20 outubro 2019

ernesto sampaio / a única real tradição viva





                Uma tremenda força reacionária cobre de noite a Poesia. Aos raros espíritos que tentam reivindicar para ela os antigos prestígios, o seu poder de encantação, de transposição dos secretos ritmos do mundo, de vidência, magia e ciência, mal lhes chega a força e o tempo para elevar o seu amor um tudo nada acima das paupérrimas formas de vida deste século onde a conjunção tenebrosa da religião, do capital e do resto dispõe de um eficaz arsenal de artifícios para aviltar os homens: técnicas psicológicas para mutilar a tensão inicial que os liga à realidade exterior; coacções económicas para limitar a liberdade propulsora do seu acesso às grandes zonas perigosas onde as forças obscuras arpoadas pela necessidade humana se objectivam, se transformam em realidade tangível; valores, noções e obrigações para torna-los vis degradando o seu sentido do Maravilhoso, substituindo o Amor e as altas circunstâncias da vida que o realizam – único contexto da Dignidade e da Grandeza humanas – por fórmulas obtusas e vulgares que são o penhor do poderio da mediocridade e da miséria moral; enfim, uma religião masoquista para os habituar, para fazer deles cidadãos submissos, viciando-lhes a sensibilidade e fechando-lhes o espírito.
                É esta a orla dum tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao inferno. Mas em todos os tempos, naturalmente, a sua tendência não foi acomodar-se ao sono do tempo, não foi pacificar as querelas e contradições que o uniam, a sua tendência foi exasperá-las. O inferno, a noite, o caos, a natural violência dos monstros, dos dilúvios, das convulsões da terra, dos vapores venenosos das origens sempre foram o crivo onde o pensamento se teve de perder antes de encontrar o porto interdito aos que em vez do universal demandaram o particular, em vez do verdadeiro só puderam ver o comum. Em todos os tempos, também, tal como a água a insinuar-se por entre as falhas das rochas, lá longe, absolutamente a sós, à frente, os guardas-avançados do espírito têm estado atentos às falhas da grande noite que os rodeia, procurando aberturas, espaços iluminados onde possam abrir a estrada da emancipação do homem, num combate árduo pela conquista duma absoluta semelhança entre o que ele é e a mais alta ideia de si mesmo. Foram já dados alguns passos em frente, etapas que nenhum Thermidor, nenhum refluxo reaccionário conseguiu fazer recuar porque foram definitivas, forneceram novas e superiores perspectivas à luta pela interpretação e transformação do homem e do mundo. Em vão se procurará fundamentar validamente qualquer acção que, reclamando-se do conhecimento e da criação, se inscreva fora dos quadros dessa luta. Ela apela para todas as forças objectivas e subjectivas dos diversos modos de actividade libertadora. Apela para a Poesia – função do desejo e raiz do conhecimento, o qual incide sobre a descoberta do elemento que permite ao sujeito organizar-se de maneira a se integrar totalmente no objecto que o reclama, que permite à particularidade de cada homem, num excesso de real, harmonizar-se com a universalidade, como um homem e uma mulher, quando o desejo é tão grande que o contacto dos seus corpos é conhecimento, sem domínio nem escravidão, se harmonizam – no ponto onde toda a energia se cristaliza nessa maravilhosa jóia negra que obriga a perder quem a quiser ganhar, que dana quem por ela se quiser salvar. É essa aceitação dos riscos extremos, mediada pelos danadores-salvadores que interceptam a corrente magnética e a distribuem, que dá aos homens a senha das sucessivas passagens das trevas para a luz, do caótico para o ordenado, da realidade dispersa do sonho para a realidade concentrada do estar acordado.
                Atento a todos os sinais reveladores, o poeta espera acordar. O prémio desta espera, mais ainda do que as partidas e chegadas, é ela própria: sexualização da vida, casamento do homem com o mundo para além de todo o desespero, toda a angústia, toda a merda – cuidadosamente organizada pelos macacos pensantes – que os séculos acumularam enterrando o homem num fosso de miséria e de injustiça. O poeta quer tornar essa espera extensiva à humanidade inteira. É esse – nenhum outro! – o seu compromisso. O sentido e a medida da sua acção ultrapassam de longe todas as soluções de continuidade das condições actuais: é que ele, considerando bons e estimáveis alguns lances do caminho já andado, acha que em verdade ainda está tudo por fazer. Quanto aos que exploram a actual situação (os que não deixam passar), o poeta não pode senão – e da maneira mais activa – desejar o seu extermínio.
                A Moral é a acção da Poesia. Quero dizer: o poeta é exemplar. Ele não pode aceitar que à sua volta se coisifique o homem. Sabe muito bem precisar a sua subsistência da liberdade dos outros, porque sem a crítica engendrada por essa liberdade as suas perspectivas não se definem, ficando ele como uma máquina a projectar um belo filme sobre um espaço vazio; sabe muito bem que sem a disponibilidade condicionada por essa liberdade o trabalho altamente poético de vagabundagem à procura de choques reveladores, transforma-se, de exaltante, em amargurado. Para ele, ser livre é conservar intacta a necessidade da consciência que visa à transformação do estado entre a multiplicidade de estados relativos do ser, que mais se ajusta ao ponto equilibrante onde fundem a lei contingente da matéria e a liberdade do espírito. A preservação dessa necessidade vai de par, nele, com a denúncia de todo os sistema arbitrário cuja estrutura seja precária e pretenda possuir um valor absoluto. Ele tem de descobrir o seu próprio sistema de aferição do real, a sua própria física, arruinado a actual, comportando-se sempre em relação às «verdades» do mundo e em relação à sua própria percepção duma maneira subversiva. Nas condições actuais, não há nada mais miserável do que a «recuperação» social dos poetas, nem há nada mais canino do que o prestarem-se os poetas a uma tal recuperação, ou por envelhecerem ou por não terem sabido manter a distância suficiente, conscientes da sua direcção única: essa «vontade prática» que procura restabelecer os verdadeiros fundamentos da relação homem-mundo e de alguma maneira coincide com a obscura sensação de gravitarmos em volta de um objecto que, mesmo sendo desconhecido, corresponde concretamente à nossa mais íntima e essencial necessidade. Pertence este fenómeno a uma ordem galvanizada de relações interiores tão determinante e incoercível que dificilmente cabe em qualquer esquema da consciência. Trata-se dum desses fenómenos psíquicos mais obscuros e axiais por referência à direcção do espírito, à vibração da sensibilidade e à consciência moral. São as migrações das forças que atravessam a matéria e o espírito, ambos permanentemente animados por um dinamismo a que os alquimistas procuravam descobrir as correspondências e as afinidades que o produzem. O choque, o encontro com esse objecto – condutor duma força que simultaneamente é atraída e se opõe à que nós próprios conduzimos – é susceptível de produzir uma descarga capaz de iluminar, ainda que brevemente, o campo vago eternamente cerrado de bruma onde o que o homem é e o que o homem não é têm os seus «rendez-vous» numa ambiência subitamente prenhe de reminiscências encantadas e infantis. Essa descarga luminosa – a imagem poética tal como a concebo – resulta do choque de forças atractivas puras e ocupa um lugar essencial no esquema motor do surrealismo que, procedendo a uma sensibilização absoluta da relação sujeito-objecto, considera a sensação estética igual à sensação de passagem de corrente e da vibração dessa passagem que pode vir algum remédio para o estado viciado em que se encontram as estruturas da percepção reputadas de normais. Efectivamente, é esse viciamento cuja génese não faremos agora que fundamenta todas as inversões do verdadeiro funcionamento do espírito, especialmente a mania da descrição dos objectos que tanto atenta contra a principal virtude do espírito: reproduzir a virtude das coisas, recriando-as. O poeta, existindo pelo que lhe é reversível, está menos sujeito a esse viciamento que separa a vida latente da vida manifesta. Ele acha (devemos também ao surrealismo a formulação objectiva desse instinto milenário) ser a vida para o contexto de forças que definiremos por destino o que a linguagem é para o pensamento. O poeta sente conduzir a vida e ser conduzido por ela. Crê ser um dever o procurar ler um destino na trama emaranhada dos seus encontros, nas neves da sua existência orgânica, com esse ar das grandes montanhas que «exalta antes de matar», esse ar que já é outro. Da gravidade duma tal concepção da vida, resulta o poeta atribuir aos seus valores a mesma importância que os antigos navegadores davam às conjunções celestes que os orientavam. Esses valores, esses ímans correspondem a necessidades concretas da vida humana. Esses valores puxam o homem, orientam-no, são estrelas que ele utiliza para tirar o seu ponto, pólos magnéticos que se chamam o Sonho, o Amor, a Liberdade – tutelas da única real tradição viva que a Poesia encarna.

1963



ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cudrado
assírio & alvim
1998






19 outubro 2019

calí boreaz / parada





em algum corredor
no labirinto da existência
de repente a gente
para e olha nos olhos da gente
pra ver os anos
o amor
a essência
e os lindos enganos.


calí boreaz
outono azul a sul
ilustrações edgar duvivier e
antónio martins-ferreira
editora urutau
2018





18 outubro 2019

ruy belo / sexta-feira sol dourado



Sexta-feira sol dourado
esperança de solução de todos os problemas
não por à sexta-feira ter morrido cristo
que o poeta aliás comemora a comer bacalhau
ou outro peixe trocado pelos pescadores
que morreram ou morrerão no mar
esse peixe que antes nos chegava directamente
e agora passa pelas mãos do almirante henrique tenreiro
sexta-feira sol dourado
não por à sexta-feira ter morrido cristo
mas por se dispor da semana americana
Agora é que vamos ser felizes
A sexta-feira chega enche-se o peito de ar
a eternidade é não haver papéis
a vida muda vamos contestar
talvez assim se consiga aumentar
a duração média da vida humana
Sexta-feira sol dourado
que alegria ser poeta português
Portugal fica em frente


ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004






17 outubro 2019

herberto helder / teorema


  

         El-rei D. Pedro, o Cruel, está à janela, sobre a praça onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor. Por baixo da janela aonde assomou há uma outra, em estilo manuelino, uma relíquia, delicada obra de pedra que resiste ao tempo. D. Pedro deita a vista distraída à praça fechada pelos soldados. Contempla um momento a monstruosa igreja do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas pousadas na cabeça e nos braços do marquês, e detêm-se em mim, em baixo, em mim que me ajoelhei no meio de um grupo de soldados. O rei olha-me com simpatia. Fui condenado por assassínio da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, alegando que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência castelhana. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri.
       — Preparem-me esse coelho, que tenho fome.
       O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.
       O que este homem trabalhou pela nossa obra! Fez transportar o cadáver da amante de uma ponta à outra do país, às costas do povo, entre tochas e cantos. Foi um espectáculo sinistro e exaltante através de cidades, vilas e lugarejos.
       Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Fico em pé, defronte do edifício. Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu suplício. Distingo também a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.
       — Senhor — digo eu —, agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.
       — Muito bem — responde o rei. – Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.
       De novo me ajoelho entre os pés dos carrascos de um lado para o outro. Ouço as vozes do povo, a sua ingénua excitação. Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal. Estremeço. Foi o punhal que entrou na carne e me cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo, um sulco frio ao longo do corpo – e vejo o meu coração nas mãos de um carrasco. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida junto à minha cabeça, e nela depõem o coração fumegante. A multidão grita e aplaude; só o rosto de D. Pedro está triste, embora nele brilhe uma súbita luz interior de triunfo. Percebo como tudo está ligado, como é necessário as coisas se completarem. Não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto eu ser um assassino e o meu país ser católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante são também criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.
       O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração parece um molusco sangrento. D. Pedro volta-se, a bandeja aparece junto ao parapeito da janela. O rei sorri. Ergue o coração na mão direita e mostra-o ao povo. O sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabeça de um povo assim. Felizmente o rei está à altura do cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.
       Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul de céu acima dos telhados. Uma pomba passa diante da janela manuelina. O cláxon de um automóvel expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pénis. Um moço vai pedir autorização ao rei, mas ele recusa.
       — Só o coração — diz. E levanta-o de novo, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a esta gente bárbara e pura as suas boas palavras violentas.
       Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, os maxilares movem-se devagar. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está agora a meio da praça, com a bata branca, o bigode louro, vendo D. Pedro comer o meu coração cheio da inteligência do amor e da eternidade. O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do plinto de granito. As pombas voam em redor, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. O povo aclama-o mais uma vez, e dispersa. Os soldados também partem. E eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima. Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei estará insone nos seus aposentos, sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez lhe não termine aí a inspiração. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a paixão há-de alastrar pela sua vida, cada vez mais funda e mais pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se do casulo carnal, transforma-se em luz, em labareda, em nascente viva. Entra nas vozes, nos lugares. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do inferno havemos de ficar os três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração em geração. Que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui.



herberto helder
os passos em volta
assírio & alvim
2001








16 outubro 2019

luiza neto jorge / os frutos frios por fora



A vida está cada vez mais cara
no meu tempo a vida
era mais em conta
fazia menos calor
as cidades não mudavam de lugar
corria uma brisa, como uma vassoura.

O fruto, um autómato surpreendido.
Desprendeu-se da casca, que viu?
Um autocarro, um avião, um submarino.
Os frutos frios por fora
são por dentro aquecidos a electricidade.
Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.

No meu tempo o rio corria limpo
como um corredor novo
nadávamos nus
uns pelo meio dos outros
extraíamos um amante do vulcão mais próximo.

A um dos meus o mais novo
o mais próximo da sua idade
matou-o o fumo!

Vivia-se até à última.
A vida era mais em conta; depois
derramaram-se histórias sobre mim
os olhos de Buda destilavam
penicilina, eram o que se chama uns olhos
divinos.

Nunca mais quero animais
em casa. Morriam os animais
comprava-se veneno, matava-se gente.

Muitos amantes dormindo sobre a lava.
Morríamos em ilhas separadas por
um cordão de rios ininterruptos.
Nem tínhamos idade para ser crianças num
continente.

Havia no meu tempo fábricas
sumptuosas. Onde se fabricava uma constelação
exacta e limpa, um amor sumptuoso e seus afluentes,
e ínfimas máquinas purgatórias.
Fabricava-se mais e melhor que hoje.

Não há respeito por ninguém;
por exemplo o diamante
não tem a utilidade de uma jóia:
é só um diamante (para um asceta)
só um dia amante (para um suicida).
Com uma jóia, sim, compra-se o mundo.

No meu tempo mal se via a terra
às escuras. Uma luz satélite, um olho
artificial,
uma luz de fruto verde frio por fora
operava esse milagre, essa visão.

Meu pai, que se ausentara,
sabia que seu pai ia ser morto.
Estendia-se a roupa sobre o fogo.
Crescia o pão largo como uma
ampola de penicilina, em tempo de guerra
de guerrilhas.




luiza neto jorge
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985






15 outubro 2019

leopoldo maría panero / território do medo




Está sozinha a aranha no tear do medo
está sozinha e luta contra as estrelas do medo
e canta, canta a aranha canções ao medo
que dizem por exemplo: o medo é uma
mulher que caminha descalça na neve,
na neve do medo, rezando, pedindo a Deus de
                                                                       joelhos
que não haja sentido, e que
a morte caminhe pelas ruas
nua, oferecendo o seu sexo e a sua mão para
nos acompanhar no Medo.




leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






14 outubro 2019

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci



VI

Vou-me, deixo-te ao entardecer
que, embora triste, tão suave desce
para nós, os vivos, com a luz lívida

que se cola ao bairro na penumbra.
E o transforma. Torna-o maior, mais vazio,
em redor, e, mais ao longe, faz despertar

a raiva de uma vida que do rouco
rolar dos eléctricos, dos gritos humanos,
dialectais, faz um concerto turvo

e absoluto. E sente-se que, naqueles seres
vivos que, ao longe, gritam, riem,
nos seus veículos, nos míseros

casarios onde se consome o falso
e expansivo dom da existência –
a vida não é senão um frémito;

presença carnal, colectiva;
sente-se a ausência de uma religião
verdadeira: não vida, mas sobrevivência

– mais alegre, talvez, do que a vida – como
de um povo de animais, em cujo secreto
orgasmo não há outra paixão

senão a do labor quotidiano:
fervor humilde que dá um ar de festa
à humilde corrupção. Que mais inútil se torna

– neste vazio da história, nesta
ruidosa pausa em que a vida se cala –
um ideal qualquer, mais se revela

a maravilhosa e ardente sensualidade,
quase alexandrina, que tudo tinge
e impuramente ilumina, quando aqui,

neste mundo, algo desaba, e o mundo
se arrasta na penumbra para reentrar
em praças vazias, tristes oficinas…

já se acendem as luzes, constelando
a Via Zabaglia, a Via Franklin, todo o
Testaccio, austero entre o seu grande

e sujo monte, as margens do Tibre, o negro
pano de fundo que, para lá do rio, Monteverde
adensa ou esfuma, invisível, contra o céu.

Diademas de luzes que se perdem,
deslumbrantes, frios, de uma tristeza
quase marinha… Falta pouco para o jantar;

brilham os raros autocarros do bairro,
com cachos de operários às portas,
e bandos de militares vão, sem pressa,

para o monte que esconde, entre aterros
húmidos e secos montes de lixo,
emboscadas na sombra, pequenas prostitutas

que esperam, febris, naquele lixo
afrodisíaco: e, ali perto, entre casotas
proscritas, à beira do monte, ou no meio

de prédios, que parecem mundos, crianças
leves como trapos brincam na brisa
já não fria, primaveril; ardentes

de leveza juvenil, adolescentes morenos
assobiam nos passeios, na bela noite romana
do mês de Maio, numa festa

vespertina; e num rumor festivo voltam a fechar-se
as portadas de ferro das garagens,
quando a escuridão serenou o anoitecer,

e, no meio dos plátanos da Piazza Testaccio
o vento que esmorece em arrepios de vendaval
é muito suave, embora rase ainda os muros velhos

e o terraço do Matadouro, e aí se embeba
de sangue podre, e por todo o lado
remexe restos e cheiros de miséria.

A vida é um sussurro, e os que nela assim se
perdem, perdem-se serenamente,
se de vida têm o coração cheio; e vêem-se

a gozar, míseros, o final do dia; e, poderoso
entre gente tão fraca, o mito renasce
para eles… Mas eu, com o coração consciente

de quem só na história tem a vida,
poderei agir de novo com pura paixão,
se sei que a nossa história terminou?

1954




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005







13 outubro 2019

raul brandão / memórias




[…]

… Outra época maravilhosa em que os amigos são pedaços da nossa própria alma. Formámos um ser. Descobrimos com eles não já o mundo exterior, mas o mundo mais vasto do espírito. Comungámos juntos. Com alguns quebrei, mais tarde, por impaciência, e ainda hoje o sinto. Uma parte do meu ser ficou tão magoada que não gosto de lhe tocar: dói-me sempre. Há-de doer-me até à morte. Mas então a amizade é um sentimento delicioso e com o viço da primeira folha, quando irrompe e estremece.

O mundo, nesse tempo, restringia-se, para mim, à Foz e a Leça, que não separo do pequeno pescador de camisola azul, que me seguia com os olhos deslumbrados – o Nel – e das figuras de António Nobre e de Justino de Montalvão.

Não os separo também do mar, do rio, dos barcos, da atmosfera cheia de cor e de deslumbramento, onde, misturada à poalha do mar, à luz doirada e a todos os reflexos do sol, anda a exaltação da nossa própria alma… Foi num barco que conheci o Justino Montalvão, foi num barco, ao lado dum velho pescador, que conheci o António Nobre, que logo me perguntou se não tinha uma Bíblia que lhe desse.
     – Para que quer você a Bíblia?
     – Para deitar a cabeça, quando for no caixão.

[…]



raul brandão
memórias
relógio d´água
2018






12 outubro 2019

wilson alves-bezerra / vida de gado






6

Este pato representa a indignação das pessoas.

O povo brasileiro é um povo do bem.

O pato, com este olhar de paz,
é a forma brasileira de protestar.





wilson alves-bezerra
o pau do brasil
editora urutau
2018





11 outubro 2019

manuel de castro / poema




A noite líquida     oclusa     vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se da memória

e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos     na inconsciência dos prédios
sobre a cidade     a cidade     a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos     nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo     sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos     baleado
assassinado     corrupto     perdido

o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada     num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia

a noite é um coral magnífico na noite



manuel de castro
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992






10 outubro 2019

rené char / folhas de hipno




38
Deixam-se cair com toda a massa dos seus preconceitos, ou ébrios com o ardor dos seus falsos princípios. Associá-los, exorcizá-los, aliviá-los, muscula-los, amortece-los, depois convencê-los que a partir de certa altura a importância das ideias feitas é extremamente relativa e que, no fim de contas, o «assunto» é um assunto de vida e de morte e não das nuances a fazer prevalecer no seio de uma civilização cujo naufrágio se arrisca a não deixar marca sobre o oceano do destino, é isso que me esforço por fazer aprovar à minha volta.


         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000