpebras, no escárneo do tempo findo.
Pior. Na certeza do tempo findo com
ainda mais tempo para sofrer o tempo,
o devaste da espera do fim.
 
Quando as cartas chegam (na fronteira mudada
em que já não nos lembra esse que se lembrou,
com aquelas palavras, de nós num anterior momento
em que o esquecíamos) um vitríolo afaga
a retina que perdeu mansamente a ternura.
Dizias que me fui embora sem nada mais te dizer.
E pensava eu que tinhas sido tu a ter partido.
Logros, nuvens inúteis, carregadas de água que desaba
noutro lugar, inóspito, mais real.
 
Ao olhar o rosto definitivamente imóvel,
todo o sangue coagulado, uma pedra a desfazer-se,
 esse objecto medonho
ainda será o corpo pelo qual chorámos,
a quem trouxemos a última chávena, o último
comprimido, o último aterrado sorriso?
Alguma coisa nos afirma que é uma totalidade
diferente; que nada está ali; que não é
por aquilo a nossa dor.
 
Descobrimos que tudo quanto era partiu.
E o que seria? Então o corpo é a alma,
rapaz? A rebentação das artérias a crença final?
 
Potes de barro frísio e de latão,
dois pregos com uma trança de cebolas,
a máquina de moer café no lambril
da escada que sobe para o pátio,
poalha de farinha pelo chão.
A tua mãe tinha a testa descoberta,
os cabelos puxados para trás. Na fotografia.
Sobre a camilha forrada a estopa
segurava miolo de pão e com a esquerda
despejava para um alguidar uma caneca
de leite. O açúcar, os ovos, as compotas
estavam a meio do tampo; e numa cerca,
com um plástico na mão e o cabelo alvo
e a luz amarelecida, estavas tu
com a boca escancarada de choro,
os lábios ainda por formar.
 
 

joaquim manuel magalhães
sloten
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990