Entre as muitas sensações de arte que devo a esta
cidade de Vigo, sou-lhe grato pelo encontro que aqui acabo de ter com o nosso
mais recente, e sem dúvida o mais original, dos nossos poetas.
Mão amiga me havia mandado desde Portugal, para
suavização talvez, do meu exílio, o livro de Alb[erto] Caeiro. Li-o aqui, a
esta janela, como ele o quereria, tendo diante dos meus olhos extasiados o
(...) da baía de Vigo. E não posso ter senão por providencial que um acaso
feliz me proporcionasse, tão cedo empós a leitura, travar conhecimento com o
poeta glorioso.
Apresentou-nos um amigo comum. E à noite, ao
jantar, na sala (...) do Hotel (...), eu tive com o poeta esta conversa, que eu
ansiei poder converter-se em entrevista.
Eu dissera-lhe da minha admiração perante a sua
obra. Ele escutára-me como quem recebe o que lhe é devido, com aquele orgulho
espantoso e fresco que é um dos maiores atractivos do homem, por quem, de supor
é, lhe reconheça o direito a ele. E ninguém mais do que eu lho reconhece.
Extraordinariamente lho reconhece.
Sobre o café a conversa pôde intelectualizar-se por
completo. Consegui levá-la, sem custo, para um único ponto, o que me
interessava, o livro de Caeiro. Pude ouvir-lhe as opiniões que transcrevo, e
que, não sendo, claro é, toda a conversa, muito representam, contudo, do que se
disse.
O poeta fala de si e da sua obra com uma espécie de
religiosidade e de natural elevação que, talvez, noutros com menos direitos a
falar assim, parecessem francamente insuportáveis. Fala sempre com frases
objectivas, excessivamente sintéticas, censurando ou admirando (raro admira,
porém) com absolutismo, despoticamente, como se não estivesse dando uma
opinião, mas dizendo a verdade intangível.
Creio que foi pela altura em que lhe disse da minha
desorientação primitiva em face da novidade do seu livro que a conversa tomou
aquele aspecto que mais me apraz transcrever aqui.
O amigo que me enviou o seu livro disse-me que ele
era renascente, isto é, filiado na corrente da R[enascença] P[ortuguesa] mas eu
não creio...
- E faz muito bem. Se há gente que seja indigna [?]
da minha obra é essa.
O seu amigo insultou-me sem me conhecer
comparando-me a essa gente. Eles
são místicos. Eu o menos que sou é místico. Que há
entre mim e eles? Nem
o sermos poetas, porque eles o não são. Quando leio
Pascoaes farto-me de rir.
Nunca fui capaz de ler uma coisa dele até ao fim.
Um homem que descobre
sentidos ocultos nas pedras, sentimentos humanos
nas árvores, que faz gente dos montes e das madrugadas (...)É como um idiota
belga dum Verharen, que um amigo meu, com quem fiquei mal por isso, me quis
ler. Esse então é inacreditável.
- A essa corrente pertence, penso, a Or[ação] à
L[uz] de Junqueiro.
- Nem poderia deixar de ser. Basta ser tão má. O
Junqueiro não é um poeta. É um [...] de frases. Tudo nele é ritmo e métrica. A
sua religiosidade é uma coisa. A sua admiração da natureza é outra coisa. Pode
alguém tomar a sério um tipo que diz que é (...) da luz misteriosa juntinho ao
altar de Deus. Isto não quer dizer nada. É com coisas que não querem dizer
nada, excessivamente nada, que as pessoas têm feito obra até agora. É preciso
acabar com isso.
- E João de Barros?
- Qual? O contemporâneo... A personagem não me
interessa. Detesto-a, como o futuro e o destino. A única coisa boa que há em
qualquer pessoa é o que ela não sabe.
s.d.
fernando
pessoa
pessoa por
conhecer - textos para um novo mapa
teresa rita lopes
estampa
1990