18 setembro 2019

joão rebocho / quando quase casaste







quando quase casaste
mandei-te quase
seis meios cavalos
a breve saudação,
eu era só a tua personagem
atravessada no livro
mãos nos bolsos e a profunda
abstração
da turma toda
adormecida,
quase em tua casa a mãe de Dario,
esse também é Alexandre
quando chamou-me Alexandre
quase, disse Alexandre



joão rebocho
o ano ímpar
edição do autor
2019







17 setembro 2019

nuno / blue monday



Chegarás enfim numa tarde
azul. Dir-me-ás que estou velho,
na minha funcionalidade sufocante
de quem viu apenas o caminho como ele pode ser.
Dir-me-ás para beber menos,
que outros, outros, os outros.

Muitos ficaram na sociopatia normal dos cafés
de onde me escrevias nos guardanapos
que sempre esquecias, embalavas, que nem
sempre existiram,
por entre todos os homens que beijaste.

Dir-me-ás ______________
E devolver-me-ás os livros, as respostas
e as palavras que deixei nos teus cabelos,
porque nunca sequer bastou escrever
o mais sublime poema de amor.

Sabíamos desde o início que nada ficaria, e
ainda assim:
                      - não se pode recusar nunca o sofrimento.




nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019






16 setembro 2019

rafael mendes / o inefável momento







eu fujo
dos sinos e capelas
dos poemas de baudelaire
das begónias e cirandas
parques e arco-íris

escondo-me
em soleiras e cortinas
becos e travessas
nos subsolos e terraços
no breu da noite
na névoa do alvorecer

e,
ainda assim,
se faz presente
o inefável momento
em que lhe disse adeus

desde então,
quando durmo, não descanso
nas refeições, não me nutro
os vícios, não dão prazer
no banho, não me limpo
nos livros, não encontro respostas
desde o inefável momento



rafael mendes
ensaio sobre o belo e o caos
editora urutau
2019





15 setembro 2019

ângelo de lima / súplica



Para alguém, foi, do teu olhar a flama,
Como, após noite escura, a luz d´aurora.

Da «selva escura» entre a sombria trama,
Ouve, mulher, como esse alguém t´implora.

Oh, baixa sobre mim o olhar fulgente!...

Que o teu olhar é bálsamo que inora,
Do céu sobre esse seio, em que, latente,

Remorde, há muito, o cancro de um anseio,
De um desejo insensato e sede ardente

De um não sei quê, que em teu olhar eu leio.


ângelo de lima
poesias completas
assírio & alvim
2003






14 setembro 2019

y. k. centeno / o sótão




o sótão: inacessível
nunca mais verei os livros
nunca mais irei lá acima
(eu tenho medo das arcas
eu tenho medo dos ratos
que guardam o impossível)



y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984










13 setembro 2019

sebastião alba / a esperança enlaçava a âncora




A ESPERANÇA ENLAÇAVA A ÂNCORA
por sobre o banco de Antero…
foi-se a idade da bala no céu da boca
(pois que outro céu havia?)
e a da morte acerca de cujos lances,
na guerra, os tabus são omissos:
como ir-se babando pelo chão
atrás dum olho seu.
Esperarei até que as unhas se encaracolem,
sem um corredor entre os cimos das árvores
nem outra evasão em que vogue,
que a Ursa Maior me fareje
da sua constelação, e se aproxime.



sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996





12 setembro 2019

marta navarro / complexo de interioridade




Antes de terminar
antes de me remeter ao silêncio da ilha
que não sei ainda descrever
mas desejo que seja a casa
da mentalidade pós-lógica
uma última coisa:
o tempo que dá o ritmo
às ideias e às acções
é o da eterna repetição cíclica
Hofmannsthal procurava x
eu procuro x
e como se este voltar a procurar
este continuar a procurar
não se autojustificasse
cem anos de novas combinações
eu posso escrever a ouvir Korn
ele não.
Isto deveria bastar para me tranquilizar
mas não basta
Da insatisfação em adaptação
de adaptação em insatisfação
saio à noite para levar o complexo de interioridade à rua
e mesmo quando apanho o melhor banco do jardim vago
vejo apenas sombras
de ucronia
uma dupla dança
que a exegese diz que diz
a um só tempo
não tinha de ser assim
mas é assim
do que se conclui que
melhor não conseguiriam
mais não conseguiriam
e eu não sou mais que a voz
do teu complexo
citando para
manter viva a fragilidade
do «triunfo do avesso»
do versilibrista.




marta navarro
doqse concq
editora a tua mãe
2016






11 setembro 2019

jesús lizano / mamíferos



Eu vejo mamíferos.
Mamíferos com nomes estranhíssimos.
Esqueceram-se que são mamíferos
e crêem-se bispos, canalizadores,
leiteiros, deputados. Deputados?
Eu vejo mamíferos.

Polícias, médicos, porteiros,
Professores, alfaiates, cantautores.
Cantautores?
Eu vejo mamíferos…

Presidentes, criados, escriturários, mestre d´obra.
Mestres d´obra!
Como pode crer-se mestre d´obra um mamífero?
Membros, sim, membros, crêem-se membros
do comité central, da ordem dos médicos…
académicos, reis, coronéis.
Eu vejo mamíferos.

Actrizes, putas, assistentes, secretárias,
directoras, lésbicas, puericultoras…
Na verdade, eu vejo mamíferos.
Ninguém vê mamíferos,
ninguém, ao que parece, se lembra que é mamífero.
Serei eu o último mamífero?
Democratas, comunistas, xadrezistas,
jornalistas, soldados, camponeses.
Eu vejo mamíferos.

Marqueses, executivos, sócios,
Italianos, ingleses, catalães.
Catalães?
Eu vejo mamíferos.

Cristãos, muçulmanos, coptas,
Inspectores, técnicos, beneditinos,
Empresários, caixeiros, cosmonautas…
Eu vejo mamíferos.



jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019






10 setembro 2019

rui caeiro / escolher uma razão de ser triste



Escolher uma razão de ser triste
– ele há tantas – e depois sê-lo

Sem hesitação, apaixonadamente

Dar á luz um poema imerecido
e logo de seguida abandoná-lo

Sem hesitação, galhardamente




rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019







09 setembro 2019

fernando lemos / dois horizontes




Dois horizontes
duas árvores
dois corpos

no meio um arame
no meio do arame
um frio
por cima de tudo
uma tempestade
duas nuvens
dois clarões
a iluminar os dois corpos

no meio um arame
no meio do arame
um frio

no meio do frio
o medo



fernando lemos
poesia
porto editora
2019





08 setembro 2019

josé de almada negreiros / esboço




O Sol-posto de mau gosto nem acerta com o postal.
A tarde hoje veio cedo
ainda hoje não comecei.
A paisagem não foi feita por mim
e a casa falta pensá-la.
Um hálito de convalescente casa-se com o sol poente.
Uma mulher sozinha na estrada
e o homem sozinho que a vê.
Fica o moinho a cantar
a rotina secular.


                                *
                *                             *

Tejo, lombada do meu poema aberto em páginas de sol.
Poesia dos pinheiros solteiros
encostados à nostalgia do fresco da tarde.




josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017






07 setembro 2019

daniel francoy / latitudes




Fala-me Conrad de um tempo,
ou melhor, de uma latitude
que ultrapassada impede
qualquer regresso –
como se o destino de um homem
fosse descer por uma luz vacilante
degrau após degrau.

Sujamo-nos, não há outro caminho
que não seja ter as mãos sujas.
Sujamo-nos e são as mãos sujas
o último elo a romper-se.
Por elas passa o ouro conseguido
a um custo indizível,
o perfume de amores enlouquecidos,
as flores que colhemos quando
muito jovens ou muito cansados.
O último elo a romper-se porque
da luz mais gasta permanece o pólen.




daniel francoy
identidade
editora urutau
2016







06 setembro 2019

federico garcia lorca / meia-lua




Pela água vai a lua.
Como o céu está tranquilo!
Vai ceifando lentamente
o tremor velho do rio,
enquanto um ramo jovem
a toma por espelhinho.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013