02 dezembro 2019

s. kierkegaard / que irá acontecer?



Que irá acontecer? Que trará o futuro? Não sei, não pressinto nada. Quando uma aranha, de um ponto firme, se precipita nas suas consequências, ela vê continuamente um espaço vazio à sua frente em que, por mais que se debata, não consegue encontrar ponto de apoio. Assim sucede comigo – à minha frente sempre um espaço vazio; o que me impele para diante é uma consequência que se encontra atrás de mim. Esta vida está virada ao contrário e é horrível, não se aguenta.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









01 dezembro 2019

vasco graça moura / o mês de dezembro



II
mestria do silêncio dúbias rimas
a música mordida ou as catástrofes
(a arte é hipocrisia da memória)
que são as obras da maturidade

mas as rasuras deixam cicatrizes
e é doce o silvo da respiração
quando o presente aos poucos se degrada
como estas linhas lidas num espelho

podem usar-se as mais escuras sílabas
(alguns rumores que a noite devorasse)
porque é no inverno que as coisas se repetem
e a coerência do amor foi recordada



vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007





30 novembro 2019

fernando pinto do amaral / ondas



Outra vez por aqui. Vou sentar-me,
já não espero ninguém, é muito tarde,
sempre foi muito tarde e para mim
é escassa a eternidade. Cada sonho
é o último sonho e o céu
deixou de obedecer aos próprios deuses.

Outra vez o deserto. De que música
cerco ainda os teus olhos? Que mentiras
hei-de ensinar ao corpo e à sua
verdade?

Depois de todas as febres do amor
já nem o amor da própria febre. Apenas
um gesto sem memória e o rumor
das ondas.



fernando pinto do amaral
acédia 1990
dominei
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





29 novembro 2019

herberto helder / lugar



I
Uma noite encontrei uma pedra
oh pedra pedra!
verde ou azul, de lado, como se estivesse morta.
Encontrei a noite como uma pedra inclinada
sobre o meu corpo
puro, profundo como um sino.
Vi que havia em mim um pensamento
inocente, uma pedra
quando se entra na noite pelo lado onde
há menos gente.
Ou era um sino de um futuro
maior silêncio, tão
grande silêncio para se habitar só em gestos.

Aí eu poderia erguer-me na ponta
dos pés e ficar para sempre, como uma chama
que a noite viesse alimentar com sua
própria matéria que se queima. Noite —
— lenha para nossa leveza humana. Encontrei
uma coisa caída, talvez madura, um pouco
metida pela terra dentro.
Alguma coisa dessas coisas da imobilidade, objecto
executado pelo sono,
onde eu passava os dedos apavorados e doces.

Som ou degrau que eu beijaria,
elevando-se da terra, não como uma árvore
ou uma mulher
desenvolvida em sua atmosfera de doçura
e dolorosa exaltação. Alguma coisa
subida de raízes mais milagrosas, que se não
exprimia com a brevidade
subtil de folhas, ou a quente agudeza de dedos espalhados.
Algo não levantado inteiramente da obscuridade
de uma vida sepulta,
e não jacente por sobre o qual milhares de estrelas
rolassem as asas de gelo.
Uma coisa numa existência demorada entre
o êxtase e a força sombria
das estações.

                        Encontrei uma pedra pedra
que não era uma colina com o mês de março em volta.
Nem era a boca materna aberta
debaixo dos rios podres.
Uma coisa para se encostar a cabeça, oh não
para morrer. Para alguém subir
e de onde não era possível gritar. Uma pedra
sem folhas, um sino
sem pensamento. Encontrei algo que não andava
pelos montes nem seria atravessado
por uma flecha. E não sangrava.
Que não se ouvia se cantava. Talvez fosse fria
ou vivesse abrasada sobre a ilusão.

Era verde na noite quando se vem de longe,
ou azul, ou verde pelo milagre
que não existe. Ou então
era clara de certas flores que se dobram.
Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada,
no meio de um silêncio global.
Encontrei em mim essa clareira desarrumada na seiva,
como se um poço distante ressoasse,
ou como
se os dias se fossem aproximando da minha idade
triunfante.
e eu me calasse e movesse o rosto aberto
pela luz para a abstracta violência
da solidão.

                   Encontrei
um animai adormecido, uma flor hipnotizada,
uma viola ferozmente taciturna.
Era amarela só se eu levantasse a cabeça, ou era
tão escura na infância grande.
Encontrei uma verde pedra cravada no mundo
das pessoas, à entrada da candura,
tão admirável pelo azul da terra dentro.
Uma coisa incompreendida no instante
de morrer para a frente.

Encontrei ondas e ondas contra mim, como se eu fosse
um homem morto entre palavras.
Campos de cevada inspirados no fogo que batiam
nas costas das minhas mãos,
aldeias inteiras cantando sua pureza
quase louca. Encontrei depois o lugar
onde deitar a cabeça e não ser mais ninguém
que se saiba. Uma pedra
pedra seca, uma vida entre muitos dons.
Com as raízes de quem divaga.
Uma pedra sem som como quem se move
sobre os alimentos.

Encontrei como quem arrasta para a noite
um símbolo pesado e ardente.
                                                       Ou a ideia
de uma morte mais leve que o coração sem nada
do amor.
Se me perguntam, digo: encontrei
a lua, o sol.
                    Somente o meu silêncio pensa.

— Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira.



herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996






28 novembro 2019

al berto / trabalhos do olhar



2

ele vai pela ponte
cristal de lua acordado para o grande isolamento da noite
atravessa-a com a língua turva de imagens
sacode os cimos arrefecidos dos montes
desafia o prematuro cio das perdizes
quebra objectos isola-se
caminha dentro de si à procura dalguma chuva suspensa
roça a morte das plantas nas encruzilhadas místicas dos lagartos
atraídos pelo sangue ofegante das raparigas
deita-se
a boca suja devassando a grossa transpiração das raízes

hoje é a última vez que pernoita no meio do vento
talvez regresse a casa dentro do corpo cansado
por isso vai pela ponte
tacteia a saída a um canto da fotografia
e sonolento descobre a pele envelhecida do viajante que foi



al berto
trabalhos do olhar
1979/82





27 novembro 2019

antónio franco alexandre / ocupam-te as nuvens, bem vejo




ocupam-te as nuvens, bem vejo
como te cega a dimensão da água,
como ordenas os quartos e os rios
a mesa da brancura e os limites

na rua continuam perguntando
que nome melhor rima com a boca
bem sei que te distraem os cargueiros
a dobra da janela nos cabelos

um sopro é a avenida o horizonte
rasgado pelo meio


antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983







26 novembro 2019

joaquim manuel magalhães / meu amigo


  
Meu amigo, amigo que depois foste de nós dois,
abençoado de rosto e corpo, guardasses-me tu
na convulsão de tábuas de um abraço,
nessa prisão que na altura não entendi.
Seria agora um galardão, uma honra tão alta
na memória, não apenas uma noite,
dessas curvadas pela despedida. Desse-me Deus
de novo, meu amigo, o torreão, a desordem, os teus passos,
esses laços que podia ser eu a desatar. Nada
em toda a extensão e duração do mundo
desejava mais do que dizer-te: foste
quem naufragou em maior temor e amor
a minha, a nossa – é difícil dizer – vida.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





25 novembro 2019

leonard cohen / não me demorei em mosteiros europeus



Não me demorei em mosteiros europeus
nem descobri por entre as ervas altas campas de cavaleiros
que caíram tão formosamente quanto as suas baladas contam;
não separei as ervas
nem intencionalmente as deixei cobertas de colmo.

Não libertei o meu pensamento para que vagueasse e aguardasse
naquelas grandiosas distâncias
entre as montanhas de neve e os pescadores,
como uma lua,
ou uma concha debaixo da água que corre.

Não contive a minha respiração
para que pudesse ouvir o fôlego de Deus,
nem domei o bater do meu coração com um exercício,
nem tive fome de visões.

Embora o tenha observado muitas vezes
não me transformei na garça,
deixando o meu corpo na praia,
e não me transformei na truta luminosa,
deixando o meu corpo no ar.

Não venerei feridas e relíquias,
nem pentes de ferro,
nem corpos envoltos e queimados em pergaminhos.

Não sou infeliz há dez mil anos.
Durante o dia rio-me e durante a noite durmo.
Os meus cozinheiros favoritos preparam as minhas refeições,
o meu corpo purifica-se e restaura-se a si mesmo,
e todo o meu trabalho corre bem.



leonard cohen
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro 
assírio & alvim
2001







24 novembro 2019

ana hatherly / 463 tisanas



346

A noite deslumbrava tão grande era a cintilação do céu. Penso em ti. Quero escrever-te, enviar-te meus pensamentos, a tranquila diferença longe do meu corpo que explode na minha escrita selvática. Mas depois desisto. A renúncia ao desejo é o mais requintado gozo.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006












23 novembro 2019

virgínia woolf / calor, calor, calor



(1940)
Quinta-feira, 5 de Setembro



Calor, calor, calor. Uma onda de calor que bate recordes, um Verão de recordes, se mantivéssemos um registo este Verão. Às 2 e meia um avião zumbe; passados 10 minutos sereias de ataque aéreo; 20 minutos depois, fim do alerta. Calor, repito; e tenho dúvidas que seja uma poetisa. Uma ideia. Todos os escritores são infelizes. A imagem do mundo nos livros é por isso demasiado negra. Os que não têm palavras são os felizes. Não é uma imagem verdadeira do mundo; apenas uma imagem de escritor. São felizes os músicos, os pintores? É o seu mundo mais feliz? Agora, em camisa de dormir, vou passear nos pauis.



virgínia woolf
diários
trad. Jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018





22 novembro 2019

fernando lemos / ambições



Ambições
não tenho
mas alguém corre sozinho
nos meus sonhos

amargo  medíocre
esta mensagem
torpedos
que alcanço
garantias não tenho
mas alguém
se encontra sozinho
nos meus sonhos


e é tudo


fernando lemos
poesia
porto editora
2019





21 novembro 2019

sophia de mello breyner andresen / descobrimento




Saudavam com alvoroço as coisas
Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manhã



sophia de mello breyner andresen
poemas reencontrados
obra poética
assírio & alvim
2015











20 novembro 2019

aleksandar ristovic / folhas secas



Danton espera pela morte
mas o dia não começa.
Tem a roupa cheia de piolhos
e as botas ensopadas pela chuva.
Na sua cara já há sinais
do seu destino extraordinário.
Ele observa-me a grande distância,
a caminhar debaixo das árvores
e a juntar folhas secas,
com uma vara comprida que termina num espigão.



aleksandar ristovic
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira 
assírio & alvim
2001